1 de novembro de 2025

MARTINHO LUTERO E JOÃO CALVINO SOBRE MARIA

 

Comparação teológica e documental com a visão dogmática da Igreja de Roma


1. MARTINHO LUTERO (1483–1546)

Tema

Citação (tradução)

Referência

Observação crítica

Maria como Mãe de Deus (Theotokos)

“Ela é a Mãe de Deus e, no entanto, permaneceu virgem. [...] É a maior honra que foi possível conceder a uma criatura.”

LUTERO, Martin. Das Magnificat verdeutscht und ausgelegt (1521). In: D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (WA) 7, p. 572–574. Weimar: Böhlau, 1883ss.

Lutero aceita o título Theotokos como afirmação da encarnação, mas não o usa para justificar culto ou intercessão.

Contra o culto e a invocação de Maria

“Não devemos fazer de Maria uma deusa, pois ela não concede graça, não salva. É Deus quem faz tudo, por meio de seu Filho.”

LUTERO, Martin. Predigten über das Evangelium des Johannes (1521). WA 10 I/1, p. 268.

Rejeita toda forma de invocação mariana; condena o culto que a “transforma em ídolo”.

Maria aponta para Cristo, não para si mesma

“Maria não quer que recorramos a ela, mas através dela aprendamos a ir a Cristo.”

LUTERO, Martin. Weihnachtspredigt (1529). WA 29, p. 182.

Lutero vê Maria como testemunha de Cristo, não como intercessora.

Imaculada Conceição

“Maria foi concebida de maneira natural, como todos os outros seres humanos, mas o Espírito Santo manteve-a livre do pecado.”

LUTERO, Martin. Predigt am Tag der Empfängnis Mariä (1527). WA 17 II, p. 287.

Em fase inicial, Lutero admite certa “purificação” de Maria, mas mais tarde nega qualquer concepção imaculada.

Somente Cristo é sem pecado

“Somente Cristo é sem pecado; todos os outros nascem em pecado.”

LUTERO, Martin. Vorlesung über den Psalter (1535). WA 39 II, p. 88.

Lutero exclui Maria da impecabilidade absoluta.

Contra a idolatria mariana

“Maria não quer que façamos dela um ídolo, ela não quer que a adoremos. Ela aponta para Deus.”

LUTERO, Martin. Das Magnificat (1521). WA 7, p. 572.

Lutero considera o culto a Maria como desvio idolátrico.


2. JOÃO CALVINO (1509–1564)

Tema

Citação (tradução)

Referência

Observação crítica

Maria como Mãe de Deus (Theotokos)

“Não hesito em dizer que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus, porque ela gerou aquele que é Deus e homem.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur l’Évangile selon saint Luc (1555). In: Ioannis Calvini Opera Selecta (CO) 45, p. 39. Brunswick: Schwetschke, 1863.

Calvino usa Theotokos apenas cristologicamente: para confirmar que o Filho de Maria é o Verbo encarnado.

Contra o culto mariano

“É uma blasfêmia atribuir a Maria o que pertence somente a Deus e a Cristo. [...] A superstição papista transformou-a em uma deusa.”

CALVINO, Jean. Institutes of the Christian Religion, I.11.10. In: Opera Selecta (CO) 2, p. 83–84.

Condena a “idolatria papista” e o culto a Maria como usurpação da glória divina.

Cristo como único mediador

“Maria não é uma mediadora. Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur l’Évangile selon saint Jean (1553). CO 47, p. 57.

Recusa qualquer mediação de Maria. Cita 1Tm 2,5 como regra absoluta.

Imaculada Conceição

“Chamar Maria de imaculada é dizer que ela não precisou da redenção de Cristo, o que é absurdo. Ela foi redimida como todos os demais.”

CALVINO, Jean. Sermon sur Luc 1:28. CO 46, p. 37–38.

Rejeita explicitamente o conceito de Imaculada Conceição (séculos antes do dogma de 1854).

Assunção Corporal de Maria

“Não encontramos nas Escrituras que Maria tenha sido isenta da condição comum dos mortais, ou que tenha sido elevada ao céu em corpo e alma. Isto é pura invenção dos papistas, sem fundamento algum na Palavra de Deus.”

