23 de dezembro de 2025

O MESSIAS DEVIA NASCER EM BELÉM

 

“Mas tu, ó Belém Efrata, que és pequena demais para estar entre os clãs de Judá...”

Referência: Miqueias 5:2 [Bíblia Hebraica, versículo 1]
Cumprimento: Mateus 2:1-6; João 1:46; João 7:27, 41-42

O local de nascimento do Messias parecia ser um tema bastante debatido entre o povo judeu que encontramos no Novo Testamento.

Como os anos da infância de Jesus foram passados em Nazaré, uma cidade da região da Galileia, alguns presumiram que ele também tivesse nascido ali. Em João 1:46, Natanael disse a Filipe a respeito de Jesus: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?”. A resposta implícita é “não” - e muito menos o Messias!

De modo semelhante, em João 7:41-42, durante a festa de Sucot (ou dos Tabernáculos), as pessoas discutiam a identidade de Jesus. À medida que a conversa avançava, “outros diziam: ‘Este é o Cristo [Messias]’. Mas alguns diziam: ‘Vem, porventura, o Cristo [Messias] da Galileia? Não diz a Escritura que o Cristo [Messias] vem da descendência de Davi e de Belém, a aldeia de onde era Davi?’”

Outros ainda, talvez menos familiarizados com o ensino tradicional, pareciam agnósticos quanto ao local de nascimento do Messias: “Quando o Cristo [Messias] vier, ninguém saberá de onde ele é” (João 7:27).

Em consonância com a ideia de que o Messias nasceria em Belém, constatamos, em primeiro lugar, que Jesus nasceu realmente ali, embora tenha crescido em Nazaré. Em segundo lugar, os “principais sacerdotes e escribas” citaram o profeta Miqueias em apoio desta ideia:

“Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes, eis que uns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, dizendo: ‘Onde está o recém-nascido Rei dos Judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.’ Ouvindo isso, o rei Herodes perturbou-se, e toda Jerusalém com ele; e, reunindo todos os principais sacerdotes e escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo [Messias]. Eles lhe disseram: ‘Em Belém da Judeia, porque assim está escrito pelo profeta:

“E tu, ó Belém, na terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre os governantes de Judá; porque de ti sairá um governante que apascentará o meu povo Israel.”’”

(Mateus 2:1-6)

Este é um caso raro em que, em vez de ser o escritor de um evangelho a citar uma passagem messiânica, são os mestres judeus daquela época a fazer a citação. Primeiro, vemos que “magos”, também chamados sábios, chegaram “do Oriente”, provavelmente astrólogos pagãos da Babilónia, da Pérsia ou da Arábia (não sabemos o local exato). Embora proibida na Bíblia, a astrologia era bastante popular em vários países, e “todos concordavam que os melhores astrólogos viviam no Oriente” [1]. Aparentemente, se alguém quisesse astrólogos de primeira classe, o Oriente era o lugar certo!

Herodes, que não era um governante muito piedoso, deu crédito ao anúncio deles de que o “Rei dos Judeus” havia nascido (seja lá o que fosse exatamente a “estrela” que eles viram).

Porém, Herodes ficou perturbado com a notícia, e também “toda Jerusalém” — mas por que razão a cidade inteira? Teriam os “magos” feito um grande anúncio público? Sugere-se que eles vinham acompanhados de um grande séquito, ou que a impopularidade de Herodes entre o povo fez com que um anúncio discreto se espalhasse rapidamente entre aqueles que não suportavam o seu governo, na esperança de que um rei substituto estivesse para chegar [2]. Além disso, o povo pode ter ficado alarmado simplesmente por conhecer a reputação de Herodes: e se ele reagisse de forma imprevisível e violenta à notícia de um novo rei?

Não sabemos exatamente por que razão a cidade inteira ficou em alvoroço, nem como os magos determinaram que algo estava a acontecer na Judeia. Pode ser que eles conhecessem algo da tradição judaica sobre o tema, pois cada uma das possíveis regiões de sua origem abrigava uma população judaica significativa.

