sábado, 4 de dezembro de 2021

SEGUNDO A SUA VONTADE

 

Nele obtivemos uma herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade (Ef. 1:11).

O que significa dizer que Deus faz todas as coisas segundo a sua vontade?

i) Há uma tradição de voluntarismo teológico, atribuída a Scotus e Ockham, em que Deus age segundo a sua vontade absoluta - onde a sua vontade é independente dos seus outros atributos. Mas não há nenhuma indicação de que é isso que Paulo quer dizer.

ii) A linguagem de Paulo é algo redundante acumulando sinónimos para dar ênfase.

iii) Para responder à questão, devemos perguntar o que constitui o ponto de contraste implícito. O que significaria para Deus não fazer todas as coisas segundo a sua vontade? Qual é a tese oposta?

A alternativa a Deus agir segundo a sua vontade é Deus agir de forma contrária à sua vontade. E no contexto, essa é uma distinção significativa. Paulo dirige-se a cristãos gentios que vivem numa cidade pagã. Cristãos convertidos do paganismo greco-romano.

Na mitologia grega, mesmo um deus não fazia todas as coisas segundo a sua vontade. Às vezes, um deus era forçado a agir sob coação, contra a sua vontade. Até Zeus teve que se curvar diante da supremacia das Parcas. Da mesma forma, na bruxaria pagã, os deuses podem ser manipulados e coagidos através de rituais mágicos.

Portanto, pelo menos um ponto de contraste contextual é a afirmação retumbante de que o Deus cristão não está sujeito a nenhum poder superior. Ele não tem oposição efetiva. Isso contrasta com o fatalismo pagão e a feitiçaria pagã.

iv) Isto tem equivalentes modernos no teísmo do livre-arbítrio. De acordo com o teísmo do livre-arbítrio, Deus muitas vezes é forçado a agir contra a sua vontade, porque agentes demoníacos e humanos têm a capacidade de vetar a vontade de Deus. Eles podem e frustram as suas melhores intenções. Portanto, Deus tem de tentar contornar as suas criaturas indomáveis. Como os deuses gregos, os seus planos são muitas vezes frustrados por centros de poder rivais.

Da mesma forma, a bruxaria e a magia popular permanecem difundidas no Terceiro Mundo, enquanto bolsas da população do mundo ocidental voltam ao ocultismo numa cultura pós-cristã.

v) Isto também explica a ligação entre a vontade de Deus e "todas as coisas". A razão pela qual todos os eventos acontecem segundo a vontade de Deus é porque não há outro agente igual ou superior a Deus para neutralizar a sua vontade - ao contrário do fatalismo pagão ou do teísmo do livre-arbítrio. Dado que Deus não tem concorrência, então por defeito, cada evento se desenrola segundo a sua vontade, ao invés de apenas alguns eventos acontecerem segundo a sua vontade porque o seu poder é contrariado por outros agentes, que fazem o seu próprio caminho, apesar dos desejos ineficazes de Deus.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

O CÂNON CATÓLICO

 

Os apologistas católicos consideram o cânon protestante como um calcanhar de Aquiles da teologia protestante. Sendo o cânon uma questão legítima, ela é uma questão para os dois lados. E o que dizer do cânon católico?

Qual é a base do cânon tridentino? É a evidência? Era a evidência suficiente para favorecer o cânon tridentino?

Mas católicos e protestantes têm acesso à mesma evidência. Não é como se os Padres Tridentinos tivessem uma coleção extra de evidências dos arquivos secretos do Vaticano que inclinavam a balança a favor do cânon tridentino. Os protestantes observam a mesma evidência que os católicos.

Ou é a alegação de que a evidência é inconclusiva, de modo que deve ser suplementada pela autoridade de Roma. O cânon tridentino goza de um nível de certeza que vai além da evidência, devido à autoridade eclesiástica. De acordo com esse paradigma, a pura autoridade eclesiástica é o contrapeso que fecha a lacuna entre a evidência e a certeza.

Mas, nesse caso, a certeza é separada da evidência. Poderia haver certeza direta sem qualquer evidência. Certeza por puro decreto eclesiástico. No entanto, os apologistas católicos normalmente defendem o cânon tridentino com base na evidência, como eles a veem.

Se, por um lado, a evidência é suficiente para estabelecer o cânon, então o magistério é supérfluo. Se, por outro lado, a evidência é insuficiente para estabelecer o cânon, a autoridade eclesiástica evoca a certeza do nada, sem nada correspondente para apoiá-la. Eis o dilema.

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