CALVINO, Commentaire sur l’Évangile selon saint Luc (1555), CO 45, p. 44..

Rejeita explicitamente a ideia de Assunção física como “invenção papista” e “fábula sem Escritura”. Para ele, a morte de Maria foi como a de qualquer crente: dormiu no Senhor, esperando a ressurreição final.

Honra devida a Maria

“Devemos honrar Maria, não adorando-a, mas imitando sua fé e humildade.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur le Magnificat. CO 45, p. 41.

Maria é “exemplo”, não “objeto” de fé.


3. IGREJA CATÓLICA ROMANA (VISÃO DOGMÁTICA)

Dogma / Doutrina

Definição oficial

Fonte magisterial

Maternidade divina (Theotokos)

Maria é verdadeiramente Mãe de Deus, pois gerou o Verbo encarnado.

Concílio de Éfeso (431). Denzinger-Hünermann (DH) 252.

Imaculada Conceição

Maria foi preservada do pecado original desde o primeiro instante de sua concepção.

Pio IX, Ineffabilis Deus (1854). DH 2803.

Assunção corporal

Maria, ao fim de sua vida terrena, foi levada em corpo e alma ao céu.

Pio XII, Munificentissimus Deus (1950). DH 3903.

Mediação universal e culto hiperdúlico

Maria é medianeira de todas as graças e digna de culto especial (hiperdulia).

Concílio Vaticano II, Lumen Gentium §62; DH 4420.


4. ANÁLISE COMPARATIVA FINAL

Questão

Lutero

Calvino

Catolicismo Romano

Maternidade divina

Aceita, sem culto

Aceita, sentido cristológico

Dogma (Éfeso 431)

Imaculada Conceição

Rejeita (fase tardia)

Rejeita

Dogma (1854)

Assunção corporal

Silêncio, não defende

Rejeita

Dogma (1950)

Intercessão / mediação

Rejeita

Rejeita

Afirma

Culto / invocação

Rejeita

Rejeita

Afirma (hiperdulia)

Valor espiritual

Exemplo de fé

Exemplo de fé

Exemplo + intercessora


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (ABNT)

  • CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2008.
  • CALVIN, Jean. Ioannis Calvini Opera quae supersunt omnia. Ed. Baum, Cunitz, Reuss. Brunswick: Schwetschke, 1863–1900. (CO 45–47).
  • DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Peter (org.). Enchiridion Symbolorum: Compendium of Creeds, Definitions, and Declarations on Matters of Faith and Morals. 45. ed. Freiburg: Herder, 2017.
  • LUTERO, Martinho. D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (Weimarer Ausgabe – WA). Weimar: Böhlau, 1883–2009.
  • LUTERO, Martinho. O Magnificat de Maria: Comentário. Trad. Werner Fuchs. São Leopoldo: Sinodal, 1983.
  • PIO IX. Ineffabilis Deus. Roma, 8 dez. 1854.
  • PIO XII. Munificentissimus Deus. Roma, 1 nov. 1950.
  • CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. Vaticano, 1964.

19 de outubro de 2025

A IGREJA QUE “PRESIDE NA CARIDADE”: INÁCIO DE ANTIOQUIA E A INEXISTÊNCIA DO BISPO MONÁRQUICO ROMANO NA IGREJA PRIMITIVA

 

Resumo:

Este artigo analisa o célebre elogio de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma como “a que preside na caridade” (tê prokathemenê tês agapês) e demonstra, à luz das fontes do século I-II e da crítica histórica moderna, que tal expressão não implica primado jurídico, mas apenas primazia moral e exemplar. Examina-se também a estrutura eclesial da época, na qual não existia ainda o modelo monárquico-episcopal romano, e a Igreja era entendida como uma comunhão de comunidades locais autónomas.



1. O texto de Inácio de Antioquia

Na Epístola aos Romanos (prólogo), escrita por volta do ano 107 d.C., o bispo mártir de Antioquia dirige-se à Igreja de Roma nestes termos:

“À Igreja que foi objeto de misericórdia na grandeza do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único, amada e iluminada pela vontade daquele que quis todas as coisas, à que preside na caridade, segundo a lei de Jesus Cristo nosso Senhor.”

(Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, prólogo (ed. Funk, Patres Apostolici, I, p. 252).

A expressão grega tê prokathemenê tês agapês é única em toda a literatura cristã primitiva. O verbo prokathemai (“sentar-se à frente”) pode indicar precedência ou honra, mas o complemento “na caridade” (en agapê) confere ao texto um sentido moral e espiritual, não jurisdicional. Inácio elogia a fé e a caridade de Roma, não a coloca como sede de governo sobre as demais Igrejas.

“Nada nas palavras de Inácio sugere soberania. Trata-se de uma primazia de amor, não de domínio.” (J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers (1885), p. 217).

Refira-se que Inácio elogia outras comunidades de modo semelhante: a Igreja de Éfeso “abundante em fé e amor”, a de Magnésia “em harmonia com Deus”, etc. (Efésios 1; Magnésios 1).


2. Estrutura eclesial no tempo de Inácio

A eclesiologia do início do século II estava em transição. Inácio foi um dos primeiros a formular a ideia do bispo monárquico local, como garante da unidade da comunidade. Todavia, essa estrutura ainda não existia em todas as Igrejas — e Roma é o caso mais notório.

A Carta de Clemente de Roma aos Coríntios (c. 96 d.C.), documento anterior a Inácio, nunca menciona um bispo romano individual; é escrita em nome da Igreja de Roma como corpo colegial:

 “Os apóstolos… estabeleceram os primeiros frutos de sua missão, provando-os pelo Espírito, e colocaram bispos e diáconos.” (1 Clemente 42:4-5)

“Os presbíteros foram instituídos pelos apóstolos e, depois deles, outros homens aprovados sucederam-lhes.” (1 Clemente 44)

A ausência de qualquer menção a um único bispo romano e o uso do plural (“bispos”) confirmam que Roma era então governada por um colégio de presbíteros, não por um pontífice individual.

Assim, quando Inácio escreve a sua carta (c. 107 d.C.), não havia ainda um “Papa” no sentido posterior. Ele se dirige à Igreja romana, não a um bispo romano.


3. A comunhão de Igrejas: modelo horizontal, não imperial

A teologia eclesial dos séculos I–II concebia a Igreja universal como uma comunhão de Igrejas locais, cada uma plena em si mesma, unida às demais pela fé e pela caridade.

As sete cartas autênticas de Inácio refletem uma eclesiologia de comunhão horizontal.

Cada Igreja local é presidida pelo seu bispo, símbolo da unidade local, mas todas são irmãs entre si. Inácio nunca fala de “o bispo dos bispos”.

Inácio exorta os fiéis:

“Onde estiver o bispo, aí esteja o povo, assim como onde estiver Cristo, aí está a Igreja. Onde está o bispo, aí deve estar a comunidade, assim como onde está Cristo Jesus, aí está a Igreja Católica.” (Epístola aos Esmirnenses 8,1-2).

Aqui, Igreja Católica significa universalidade da fé, não uma instituição centralizada sob Roma.

Jean Daniélou resume:

“A Igreja primitiva é uma comunhão de Igrejas locais unidas por vínculos de fé e caridade. Não há ainda um centro de comando jurídico.” (Histoire des Doctrines Chrétiennes avant Nicée (1952), p. 75).


4. A interpretação de Ireneu de Lyon

O primeiro autor a citar Roma como referência de ortodoxia foi Ireneu de Lyon, em Adversus Haereses III, 3, 2 (c. 180 d.C.):

“Com esta Igreja [de Roma], por causa de sua origem mais excelente, deve necessariamente concordar toda Igreja, isto é, os fiéis de toda parte, porque nela sempre se conservou a tradição dos apóstolos.”

Todas as Igrejas devem necessariamente “concordar” com Roma porque partilham a mesma tradição apostólicanão porque lhe devem obediência.

Aqui, a expressão convenire oportet significa “concordar na fé”, não “submeter-se juridicamente”. 

Ireneu argumenta a partir da fidelidade doutrinária de Roma, não de um poder papal.

