10 de maio de 2025

O PAPADO, OS FRANCISCANOS E OS VALDENSES: ENTRE SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

 

A Ordem dos Frades Menores nasceu de uma inspiração evangélica radical: a vivência da pobreza absoluta, da fraternidade e do desapego ao poder eclesiástico. Francisco de Assis não apenas recusava os privilégios clericais, como se colocava deliberadamente à margem das estruturas institucionais da Igreja. Sua regra era simples, oral, próxima do povo, e inspirada nos Evangelhos. Ele desejava que os seus irmãos fossem verdadeiramente "menores", isto é, sem posses, sem status e sem autoridade sobre os outros. Contudo, esse ideal sofreu um rápido processo de distorção e domesticação quando passou a ser regulado e apropriado pelo papado.

A primeira etapa dessa perversão deu-se quando o papa Inocêncio III aprovou a Regra franciscana oralmente em 1209, já com ressalvas sobre a sua viabilidade. Após a morte de Francisco (1226), o processo se acelerou. Gregório IX, seu antigo protetor, aprovou oficialmente uma versão institucionalizada da Regra, mais adaptada à burocracia romana do que à inspiração original. A partir de então, iniciou-se o processo de "clericalização" da ordem: criação de conventos estáveis, necessidade de autorização para pregar, exigência de formação universitária, e posse indireta de bens sob a forma jurídica de "propriedade papal". A bula Exiit qui seminat (1279) do papa Nicolau III foi decisiva nesse ponto: reconhecia que os bens dos franciscanos pertenciam à Santa Sé, que os "emprestava" à ordem — uma manobra jurídica que traía frontalmente o espírito de pobreza total de Francisco.

Esta submissão institucional transformou os Frades Menores em servidores do papado, relegando para segundo plano a sua vocação profética. Os frades passaram a ocupar cargos eclesiásticos, integraram-se ao sistema inquisitorial e participaram das disputas políticas medievais — tudo o que o "Poverello" rejeitava. O conflito entre a espiritualidade original e a ortodoxia institucionalizada gerou dissidências internas, como os "Espirituais", grupo que desejava seguir fielmente a Regra primitiva.

Entre os primeiros frades que resistiram a essa transformação, destaca-se Frei Leão, confidente íntimo de São Francisco. Leão foi o autor de textos como o Speculum Perfectionis, que revelam com clareza a ruptura entre o carisma fundacional e a ordem institucionalizada. Após a morte do fundador, Frei Leão se opôs abertamente ao ministro geral Elias de Cortona, que representava a ala mais próxima do papado e da política eclesiástica. Leão, assim como outros frades fiéis ao Testamento de Francisco, foi marginalizado, perseguido e exilado em eremitérios, onde viveu em silêncio e pobreza, resistindo espiritualmente à centralização romana. Ele simboliza a voz abafada do franciscanismo fiel à sua origem, recusando o caminho da obediência cega à autoridade papal que transformava o ideal evangélico em instituição eclesiástica funcional.

Em contraste com essa domesticação, o movimento dos valdenses, iniciado por Pedro Valdo no século XII, escolheu a via da fidelidade radical ao Evangelho mesmo à custa da exclusão da Igreja oficial. Valdo e seus seguidores também pregavam a pobreza voluntária, a simplicidade evangélica e a leitura da Bíblia, mas recusaram-se a submeter a sua missão à autoridade papal. Diferente dos franciscanos, os valdenses recusaram compromissos institucionais e, por isso, foram declarados hereges e duramente perseguidos. No entanto, a sua resistência preservou a sua independência espiritual. Enquanto os franciscanos foram incorporados à máquina eclesiástica, os valdenses mantiveram a sua autonomia em nome da fidelidade ao Evangelho primitivo.

A história da Ordem Franciscana mostra, assim, como o papado subverteu um movimento profético em nome da disciplina e da ortodoxia, sufocando as vozes que — como Frei Leão — apontavam para a incoerência de uma Igreja rica, autoritária e distante dos pobres. Enquanto os valdenses foram perseguidos por sua desobediência, os franciscanos foram recompensados por sua submissão. Mas ao custo da perda de sua alma originária.

Em Frei Leão, contudo, sobreviveu a memória incómoda de um Evangelho sem poder, sem propriedade, sem papado.

 

Referências Bibliográficas

  • Moorman, John R. H. A History of the Franciscan Order from Its Origins to the Year 1517. Oxford: Clarendon Press, 1988.
  • Burr, David. The Spiritual Franciscans: From Protest to Persecution in the Century After Saint Francis. Penn State Press, 2001.
  • Lambert, Malcolm. Medieval Heresy: Popular Movements from the Gregorian Reform to the Reformation. Oxford: Blackwell, 1998.
  • Esser, Kajetan. Origins of the Franciscan Order. Franciscan Herald Press, 1970.
  • Audisio, Gabriel. The Waldensian Dissent: Persecution and Survival, c.1170–c.1570. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

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