A astrologia era temida pelos governantes romanos como um presságio de maus agouros, e Herodes não era diferente, como rei fantoche de Roma. Preocupado com a ameaça ao seu governo representada por esse “Rei dos Judeus”, Herodes reuniu um comité dos “entendidos” e perguntou-lhes sobre o local de nascimento do Messias. Eles deram uma resposta unânime: Belém, na Judeia, e, como prova, citaram o profeta Miqueias. Isso acabou por levar ao ato desvairado de Herodes de mandar massacrar todos os meninos de dois anos para baixo na região de Belém. Ele não toleraria nenhum rival ao seu trono! Mas, a essa altura, a família de Jesus já havia fugido para o Egito, onde permaneceu até a morte de Herodes (ver Mateus 2:14-15).

O que é interessante é que a citação de Miqueias feita pelos sacerdotes e escribas difere, na redação, do texto original. Compare-se:

Mateus 2:6

E tu, ó Belém, na terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre os governantes de Judá; porque de ti sairá um governante que apascentará o meu povo Israel.

Miqueias 5:2 (v. 1 no hebraico)

Mas tu, ó Belém Efrata, que és pequena demais para estar entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que há de governar Israel, cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade.

Alguns apontam estas diferenças como exemplos de supostas citações incorretas da Bíblia Hebraica no Novo Testamento. Contudo, a Escritura é frequentemente citada no Novo Testamento com alterações que não afetam o sentido real, mas servem a um propósito homilético ou midráshico. Afinal, qualquer pessoa podia consultar um rolo dos Profetas, ou pelo menos recorrer a quem tivesse acesso a um, e verificar o texto original.

Assim, Mateus altera “Belém Efrata” para “Belém, na terra de Judá” – que é o mesmo local, especificando qual das duas Beléns estava em vista - para sublinhar que se tratava de Judá e não de algum outro local, a terra da tribo de Judá, de onde se esperava que viesse o Messias.

Em seguida, Mateus muda “pequena demais para estar entre os clãs de Judá” para “de modo nenhum és a menor entre os governantes de Judá”. No texto original, Miqueias enfatiza a insignificância de Belém. No entanto, o ponto de Miqueias é que, embora seja uma cidade pequena e sem importância, ela verá grandeza ao produzir o Messias, o “governante em Israel”. Mateus vai direto a este ponto, destacando a grandeza última de Belém, que também é a intenção de Miqueias.

Em terceiro lugar, Mateus troca “clãs” por “governantes”. Esta também é uma mudança de caráter homilético: dos clãs procedem os governantes, de modo que Mateus simplesmente quer enfatizar que Belém produzirá um governante, talvez para contrastar este governante messiânico com os opressivos governantes romanos então no poder.

Por fim, a última linha de Mateus vem de 2 Samuel 5:2, um versículo que indica que o rei Davi será o verdadeiro pastor de Israel. Desta forma, ao enfatizar anteriormente o “governante” e citando agora um versículo sobre um “pastor”, Mateus pode estar contrastando o Messias tanto com os governantes romanos como com os líderes de Israel que, mais tarde, Jesus diria serem falsos pastores. A criança que há de nascer se elevará acima da liderança romana e judaica como o líder supremo, o Messias. Mateus substitui o pensamento final de Miqueias sobre os antepassados longínquos desta criança por um versículo de 2 Samuel, provavelmente porque deseja salientar a questão do governo e da liderança, e não as origens antigas do Messias.

Portanto, não temos uma “citação incorreta”, mas uma forma muito típica de lidar com a Escritura para enfatizar o seu verdadeiro significado e desenvolver vários pontos homiléticos. Trata-se de midrash, um método judaico de interpretação que realça o sentido e a aplicação de um texto.

Notas

[1] Craig S. Keener, IVP Bible Background Commentary: New Testament (Downers Grove: InterVarsity Press, 1993), comentário sobre Mateus 2:1.

[2] Ibid., comentário sobre Mateus 2:3.