Yves Congar observa:

“O primado romano, no início, é de honra e de caridade, não de jurisdição. Ele nasce do testemunho apostólico de Roma, não de um poder sobre as demais Igrejas.” (L’Église, de Saint Augustin à l’époque moderne (1970), p. 34).


5. Conflitos do século III: Cipriano e o “bispo dos bispos”

No século III, o papa Estêvão I tentou impor a sua decisão sobre a validade do batismo dos hereges.

Cipriano de Cartago respondeu de modo firme:

“Nenhum de nós se proclama bispo dos bispos, nem obriga os seus colegas à obediência pela tirania do medo.” (Epístola 59, 14)

Esse testemunho mostra que a autoridade universal de Roma era contestada e considerada inovação.


6. Conclusão

O elogio de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma como “a que preside na caridade” não afirma supremacia jurídica, mas reconhece exemplaridade espiritual.

Nos séculos I-II, a Igreja era uma comunhão de comunidades locais autónomas, unidas pela fé comum e pela caridade fraterna, não uma hierarquia monárquica.

O modelo papal centralizado é um desenvolvimento histórico posterior, sobretudo a partir do século IV, e não parte da estrutura original da Igreja apostólica.

 

Referências bibliográficas essenciais

  • Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos, em Patres Apostolici, ed. Funk, I, 1901.
  • 1 Clemente, ed. Lightfoot & Harmer, The Apostolic Fathers, 1891.
  • Ireneu de Lyon, Adversus Haereses, III, 3, 2.
  • Cipriano de Cartago, Epistulae 59, 14.
  • J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers, Londres 1885.
  • Henry Chadwick, The Early Church, Londres 1967.
  • Yves Congar, L’Église, de Saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970.
  • Jean Daniélou, Histoire des Doctrines Chrétiennes avant Nicée, Paris 1952.
  • Raymond E. Brown, The Churches the Apostles Left Behind, Nova Iorque 1984.

28 de setembro de 2025

SUBSTITUIÇÃO PENAL NA HISTÓRIA DA IGREJA


• Michael J. Vlach, “Penal Substitution in Church History,” The Master’s Seminary Journal 20:2 (2009): 199–214

 

 • Garry J. Williams, “Penal Substitutionary Atonement in the Church Fathers,” Evangelical Quarterly 83:3 (2011): 195–216

15 de agosto de 2025

ADOMNANO DE IONA NÃO ACREDITAVA NA ASSUNÇÃO CORPORAL DE MARIA


Adomnano de Iona (c. 625–704) foi um abade e estudioso irlandês, particularmente conhecido como biógrafo de Columba de Iona.

Escreveu uma obra intitulada De locis sanctis (“Sobre os lugares santos”), baseada nos relatos do bispo franco Arculfo, o qual fez uma peregrinação à Terra Santa (c. 680), e no regresso foi empurrado por uma tempestade para a costa ocidental da Grã-Bretanha e se tornou hóspede de Adomnano.

O seu testemunho demonstra a crença de que Maria morreu e foi sepultada, e que a sua ressurreição ainda não ocorreu. Afirmações semelhantes são feitas por Beda (672-735), que também criticou os apócrifos da Assunção. 

“Frequentador assíduo dos lugares santos, o santo Arculfo costumava visitar a igreja de santa Maria no vale de Josafá. Ela tem dois andares, e o andar inferior, com teto de pedra, está construído com uma redondeza admirável. Na parte oriental, há um altar, e à direita do altar está o sepulcro de pedra vazio de santa Maria, onde ela foi sepultada. Mas como, quando ou por quais pessoas seus santos restos mortais foram removidos deste sepulcro, ou onde ela aguarda a ressurreição, ninguém, como se diz, consegue saber ao certoAs pessoas que entram nesta igreja redonda inferior de santa Maria veem à direita, inserida na parede, a rocha sobre a qual o Senhor orou de joelhos no jardim de Getsêmani antes da hora de sua traição, naquela noite em que foi traído por Judas nas mãos dos pecadores. Agora, as marcas de seus dois joelhos são visíveis nesta rocha, profundamente implantadas como na cera mais macia. Assim nos contou nosso irmão Arculfo, um visitante dos lugares santos, que viu com os seus próprios olhos as coisas que descrevemos aqui. Na igreja superior de santa Maria, também redonda, quatro altares estão à vista.” 

