sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Análise do Credo Niceno

 

É frequente ouvir cristãos fazerem das antigas declarações de fé como o Credo Niceno a sua referência. Se algo não está no Credo Niceno ou no Credo dos Apóstolos, então é secundário e opcional.

Mas Deus não nos mandou fazer desses credos a referência. Os credos podem funcionar como resumos de doutrina úteis e necessários, mas Deus nos ordena que creiamos na sua Palavra (a Bíblia). Ela é o padrão de referência primário. Os credos não substituem a fé na Escritura. Ela é o padrão pelo qual devemos viver.

Analisemos o Credo Niceno:

Cremos em um só Deus,

Pai Todo-poderoso,

i) A tradução portuguesa tem uma vírgula depois de "um só Deus," o que pode sugerir que “um só Deus” inclui o Pai, Filho, e Espírito Santo. Mas, que eu saiba, o texto grego não tem essa pontuação.

ii) Estas parecem ser cláusulas paralelas:

Cremos em um só Deus, Pai  

Cremos em um só Senhor Jesus Cristo

Se assim for, isso sugere que o Credo Niceno apenas afirma o Pai como o único Deus - não o Pai, Filho e Espírito inclusivamente. Nesse caso, é uma formulação muito defeituosa. [1]

Criador do céu e da terra,

i) Na Escritura, a criação do mundo não é exclusiva do Pai. Na verdade, o NT normalmente atribui essa ação ao Filho.

De facto, o Credo prossegue dizendo que "todas as coisas foram feitas por meio" do Filho.

Mas nesse caso, falha em destacar algum ato ou atributo particular que distingue o Pai do Filho.

ii) O Credo é deficiente a esse respeito porque a teologia patrística era subdesenvolvida. Por exemplo, um calvinista diria que a obra do Pai inclui eleição e justificação, bem como a ressurreição de Jesus dos mortos. Na economia da salvação, isso é distintivo do Pai.

de todas as coisas visíveis e invisíveis.

Em rigor, não diria que tudo o que é invisível foi criado. Os números não foram criados. Mundos possíveis não foram criados. As leis da lógica não foram criadas. São coisas inerentes à mente e à natureza de Deus.

Cremos em um só Senhor Jesus Cristo,

o único Filho de Deus,

nascido do Pai antes de todos os séculos,

Deus de Deus, luz de luz,

verdadeiro Deus de verdadeiro Deus;

gerado, não criado,

Uma cristologia que diz que o Filho deriva sua existência do Pai está mais perto do arianismo do que uma cristologia que afirma a asseidade do Filho. Eu não afirmo a geração eterna do Filho, mas sim a filiação eterna do Filho. Deus não é derivativo.

de igual substância do Pai;

Essa é a melhor parte do Credo. Infelizmente, falha em estender esse princípio ao Espírito. Nunca diz que o Espírito é consubstancial ao Pai. Essa é uma omissão grave.

por Ele todas as coisas foram feitas.

Por nós, homens, e por nossa salvação, Ele desceu do céu e se fez carne, pelo Espírito Santo, da virgem Maria, e se tornou homem.

Também por nós, foi crucificado sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado.

Ressurgiu no terceiro dia, conforme as Escrituras.

Subiu ao céu, está sentado à direita do Pai e de novo há de vir, com glória, para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim.

Tudo bem.

Cremos no Espírito Santo, Senhor e Vivificador,

i) Isso é bastante superficial. Falha ao não mencionar a obra do Espírito na regeneração e santificação. Mais uma vez, essa deficiência reflete o estado subdesenvolvido da teologia patrística.

que procede do Pai e do Filho.

Da mesma forma, não afirmo a processão eterna do Espírito. O Espírito Santo não é uma criatura eterna do Pai e do Filho (ou só do Pai como professam os ortodoxos orientais). O Espírito Santo procede de si mesmo. Deus não é derivativo.

com o Pai e o Filho é adorado e glorificado;

que falou através dos profetas.

Certo.

Cremos em uma santa Igreja católica e apostólica.

i) Não é redundante dizer que a igreja é "uma" e "universal"? Por definição, só pode haver uma igreja universal.

ii) Os outros pontos são um tanto arbitrários. Sim, a igreja é "apostólica", mas por que não dizer que a igreja é "profética, apostólica e dominical" (Ef. 2:20)?

Da mesma forma, a igreja é "espiritual". Uma comunhão do Espírito Santo

Confessamos um só batismo para remissão dos pecados.

Não confesso que o batismo confere a remissão dos pecados, se é isso que significa.

Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do mundo vindouro.

Certo.

Em suma, o Credo Niceno é muito irregular. Acerta várias coisas, erra em algumas coisas, e é defeituoso em algumas das suas formulações.

Notas

[1Em 1 Coríntios 8:6 Paulo diz “todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também, por ele”.

Mas aqui Paulo não chama apenas o Pai de o “único Deus”.

i) Uma vez que Paulo escreve em grego, ele usa sinónimos gregos para palavras hebraicas. E nós estamos a usar palavras em português. Mas se “retro-traduzíssemos” a afirmação de Paulo à luz do texto que está por detrás, isso capturaria a verdadeira força do uso das palavras:

Ouve, ó Israel: Yahweh (o Senhor) é nosso Elohim (Deus), Yahweh (o Senhor) é único (Dt 6:4).

todavia, para nós há um só Elohim, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Yahweh, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também, por ele (1 Cor 8:6).

ii) Elohim não denota necessariamente a única Deidade verdadeira. Mas em Deuteronómio 6:4, a única Deidade verdadeira é o referente pretendido. E Yahweh é uma designação distintiva para a única Deidade verdadeira no uso do AT. Portanto, esse é na verdade o termo mais forte.

Usando o Shemá como sua estrutura, Paulo atribui Elohim ao Pai e Yahweh ao Filho:

O Pai é o único Elohim

enquanto

O Filho é o único Yahweh

Isso é o que Paulo está a dizer. Ele pega na confissão resumida do monoteísmo do AT e distribui os dois títulos divinos ao Pai e ao Filho, respetivamente.

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