16 de dezembro de 2025

VENÂNCIO FORTUNATO vs. A IMACULADA CONCEIÇÃO

 

Venantius Honorius Clementianus Fortunatus (c.530–c.600/609) foi um poeta latino e hinista na corte merovíngia, e bispo da igreja católica antiga. Na sua obra “Expositio symboli” 19-20 refere o seguinte:

Deve-se, contudo, notar isto: uma vez que o Espírito Santo é o criador da carne do Senhor, a majestade do Espírito Santo é por isso demonstrada. Pois o facto de o Deus da majestade ter nascido na carne através de Maria não significa que Ele tenha sido manchado ao nascer de uma virgem, Ele que não foi contaminado ao criar o homem a partir do pó. Afinal, se o sol ou o fogo incidirem sobre a lama, purificam o que tocaram e, no entanto, não se poluem a si mesmos..”

Lat.: Hoc tarnen notandum est, quia dum Spiritus Sanctus est dominicae carnis creator, Spiritus Sancti hinc maiestas ostenditur. Quod vero Deus maiestatis se Maria in carne natus est, non est sordidatus nascendo de virgine qui fuit pollutus hominem condens de pulvere. Denique sol aut ignis si lutum inspiciat, quod tetigerit purgat et se tarnen non inquinat.

Fortunato diz algo semelhante em "In laudem sanctae Mariae" 251-254:

"E, no entanto, é gerado Deus e homem verdadeiro e uma só pessoa de espírito e carne, Cristo, com ambas as naturezas, na divindade igual ao Pai, e no corpo igual à mãe, mas sem pecado da carne da mãe."

Lat.: Et tamen est genitus Deus et homo verus et unus spiritus atque caro Christus utrumque genus. In deitate patri aequalis vel corpore matri sed sine peccato de genetrice caro.

18 de novembro de 2025

A OPOSIÇÃO DE IRENEU À VIRGINDADE PERPÉTUA DE MARIA


Gostaria de citar e comentar algumas passagens relevantes.

Em contraste com o conceito de virgindade in partu, Ireneu refere a forma como Jesus abriu o ventre de Maria:

"a Palavra deveria tornar-se carne, e o Filho de Deus, o Filho do Homem (o Puro abrir puramente esse ventre puro que regenera o género humano para Deus, e que Ele mesmo tornou puro); e tendo-se tornado nisto que nós também somos, Ele [contudo] é o Deus Poderoso e possui uma geração que não pode ser declarada." (Contra as Heresias, 4:33:11)

Ireneu refere-se a Jesus como o "primogénito" de Maria. Um filho único é por vezes chamado de primogénito, mas o termo refere-se geralmente a um dos filhos. Tanto conceptualmente como em termos da história do uso, "primogénito" parece referir-se mais provavelmente a alguém dentro de um grupo do que a um indivíduo isolado. Se tivéssemos evidência que contrariasse o significado normal de "primogénito", poderíamos interpretar Ireneu nesse sentido, mas não podemos optar por uma leitura menos natural sem evidências incontestáveis. Outra terminologia podia ter sido utilizada se Ireneu acreditasse na virgindade perpétua de Maria, especialmente se não apenas acreditasse nela, mas também a considerasse tão importante como os defensores do conceito frequentemente sugerem. Por exemplo, Jesus poderia ter sido chamado de "único filho" de Maria (como vemos com outras pessoas para além de Jesus em Lucas 7:12, 8:42, 9:38), o que seria consistente com a virgindade perpétua de Maria e expressaria o facto de que Jesus tinha as vantagens associadas a ser o primeiro filho. A escolha de Ireneu por "primogénito" é evidência de que ele não acreditava na virgindade perpétua de Maria:

"Mas Simeão também — aquele que recebera um aviso do Espírito Santo de que não morreria antes de contemplar Cristo Jesus — tomando-o nos braços, o primogénito da Virgem, bendisse a Deus e disse: 'Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra, porque os meus olhos já viram a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel'. Assim, confessou que o menino que segurava nos braços, Jesus, nascido de Maria, era o próprio Cristo, o Filho de Deus, a luz de todos, a glória de Israel e a paz e o refrigério dos que dormiam." (Contra as Heresias, 3:16:4)