(Adomnano de Iona, De Locis SanctisEd. Denis Meehan, The Dublin Institute for Advanced Studies, 1958, pag. 59)

8 de julho de 2025

O QUE OS PEDOBATISTAS NÃO ENTENDERAM

 

O batismo começa no coração do batizando.

O batismo não é um ato imposto de fora, nem algo que o ministro realiza por iniciativa própria.

É o batizando quem dá o primeiro passo, movido por fé, arrependimento e desejo de seguir a Cristo.

O papel do ministro? Responder ao pedido.

Ele não vai à procura de alguém para forçar um mergulho nas águas — ele atende ao apelo de quem decidiu morrer com Cristo e nascer de novo.

O batismo não é uma captura. É um consentimento.

“Eis aqui água; o que me impede de ser batizado?” (Atos 8:36)

O Evangelho chama. Mas a resposta é sempre pessoal.

Sem fé, o rito é só um banho.

Com fé, é sepultamento e ressurreição.

8 de junho de 2025

HANNO, O ELEFANTE BRANCO DO PAPA E O DESPERTAR DA REFORMA

 

Neste dia, há 509 anos, morria Hanno, o elefante branco do papa Leão X.

Hanno era um elefante-asiático albino, capturado na Índia e oferecido pelo rei D. Manuel I de Portugal a Giovanni de’ Medici (papa Leão X) por ocasião da sua coroação em 1514. Batizado em honra do general cartaginês Hanno, o animal tinha cerca de quatro anos quando aportou em Roma, vindo de Lisboa num navio adornado com bandeiras reais.

Quando a embaixada manuelina atravessou a cidade — um espetáculo que maravilhou os romanos — acompanhavam-na dois leopardos, uma pantera, papagaios multicoloridos, perus de plumagem rara e elegantes cavalos vindos da Índia. Hanno carregava às costas um palanque de prata, esculpido como um pequeno castelo, onde repousava um cofre com os presentes régios: mantos finamente bordados com pérolas e pedras preciosas e moedas de ouro cunhadas especialmente para a ocasião.

Em Roma, Hanno foi instalado inicialmente no pátio do Belvedere e depois transferido para um estábulo especialmente edificado entre a Basílica de São Pedro e o Palácio Apostólico. Tornou-se rapidamente o animal favorito da corte, participando em procissões e festas, exibições de “danças” e divertindo cardeais e romanos com jorros de água pela tromba.

As refeições de Hanno, que incluíam cana-de-açúcar, tâmaras e até vinho diluído, custavam à fazenda papal cerca de cem ducados mensais.

Dois anos após a chegada, em junho de 1516, Hanno adoeceu de angina — agravada pelo clima húmido da Cidade Eterna — e os médicos papais prescreveram-lhe um purgante especial: laxantes enriquecidos com ouro em pó, acreditando nas virtudes medicinais do metal precioso. O tratamento, longe de curá-lo, causou complicações fatais, e o elefante morreu a 8 de junho de 1516, com o próprio papa ao seu lado.

Leão X lamentou profundamente a perda e compôs um epitáfio que foi transcrito por Francisco de Holanda; Rafael chegou a pintar um fresco-memorial que hoje se perdeu. Hanno foi sepultado no Cortile del Belvedere e, pouco depois, inspirou o panfleto satírico de Pietro Aretino, “A Última Vontade e Testamento do Elefante Hanno”, onde o autor zombava dos príncipes e cardeais de Roma aproveitando-se da história do paquiderme.

A morte de Hanno não foi apenas um acontecimento exótico ou sentimental. À medida que o século XVI avançava, a figura do elefante branco — majestosa, inútil e tragicamente sacrificada em nome do luxo e da superstição — passou a ser evocada por críticos da Igreja como um emblema da decadência clerical.

