À resposta anterior recebi uma réplica do P. Juan
Carlos, que por minha vez respondi.
Este diálogo prosseguiu até que o P. Juan Carlos teve
que interrompê-lo devido às suas muitas ocupações.
[Juan Carlos] Tinha-te escrito uma carta muito mais
extensamente, mas mudei de opinião, e creio que seria mais conveniente nos
limitarmos a algum aspecto do tema, e segundo creio este é o aspecto central do
artigo que escrevi, e que não me parece tenhas respondido diretamente, a
saber, em que momento a Igreja passou de aceitar toda a tradição, a oral e a
escrita, ao meramente escrito. Em relação a tudo o resto que me dizes, e que li
com grande atenção, devo dizer-te que há coisas que me parecem muito oportunas,
observações muito claras. Por outro lado há também muitos raciocínios que não
acho lógicos, pois tentam provar coisas que eu aceito, junto com toda a Igreja
Católica, como as Escrituras serem inspiradas por Deus. Não compreendo por que
insistes em que "a pregação deve estar baseada na Bíblia", etc., pois
isso o aceitamos também nós, e poderia citar-te Padres e Concílios que dizem
isso. O que NÃO aceitamos é a doutrina da SOLA scriptura, como sabes.
[Fernando Saraví] Não me lembro de ter escrito a frase
que citas entre aspas. Sem dúvida, não tem muito sentido esforçar-se por
convencer alguém do que já crê. O tema central é se Sola Scriptura é um princípio
válido ou não é.
Antes de prosseguir o nosso diálogo, convém resumir – para evitar
mal-entendidos - o que os evangélicos entendem por Sola Scriptura. Digo isto
porque embora "Sola Scriptura" – somente a Bíblia - possa tomar-se
como uma declaração que não necessita de comentários, na realidade não é assim.
Ocorre mais ou menos como com a teoria da Relatividade ... que não significa
que "tudo é relativo". Sola Scriptura significa:
1. Que a Bíblia é a única regra
infalível da fé (doutrina) e da prática (costumes).
2. Que o ensino da Bíblia é
suficiente para que as pessoas aceitem Jesus Cristo como Senhor e Salvador, e
fazendo o que ela diz, alcancem a vida eterna.
Corolários:
1. A Igreja de Jesus Cristo não
necessita de revelações que não se achem explicitamente ou por lógica e clara
implicação na Bíblia.
2. Não há outra regra infalível
de fé fora das Escrituras.
Por outro lado, Sola Scriptura
NÃO significa:
1. Que a Bíblia contenha
absolutamente tudo o que Deus disse e fez.
2. Que a Palavra de Deus não se
tenha transmitido oralmente em muitas ocasiões e situações históricas.
3. Que a Igreja careça de
autoridade para interpretar, ensinar e defender a Palavra de Deus.
4. Que toda a tradição não
escrita deva ser rejeitada a priori e a fortiori.
Os cristãos evangélicos acreditam que a Igreja é coluna e fundamento da verdade, que deve ter mestres piedosos e
conhecedores das Escrituras, e que muitas tradições são expressões válidas da
fé cristã. Aceitam as expressões normativas dos Credos dos primeiros concílios
ecuménicos, e levam a sério os ensinos dos Padres, assim como dos muitos e
muito bons mestres, doutores e comentaristas que Deus deu à Igreja ao longo dos
séculos. Não acreditam que a Escritura seja de interpretação privada (livre
interpretação), mas sustentam o princípio do Livre Exame.
Se aceitam algumas coisas e
rejeitam outras, o fazem com base no que consideram ser os ensinos das
Escrituras. O ensino da tradição – sim, mesmo da sua própria tradição - , dos
concílios, dos Padres, etc, deve conformar-se às Escrituras, que são a Palavra
final, inspirada e infalível de Deus.
[Juan Carlos] De modo que, se não te importas, proponho
delimitar o diálogo à própria pergunta do artigo: qual seria então o teu
fundamento para pensar que o que não ficou escrito na Bíblia - por exemplo, a
suposta Assunção de Maria aos céus -, ao não encontrar-se explicitamente
relatado aí deva ser esquecido pela Igreja? Em outras palavras, QUANDO começou a
doutrina de só a bíblia?
Tu escreves-me, por exemplo:
“Até que ponto podem ser
relevantes para a doutrina e a prática as coisas que os autores do Novo
Testamento, inspirados pelo Espírito Santo, declinaram incluir nos seus
escritos?”
Conforme escreves, dá a impressão que para ti o que os
autores do NT não puseram por escrito é pelo menos "pouco relevante".
Estás a dizer, com bastante clareza, que o que não ficou escrito não é
relevante.