Noutra passagem, Ireneu compara Maria a um solo que inicialmente era virgem, mas que depois perdeu a virgindade, e refere que Maria "ainda era virgem":

"E assim como o próprio protoplasto Adão, teve a sua substância proveniente de solo não cultivado e ainda virgem ('pois Deus ainda não tinha enviado chuva, e o homem não tinha lavrado a terra'), e foi formado pela mão de Deus, isto é, pela Palavra de Deus, pois 'todas as coisas foram feitas por Ele', e o Senhor tomou o pó da terra e formou o homem; assim também Ele, que é a Palavra, recapitulando Adão em Si mesmo, recebeu legitimamente um nascimento, permitindo-Lhe reunir Adão [em Si mesmo], de Maria, que ainda era virgem." (Contra as Heresias, 3:21:10)

Note-se, em primeiro lugar, que não havia nenhuma necessidade de comparar Maria ao solo virgem ou de comentar como a virgindade do solo veio a terminar. Ireneu podia ter utilizado outra analogia ou, por exemplo, adicionado um qualificativo relevante, se não quisesse que as pessoas chegassem à conclusão mais óbvia a partir dos seus comentários (de que Maria também deixou de ser virgem). Em segundo lugar, ele optou por dizer de Maria "que ainda era virgem" em vez de "que seria sempre virgem" ou algo parecido.

Repare-se que a questão aqui é como melhor explicar os comentários de Ireneu, e não simplesmente como ele pode ser interpretado. Não só ele nunca defende a virgindade perpétua de Maria, apesar de se referir frequentemente à sua virgindade de outras formas, como também faz vários tipos de comentários em vários contextos que quando considerados naturalmente são inconsistentes com a virgindade perpétua. É improvável que Ireneu acreditasse na virgindade perpétua de Maria. É ainda mais improvável que ele acreditasse nela e a considerasse tão importante como os defensores do conceito costumam sugerir.

Por vezes, Jerónimo é invocado quando se discute Ireneu, sob a alegação de que Jerónimo supostamente nos dá razões para crer que Ireneu acreditava na virgindade perpétua de Maria. Mas o apelo a Jerónimo é duvidoso, pelas razões expostas aqui.

1 de novembro de 2025

MARTINHO LUTERO E JOÃO CALVINO SOBRE MARIA

 

Comparação teológica e documental com a visão dogmática da Igreja de Roma


1. MARTINHO LUTERO (1483–1546)

Tema

Citação (tradução)

Referência

Observação crítica

Maria como Mãe de Deus (Theotokos)

“Ela é a Mãe de Deus e, no entanto, permaneceu virgem. [...] É a maior honra que foi possível conceder a uma criatura.”

LUTERO, Martin. Das Magnificat verdeutscht und ausgelegt (1521). In: D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (WA) 7, p. 572–574. Weimar: Böhlau, 1883ss.

Lutero aceita o título Theotokos como afirmação da encarnação, mas não o usa para justificar culto ou intercessão.

Contra o culto e a invocação de Maria

“Não devemos fazer de Maria uma deusa, pois ela não concede graça, não salva. É Deus quem faz tudo, por meio de seu Filho.”

LUTERO, Martin. Predigten über das Evangelium des Johannes (1521). WA 10 I/1, p. 268.

Rejeita toda forma de invocação mariana; condena o culto que a “transforma em ídolo”.

Maria aponta para Cristo, não para si mesma

“Maria não quer que recorramos a ela, mas através dela aprendamos a ir a Cristo.”

LUTERO, Martin. Weihnachtspredigt (1529). WA 29, p. 182.

Lutero vê Maria como testemunha de Cristo, não como intercessora.

Imaculada Conceição

“Maria foi concebida de maneira natural, como todos os outros seres humanos, mas o Espírito Santo manteve-a livre do pecado.”