Apenas um ano depois da morte de Hanno, em 1517, Martinho Lutero afixaria as suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, denunciando, entre outras coisas, a venda de indulgências e o desregramento da corte papal. O caso do elefante tornou-se, retroativamente, um símbolo pungente: o animal imperial morto pela vaidade, medicado com ouro enquanto o povo europeu se afundava em pobreza espiritual e material.


Referências Bibliográficas

Bedini, Silvio A. The Pope’s Elephant. Carcanet Press & Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

Aretino, Pietro. A Última Vontade e Testamento do Elefante Hanno (panfleto satírico, c. 1516). RTP Editora, 2004 (ed. fac-símile).

Oliveira, Maria Clara de. “Hanno: Representação de Poder na Arte Renascentista.” Dissertação de Mestrado, Universidade do Porto, 2018.

Kinsey, Lisa. “Elephants as Diplomatic Gifts in the Age of Discoveries.” Revista de História Moderna, vol. 27, 2018, pp. 45–68.

5 de junho de 2025

JOÃO CRISÓSTOMO: A FIDELIDADE ÀS ESCRITURAS É O CRITÉRIO DE IDENTIFICAÇÃO DA IGREJA VERDADEIRA

 

«Vem um pagão e diz: "Desejo tornar-me cristão, mas não sei a quem me juntar: há muita luta e fações entre vós, muita confusão: qual doutrina devo escolher?" Como lhe responderemos? "Cada um de vós", diz ele, "afirma: 'Eu falo a verdade'". Sem dúvida, isto está a nosso favor. Pois se lhe disséssemos que se deixe persuadir pelos argumentos, ele poderia ficar perplexo; mas se lhe dissermos que creia nas Escrituras, e estas são simples e verdadeiras, a decisão será fácil para ele. Se alguém concorda com as Escrituras, esse é o cristão; se alguém luta contra elas, esse está longe desta regra.» (João Crisóstomo, Homilia 33 sobre os Atos dos Apóstolos)

3 de junho de 2025

O PROBLEMA DO JUÍZO PRIVADO

 

Tenho observado que há uma falha grave na resposta dos protestantes às críticas dos apologistas católicos pop à Sola Scriptura. As suas respostas baseiam-se no seu próprio juízo particular em vez de se submeterem à autoridade dos apologistas católicos.

Os protestantes partem da suposição falaciosa de que se deve investigar lendo livros académicos em vez de ver vídeos do padre Paulo Ricardo ou confiar no Prof. Felipe Aquino. O problema é que, quando alguém faz uma verdadeira investigação, vai deparar-se com debates, divergências e formar um juízo privado.

Formar um juízo privado é um dos piores pecados intelectuais que alguém pode cometer. É por isso que nunca formo as minhas próprias opiniões ponderadas sobre nenhum assunto.

10 de maio de 2025

O PAPADO, OS FRANCISCANOS E OS VALDENSES: ENTRE SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

 

A Ordem dos Frades Menores nasceu de uma inspiração evangélica radical: a vivência da pobreza absoluta, da fraternidade e do desapego ao poder eclesiástico. Francisco de Assis não apenas recusava os privilégios clericais, como se colocava deliberadamente à margem das estruturas institucionais da Igreja. Sua regra era simples, oral, próxima do povo, e inspirada nos Evangelhos. Ele desejava que os seus irmãos fossem verdadeiramente "menores", isto é, sem posses, sem status e sem autoridade sobre os outros. Contudo, esse ideal sofreu um rápido processo de distorção e domesticação quando passou a ser regulado e apropriado pelo papado.

A primeira etapa dessa perversão deu-se quando o papa Inocêncio III aprovou a Regra franciscana oralmente em 1209, já com ressalvas sobre a sua viabilidade. Após a morte de Francisco (1226), o processo se acelerou. Gregório IX, seu antigo protetor, aprovou oficialmente uma versão institucionalizada da Regra, mais adaptada à burocracia romana do que à inspiração original. A partir de então, iniciou-se o processo de "clericalização" da ordem: criação de conventos estáveis, necessidade de autorização para pregar, exigência de formação universitária, e posse indireta de bens sob a forma jurídica de "propriedade papal". A bula Exiit qui seminat (1279) do papa Nicolau III foi decisiva nesse ponto: reconhecia que os bens dos franciscanos pertenciam à Santa Sé, que os "emprestava" à ordem — uma manobra jurídica que traía frontalmente o espírito de pobreza total de Francisco.

