A Bíblia de Jesus era o cânon hebraico, conhecido hoje entre nós como o Antigo Testamento, que contém 39 livros segundo a contagem cristã ou 22 ou 24 segundo a contagem hebraica.
Uma evidência indireta do cânon hebraico, sobre o qual claramente existia um consenso no século I, é o modo em que Jesus fez referência ao primeiro e ao último mártir segundo a ordem tradicional hebraica:
“Por isso disse a Sabedoria de Deus: Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, e a alguns os matarão e perseguirão, para que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até ao sangue de Zacarias, que pereceu entre o altar e o santuário. Sim, vos asseguro que se pedirão contas a esta geração.” Lucas 11:49-51
Jesus refere-se aqui a todos os justos e enviados de Deus que sofreram o martírio segundo as Escrituras. A frase grega apo haimatos Abel eôs haimatos Zachariou, «desde (o) sangue de Abel ... até (o) sangue de Zacarias» (Lucas 11:51 = Mateus 23:35) abarca a totalidade dos mártires do Antigo Testamento, desde Abel às mãos do seu irmão Caim, até o martírio de Zacarias, que é narrado em 2 Crónicas:
"O Senhor enviou-lhes profetas que deram testemunho contra eles para que se convertessem a ele, mas não lhes deram ouvidos. Então o Espírito de Deus revestiu Zacarias, filho do sacerdote Joiadá que, apresentando-se diante do povo, lhes disse: «Assim diz Deus: Por que transgredis os mandamentos do Senhor? Não tereis êxito, pois, por ter abandonado o Senhor, ele vos abandonará a vós». Mas eles conspiraram contra ele, e por ordem do rei, o apedrejaram no átrio da casa do Senhor." 2 Crónicas 24:17-21
No entanto, a referência a Abel e Zacarias como o primeiro e o último mártir, respetivamente, registados nas Escrituras não é cronológica. Há pelo menos um mártir posterior a Zacarias, a saber, Urias, filho de Semaías, que foi assassinado no século VII a.C., durante o reino de Joaquim (Jeremias 26:20-24); entretanto Zacarias tinha sido martirizado muito antes, no século IX a.C., durante o reino de Joás em Judá.
Como deve entender-se então a referência de Jesus a Abel e Zacarias? A amplitude da lista de mártires não é evidente no Antigo Testamento das nossas versões modernas, pois a ordem dos livros difere da ordem hebraica. No Antigo Testamento da maioria das edições modernas, os livros dos Profetas aparecem no final, começando por Isaías e finalizando com Malaquias. Em contrapartida, os 24 livros do cânon hebraico (que correspondem aos 39 das Bíblias protestantes) se ordenavam como se segue:
I. A Torah (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio)
II. Os Profetas
A. Profetas anteriores:
Josué, Juízes, Samuel I e II, Reis I e II)
B. Profetas posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias)
III. Os Escritos (Salmos, Provérbios, Job, Cantares, Rute, Lamentações, Qohélet [Eclesiastes], Ester, Daniel, Esdras-Neemias, Crónicas I e II).
Em outras palavras, aqui Crónicas figurava no final da lista. A abrangente expressão de Jesus adquire sentido quando, no contexto de juízo pelo sangue inocente derramado, se entende como uma referência ao primeiro e último assassinato registado nas Escrituras, segundo a ordem tradicional do cânon hebraico: dizer «desde Abel até Zacarias» era equivalente a «de Génesis a Crónicas», ou seja desde o primeiro até ao último livro do cânon do Antigo Testamento. É como se hoje disséssemos, segundo a ordem tradicional do nosso Antigo Testamento, «De Génesis a Malaquias».
Logo, estas palavras do Senhor implicitamente sancionam o cânon hebraico como os oráculos de Deus confiados aos judeus, de que fala Paulo (cfr. Rom 3:2).
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