LUTERO, Martin. Predigt am Tag der Empfängnis Mariä (1527). WA 17 II, p. 287.

Em fase inicial, Lutero admite certa “purificação” de Maria, mas mais tarde nega qualquer concepção imaculada.

Somente Cristo é sem pecado

“Somente Cristo é sem pecado; todos os outros nascem em pecado.”

LUTERO, Martin. Vorlesung über den Psalter (1535). WA 39 II, p. 88.

Lutero exclui Maria da impecabilidade absoluta.

Contra a idolatria mariana

“Maria não quer que façamos dela um ídolo, ela não quer que a adoremos. Ela aponta para Deus.”

LUTERO, Martin. Das Magnificat (1521). WA 7, p. 572.

Lutero considera o culto a Maria como desvio idolátrico.


2. JOÃO CALVINO (1509–1564)

Tema

Citação (tradução)

Referência

Observação crítica

Maria como Mãe de Deus (Theotokos)

“Não hesito em dizer que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus, porque ela gerou aquele que é Deus e homem.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur l’Évangile selon saint Luc (1555). In: Ioannis Calvini Opera Selecta (CO) 45, p. 39. Brunswick: Schwetschke, 1863.

Calvino usa Theotokos apenas cristologicamente: para confirmar que o Filho de Maria é o Verbo encarnado.

Contra o culto mariano

“É uma blasfêmia atribuir a Maria o que pertence somente a Deus e a Cristo. [...] A superstição papista transformou-a em uma deusa.”

CALVINO, Jean. Institutes of the Christian Religion, I.11.10. In: Opera Selecta (CO) 2, p. 83–84.

Condena a “idolatria papista” e o culto a Maria como usurpação da glória divina.

Cristo como único mediador

“Maria não é uma mediadora. Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur l’Évangile selon saint Jean (1553). CO 47, p. 57.

Recusa qualquer mediação de Maria. Cita 1Tm 2,5 como regra absoluta.

Imaculada Conceição

“Chamar Maria de imaculada é dizer que ela não precisou da redenção de Cristo, o que é absurdo. Ela foi redimida como todos os demais.”

CALVINO, Jean. Sermon sur Luc 1:28. CO 46, p. 37–38.

Rejeita explicitamente o conceito de Imaculada Conceição (séculos antes do dogma de 1854).

Assunção Corporal de Maria

“Não encontramos nas Escrituras que Maria tenha sido isenta da condição comum dos mortais, ou que tenha sido elevada ao céu em corpo e alma. Isto é pura invenção dos papistas, sem fundamento algum na Palavra de Deus.”

CALVINO, Commentaire sur l’Évangile selon saint Luc (1555), CO 45, p. 44..

Rejeita explicitamente a ideia de Assunção física como “invenção papista” e “fábula sem Escritura”. Para ele, a morte de Maria foi como a de qualquer crente: dormiu no Senhor, esperando a ressurreição final.

Honra devida a Maria

“Devemos honrar Maria, não adorando-a, mas imitando sua fé e humildade.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur le Magnificat. CO 45, p. 41.

Maria é “exemplo”, não “objeto” de fé.


3. IGREJA CATÓLICA ROMANA (VISÃO DOGMÁTICA)

Dogma / Doutrina

Definição oficial

Fonte magisterial

Maternidade divina (Theotokos)

Maria é verdadeiramente Mãe de Deus, pois gerou o Verbo encarnado.

Concílio de Éfeso (431). Denzinger-Hünermann (DH) 252.

Imaculada Conceição

Maria foi preservada do pecado original desde o primeiro instante de sua concepção.

Pio IX, Ineffabilis Deus (1854). DH 2803.

Assunção corporal

Maria, ao fim de sua vida terrena, foi levada em corpo e alma ao céu.

Pio XII, Munificentissimus Deus (1950). DH 3903.

Mediação universal e culto hiperdúlico

Maria é medianeira de todas as graças e digna de culto especial (hiperdulia).

Concílio Vaticano II, Lumen Gentium §62; DH 4420.