Esta submissão institucional transformou os Frades Menores em servidores do papado, relegando para segundo plano a sua vocação profética. Os frades passaram a ocupar cargos eclesiásticos, integraram-se ao sistema inquisitorial e participaram das disputas políticas medievais — tudo o que o "Poverello" rejeitava. O conflito entre a espiritualidade original e a ortodoxia institucionalizada gerou dissidências internas, como os "Espirituais", grupo que desejava seguir fielmente a Regra primitiva.

Entre os primeiros frades que resistiram a essa transformação, destaca-se Frei Leão, confidente íntimo de São Francisco. Leão foi o autor de textos como o Speculum Perfectionis, que revelam com clareza a ruptura entre o carisma fundacional e a ordem institucionalizada. Após a morte do fundador, Frei Leão se opôs abertamente ao ministro geral Elias de Cortona, que representava a ala mais próxima do papado e da política eclesiástica. Leão, assim como outros frades fiéis ao Testamento de Francisco, foi marginalizado, perseguido e exilado em eremitérios, onde viveu em silêncio e pobreza, resistindo espiritualmente à centralização romana. Ele simboliza a voz abafada do franciscanismo fiel à sua origem, recusando o caminho da obediência cega à autoridade papal que transformava o ideal evangélico em instituição eclesiástica funcional.

Em contraste com essa domesticação, o movimento dos valdenses, iniciado por Pedro Valdo no século XII, escolheu a via da fidelidade radical ao Evangelho mesmo à custa da exclusão da Igreja oficial. Valdo e seus seguidores também pregavam a pobreza voluntária, a simplicidade evangélica e a leitura da Bíblia, mas recusaram-se a submeter a sua missão à autoridade papal. Diferente dos franciscanos, os valdenses recusaram compromissos institucionais e, por isso, foram declarados hereges e duramente perseguidos. No entanto, a sua resistência preservou a sua independência espiritual. Enquanto os franciscanos foram incorporados à máquina eclesiástica, os valdenses mantiveram a sua autonomia em nome da fidelidade ao Evangelho primitivo.

A história da Ordem Franciscana mostra, assim, como o papado subverteu um movimento profético em nome da disciplina e da ortodoxia, sufocando as vozes que — como Frei Leão — apontavam para a incoerência de uma Igreja rica, autoritária e distante dos pobres. Enquanto os valdenses foram perseguidos por sua desobediência, os franciscanos foram recompensados por sua submissão. Mas ao custo da perda de sua alma originária.

Em Frei Leão, contudo, sobreviveu a memória incómoda de um Evangelho sem poder, sem propriedade, sem papado.

 

Referências Bibliográficas

  • Moorman, John R. H. A History of the Franciscan Order from Its Origins to the Year 1517. Oxford: Clarendon Press, 1988.
  • Burr, David. The Spiritual Franciscans: From Protest to Persecution in the Century After Saint Francis. Penn State Press, 2001.
  • Lambert, Malcolm. Medieval Heresy: Popular Movements from the Gregorian Reform to the Reformation. Oxford: Blackwell, 1998.
  • Esser, Kajetan. Origins of the Franciscan Order. Franciscan Herald Press, 1970.
  • Audisio, Gabriel. The Waldensian Dissent: Persecution and Survival, c.1170–c.1570. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

8 de maio de 2025

HABEMUS PAPAM CHRISTIANUM

 

DOCUMENTO CONFIDENCIAL – FUGA DE INFORMAÇÃO
Fonte: Alto Prelado da Cúria Romana, sob anonimato
Local: Residência papal, Vaticano
Data: [CONFIDENCIAL]

Discurso do Papa Petrus Secundus ("Pedro II") sobre a Abolição do Papado
Praça de São Pedro, Vaticano – Solene Consistório Extraordinário

Irmãos e irmãs em Cristo,

Com o coração pesado, mas iluminado pela fé que nos une, ergo a minha voz nesta praça sagrada, diante do altar do mundo, não para reafirmar poder, mas para testemunhar humildade.