4. ANÁLISE COMPARATIVA FINAL

Questão

Lutero

Calvino

Catolicismo Romano

Maternidade divina

Aceita, sem culto

Aceita, sentido cristológico

Dogma (Éfeso 431)

Imaculada Conceição

Rejeita (fase tardia)

Rejeita

Dogma (1854)

Assunção corporal

Silêncio, não defende

Rejeita

Dogma (1950)

Intercessão / mediação

Rejeita

Rejeita

Afirma

Culto / invocação

Rejeita

Rejeita

Afirma (hiperdulia)

Valor espiritual

Exemplo de fé

Exemplo de fé

Exemplo + intercessora


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (ABNT)

  • CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2008.
  • CALVIN, Jean. Ioannis Calvini Opera quae supersunt omnia. Ed. Baum, Cunitz, Reuss. Brunswick: Schwetschke, 1863–1900. (CO 45–47).
  • DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Peter (org.). Enchiridion Symbolorum: Compendium of Creeds, Definitions, and Declarations on Matters of Faith and Morals. 45. ed. Freiburg: Herder, 2017.
  • LUTERO, Martinho. D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (Weimarer Ausgabe – WA). Weimar: Böhlau, 1883–2009.
  • LUTERO, Martinho. O Magnificat de Maria: Comentário. Trad. Werner Fuchs. São Leopoldo: Sinodal, 1983.
  • PIO IX. Ineffabilis Deus. Roma, 8 dez. 1854.
  • PIO XII. Munificentissimus Deus. Roma, 1 nov. 1950.
  • CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. Vaticano, 1964.

19 de outubro de 2025

A IGREJA QUE “PRESIDE NA CARIDADE”: INÁCIO DE ANTIOQUIA E A INEXISTÊNCIA DO BISPO MONÁRQUICO ROMANO NA IGREJA PRIMITIVA

 

Resumo:

Este artigo analisa o célebre elogio de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma como “a que preside na caridade” (tê prokathemenê tês agapês) e demonstra, à luz das fontes do século I-II e da crítica histórica moderna, que tal expressão não implica primado jurídico, mas apenas primazia moral e exemplar. Examina-se também a estrutura eclesial da época, na qual não existia ainda o modelo monárquico-episcopal romano, e a Igreja era entendida como uma comunhão de comunidades locais autónomas.



1. O texto de Inácio de Antioquia

Na Epístola aos Romanos (prólogo), escrita por volta do ano 107 d.C., o bispo mártir de Antioquia dirige-se à Igreja de Roma nestes termos:

“À Igreja que foi objeto de misericórdia na grandeza do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único, amada e iluminada pela vontade daquele que quis todas as coisas, à que preside na caridade, segundo a lei de Jesus Cristo nosso Senhor.”

(Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, prólogo (ed. Funk, Patres Apostolici, I, p. 252).

A expressão grega tê prokathemenê tês agapês é única em toda a literatura cristã primitiva. O verbo prokathemai (“sentar-se à frente”) pode indicar precedência ou honra, mas o complemento “na caridade” (en agapê) confere ao texto um sentido moral e espiritual, não jurisdicional. Inácio elogia a fé e a caridade de Roma, não a coloca como sede de governo sobre as demais Igrejas.

“Nada nas palavras de Inácio sugere soberania. Trata-se de uma primazia de amor, não de domínio.” (J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers (1885), p. 217).

Refira-se que Inácio elogia outras comunidades de modo semelhante: a Igreja de Éfeso “abundante em fé e amor”, a de Magnésia “em harmonia com Deus”, etc. (Efésios 1; Magnésios 1).


2. Estrutura eclesial no tempo de Inácio

A eclesiologia do início do século II estava em transição. Inácio foi um dos primeiros a formular a ideia do bispo monárquico local, como garante da unidade da comunidade. Todavia, essa estrutura ainda não existia em todas as Igrejas — e Roma é o caso mais notório.