Assumi este ministério não como trono, mas como cruz. E é da cruz que vos falo agora.

Nestes tempos de clamor humano, de fome de justiça, de sede de verdade, de uma terra exausta sob o peso das estruturas, escutei não só os clamores dos pobres e dos esquecidos, mas também o sussurro do Espírito Santo, que não habita palácios, mas corações.

A Igreja de Cristo nasceu entre pescadores, não entre príncipes. Cresceu partilhando o pão, não acumulando ouro. A força do Evangelho reside na fraqueza do mundo, e a sua glória, na simplicidade do amor.

Assim, após oração profunda, conselho de irmãos e discernimento sincero diante de Deus, anuncio ao mundo: o papado, como estrutura monárquica e centralizada, será abolido.

Não renuncio — dissolvo.
Não abandono — devolvo.

A autoridade será restituída às comunidades, aos bispos, aos fiéis. A Igreja, Povo de Deus, caminhará agora em colegialidade plena, livre de coroas, anéis e tronos. O Espírito sopra onde quer, e agora sopra para além destas muralhas.

Peço perdão pelas vezes em que este cargo se sobrepôs à mensagem de Jesus. Peço coragem a todos para construirmos uma Igreja horizontal, servidora, pobre com os pobres, universal em amor.

Não deixo um vazio. Deixo espaço. Para que o Cristo, cabeça da Igreja, seja o único centro. E para que cada um de vós, batizado, assuma o seu lugar na construção do Reino.

Que a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guarde os nossos corações neste novo êxodo.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Amém.

Discurso do Papa Petrus Secundus ("Pedro II") sobre a Abertura da Igreja ao Evangelho Pleno
Praça de São Pedro, Vaticano – Solene Consistório Extraordinário

Irmãos e irmãs em Cristo,

Hoje falo-vos não com a autoridade de um trono, mas com a liberdade de quem foi alcançado pela graça. Falo-vos como servo de Jesus, e apenas d’Ele.

A história nos concedeu séculos de luz, mas também séculos de sombras. Com temor e tremor, reconheço que, por vezes, em nome da Igreja, nos afastámos do Evangelho — aquele Evangelho simples, eterno, que proclama: “O justo viverá pela fé.” (Romanos 1:17)

Sim, afirmo hoje, com toda a clareza: a salvação é dom gratuito de Deus, pela fé em Jesus Cristo, e não por obras, nem por méritos, nem por rituais humanos. Nenhuma moeda lançada, nenhum documento assinado, nenhum castigo temporal pode acrescentar uma gota ao sangue que Cristo já derramou na cruz. Ele disse: Está consumado. E cremos n’Ele.

Por isso, diante do céu e da terra, declaro abolido o sistema de indulgências. O perdão não se vende. A graça não se negocia. A misericórdia não tem preço.

E com igual seriedade, rejeito a doutrina do purgatório como fardo que a Escritura não sustenta. O que está ausente do Evangelho, não pode permanecer como doutrina da Igreja. A cruz é suficiente. Cristo é suficiente.

Digo-vos com o coração nu: não há mais necessidade de intermediários terrenos entre Deus e o homem, pois “há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo” (1 Timóteo 2:5). Que se ouça isto em todas as línguas: solus Christus, sola fide, sola gratia.

E é por isso que, hoje, renuncio ao papado como instituição. Não por fraqueza, mas por fidelidade. O Corpo de Cristo não precisa de coroa, precisa de Cristo. O mundo já teve papas. Agora precisa de discípulos.

Que a Igreja se reconstrua, não sobre pedra de autoridade humana, mas sobre a Rocha da fé. Que todo o joelho se dobre — não diante de um nome entre homens, mas diante do Nome acima de todo nome.

A partir deste dia, caminharemos como irmãos, guiados pela Palavra, pelo Espírito e pela cruz vazia. Que este seja o início de uma reforma sem retorno — não de estruturas apenas, mas de corações.

A Deus toda a glória. A Cristo todo o senhorio. À Igreja, a liberdade dos filhos.

Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.
Amém.