A Carta de Clemente de Roma aos Coríntios (c. 96 d.C.), documento anterior a Inácio, nunca menciona um bispo romano individual; é escrita em nome da Igreja de Roma como corpo colegial:

 “Os apóstolos… estabeleceram os primeiros frutos de sua missão, provando-os pelo Espírito, e colocaram bispos e diáconos.” (1 Clemente 42:4-5)

“Os presbíteros foram instituídos pelos apóstolos e, depois deles, outros homens aprovados sucederam-lhes.” (1 Clemente 44)

A ausência de qualquer menção a um único bispo romano e o uso do plural (“bispos”) confirmam que Roma era então governada por um colégio de presbíteros, não por um pontífice individual.

Assim, quando Inácio escreve a sua carta (c. 107 d.C.), não havia ainda um “Papa” no sentido posterior. Ele se dirige à Igreja romana, não a um bispo romano.


3. A comunhão de Igrejas: modelo horizontal, não imperial

A teologia eclesial dos séculos I–II concebia a Igreja universal como uma comunhão de Igrejas locais, cada uma plena em si mesma, unida às demais pela fé e pela caridade.

As sete cartas autênticas de Inácio refletem uma eclesiologia de comunhão horizontal.

Cada Igreja local é presidida pelo seu bispo, símbolo da unidade local, mas todas são irmãs entre si. Inácio nunca fala de “o bispo dos bispos”.

Inácio exorta os fiéis:

“Onde estiver o bispo, aí esteja o povo, assim como onde estiver Cristo, aí está a Igreja. Onde está o bispo, aí deve estar a comunidade, assim como onde está Cristo Jesus, aí está a Igreja Católica.” (Epístola aos Esmirnenses 8,1-2).

Aqui, Igreja Católica significa universalidade da fé, não uma instituição centralizada sob Roma.

Jean Daniélou resume:

“A Igreja primitiva é uma comunhão de Igrejas locais unidas por vínculos de fé e caridade. Não há ainda um centro de comando jurídico.” (Histoire des Doctrines Chrétiennes avant Nicée (1952), p. 75).


4. A interpretação de Ireneu de Lyon

O primeiro autor a citar Roma como referência de ortodoxia foi Ireneu de Lyon, em Adversus Haereses III, 3, 2 (c. 180 d.C.):

“Com esta Igreja [de Roma], por causa de sua origem mais excelente, deve necessariamente concordar toda Igreja, isto é, os fiéis de toda parte, porque nela sempre se conservou a tradição dos apóstolos.”

Todas as Igrejas devem necessariamente “concordar” com Roma porque partilham a mesma tradição apostólicanão porque lhe devem obediência.

Aqui, a expressão convenire oportet significa “concordar na fé”, não “submeter-se juridicamente”. 

Ireneu argumenta a partir da fidelidade doutrinária de Roma, não de um poder papal.

Yves Congar observa:

“O primado romano, no início, é de honra e de caridade, não de jurisdição. Ele nasce do testemunho apostólico de Roma, não de um poder sobre as demais Igrejas.” (L’Église, de Saint Augustin à l’époque moderne (1970), p. 34).


5. Conflitos do século III: Cipriano e o “bispo dos bispos”

No século III, o papa Estêvão I tentou impor a sua decisão sobre a validade do batismo dos hereges.

Cipriano de Cartago respondeu de modo firme:

“Nenhum de nós se proclama bispo dos bispos, nem obriga os seus colegas à obediência pela tirania do medo.” (Epístola 59, 14)

Esse testemunho mostra que a autoridade universal de Roma era contestada e considerada inovação.


6. Conclusão

O elogio de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma como “a que preside na caridade” não afirma supremacia jurídica, mas reconhece exemplaridade espiritual.

Nos séculos I-II, a Igreja era uma comunhão de comunidades locais autónomas, unidas pela fé comum e pela caridade fraterna, não uma hierarquia monárquica.

O modelo papal centralizado é um desenvolvimento histórico posterior, sobretudo a partir do século IV, e não parte da estrutura original da Igreja apostólica.

 

Referências bibliográficas essenciais

  • Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos, em Patres Apostolici, ed. Funk, I, 1901.
  • 1 Clemente, ed. Lightfoot & Harmer, The Apostolic Fathers, 1891.
  • Ireneu de Lyon, Adversus Haereses, III, 3, 2.
  • Cipriano de Cartago, Epistulae 59, 14.
  • J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers, Londres 1885.
  • Henry Chadwick, The Early Church, Londres 1967.
  • Yves Congar, L’Église, de Saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970.
  • Jean Daniélou, Histoire des Doctrines Chrétiennes avant Nicée, Paris 1952.
  • Raymond E. Brown, The Churches the Apostles Left Behind, Nova Iorque 1984.

28 de setembro de 2025

SUBSTITUIÇÃO PENAL NA HISTÓRIA DA IGREJA


• Michael J. Vlach, “Penal Substitution in Church History,” The Master’s Seminary Journal 20:2 (2009): 199–214

 

 • Garry J. Williams, “Penal Substitutionary Atonement in the Church Fathers,” Evangelical Quarterly 83:3 (2011): 195–216

15 de agosto de 2025

ADOMNANO DE IONA NÃO ACREDITAVA NA ASSUNÇÃO CORPORAL DE MARIA


Adomnano de Iona (c. 625–704) foi um abade e estudioso irlandês, particularmente conhecido como biógrafo de Columba de Iona.

Escreveu uma obra intitulada De locis sanctis (“Sobre os lugares santos”), baseada nos relatos do bispo franco Arculfo, o qual fez uma peregrinação à Terra Santa (c. 680), e no regresso foi empurrado por uma tempestade para a costa ocidental da Grã-Bretanha e se tornou hóspede de Adomnano.

O seu testemunho demonstra a crença de que Maria morreu e foi sepultada, e que a sua ressurreição ainda não ocorreu. Afirmações semelhantes são feitas por Beda (672-735), que também criticou os apócrifos da Assunção. 

“Frequentador assíduo dos lugares santos, o santo Arculfo costumava visitar a igreja de santa Maria no vale de Josafá. Ela tem dois andares, e o andar inferior, com teto de pedra, está construído com uma redondeza admirável. Na parte oriental, há um altar, e à direita do altar está o sepulcro de pedra vazio de santa Maria, onde ela foi sepultada. Mas como, quando ou por quais pessoas seus santos restos mortais foram removidos deste sepulcro, ou onde ela aguarda a ressurreição, ninguém, como se diz, consegue saber ao certoAs pessoas que entram nesta igreja redonda inferior de santa Maria veem à direita, inserida na parede, a rocha sobre a qual o Senhor orou de joelhos no jardim de Getsêmani antes da hora de sua traição, naquela noite em que foi traído por Judas nas mãos dos pecadores. Agora, as marcas de seus dois joelhos são visíveis nesta rocha, profundamente implantadas como na cera mais macia. Assim nos contou nosso irmão Arculfo, um visitante dos lugares santos, que viu com os seus próprios olhos as coisas que descrevemos aqui. Na igreja superior de santa Maria, também redonda, quatro altares estão à vista.” 

(Adomnano de Iona, De Locis SanctisEd. Denis Meehan, The Dublin Institute for Advanced Studies, 1958, pag. 59)

8 de julho de 2025

O QUE OS PEDOBATISTAS NÃO ENTENDERAM

 

O batismo começa no coração do batizando.

O batismo não é um ato imposto de fora, nem algo que o ministro realiza por iniciativa própria.

É o batizando quem dá o primeiro passo, movido por fé, arrependimento e desejo de seguir a Cristo.

O papel do ministro? Responder ao pedido.

Ele não vai à procura de alguém para forçar um mergulho nas águas — ele atende ao apelo de quem decidiu morrer com Cristo e nascer de novo.

O batismo não é uma captura. É um consentimento.

“Eis aqui água; o que me impede de ser batizado?” (Atos 8:36)

O Evangelho chama. Mas a resposta é sempre pessoal.

Sem fé, o rito é só um banho.

Com fé, é sepultamento e ressurreição.