[Fernando Saraví] Sugiro-te que leias de novo o
parágrafo que precede a pergunta que citas. Em relação ao teu comentário, com
efeito, a minha resposta é, certamente, que o que não ficou escrito não é
relevante para a doutrina ou a prática.
Ora, o facto de eu ter uma resposta não significa que
a pergunta seja retórica. Dado que se trata de um diálogo sobre certas diferenças,
a pergunta exige uma resposta fundada.
Eu admitiria como resposta válida uma lista daquelas
coisas ensinadas por Jesus ou pelos Apóstolos que, não contendo-se explicitamente
ou por clara implicação nas Escrituras, são absolutamente necessárias para a
salvação do ponto de vista doutrinal ou prático. Evidentemente, tal lista
deverá ser acompanhada da documentação probatória de que tais coisas realmente
remontam a Jesus ou aos Apóstolos.
Em relação às coisas que não são ensinadas na Bíblia e
que hoje algumas Igrejas acreditam, muitas delas podem ser admitidas como
crenças piedosas desde que não se oponham às Escrituras, mas de modo algum como
algo que é necessário para a salvação. Isso não exime a Igreja de investigar
diligentemente a origem de tais crenças, se é que quer cumprir a sua função
como proclamadora da Verdade revelada por Deus. Se a origem é duvidosa ou diretamente
espúria, pois... terá que discerni-lo e ensiná-lo claramente.
[Juan Carlos] Terias gostado que os escritores
sagrados tivessem terminado os seus escritos com palavras deste teor:
"Pois bem, aqui termina o meu evangelho-carta-atos, tudo o que eu não
escrevi no meu livro, seja considerado irrelevante, ainda que tenha sido
ensinado por Jesus e pelos Apóstolos". Considerarás ridícula tal
expressão. Mas parece que não te é tão ridículo o conteúdo, pois perguntas
até que ponto pode ser relevante o que não escreveram, sugerindo claramente a
resposta: "pouco relevante, ou melhor, totalmente irrelevante, pois o
Espírito Santo lhes mandou que o deixassem de fora". Ou seja, gostarias que
cada livro bíblico tivesse terminado como te disse mais acima.
[Fernando Saraví] Suponho que um pouco de reflexão te
convencerá da fraqueza deste argumento; parece-me que não corresponde ao nível
desta discussão. A minha resposta breve é não, não gostaria, e além disso
acharia muito difícil de acreditar que um escritor inspirado pelo Espírito Santo
tivesse escrito tal coisa: “...seja considerado irrelevante, ainda que tenha sido
ensinado por Jesus e pelos Apóstolos”. Quanto à ideia subjacente não se trata
do meu gosto pessoal, mas dos factos tal como estão registados na história. Creio
que um exame da evidência permite concluir razoavelmente que nada importante
“para a vida e para a piedade” ficou de fora, e quem opine o contrário deverá fornecer evidência de quais verdades ou mandamentos fundamentais foram excluídos com o
consentimento do Espírito Santo para serem transmitidos por via oral.
[Juan Carlos] No entanto isso não é assim, Deus não
teve esse plano. TUDO o que disse e fez Jesus é relevante. "Ide e ensinai a
guardar TUDO o que vos disse", disse Jesus. Houve algum apóstolo que pelo
menos tenha sugerido que o que ele escreveu transmite TUDO? Realmente acreditas
que é irrelevante o que não ficou escrito? A questão é esta: foi intenção de
Deus REDUZIR o relevante da doutrina ao que ficou por escrito ou não? Tu dizes
que sim, segundo toda a tua carta, eu digo que não.
[Fernando Saraví] Dizer que tudo o que disse e fez
Jesus é relevante pode soar muito piedoso, mas creio que um instante de
reflexão mostrará que é pouco realista. A Bíblia cala por completo tudo o que
Jesus fez e disse até aos doze anos, e desde aí até aos (tradicionalmente)
trinta anos. A Bíblia cala inclusive o conteúdo preciso dos ensinamentos
relativos a muito do que Jesus disse depois de ressuscitar (Lucas 24:25-27,
44-47; Atos 1:3). Com toda a probabilidade, estas coisas foram, no entanto,
incorporadas na paradosis apostólica,
inicialmente oral e depois cristalizada por escrito no Novo Testamento. Eu creio
que é bastante razoável afirmar que, ainda que nenhum Apóstolo individualmente
tenha transmitido TUDO o que Jesus ensinou e mandou, o seu trabalho conjunto no
Novo Testamento é um registo confiável e perpétuo do cumprimento dessa ordem do Senhor ressuscitado.
Embora se trate de uma hipérbole, julgo que há
muito de substância no dito em João 21:25, “Jesus fez também muitas outras coisas,
tantas que se cada uma delas se escrevesse, penso que os livros que poderiam escrever-se
não caberiam no mundo”. Há pouco tempo li que se escreveram algo como 65000 livros
sobre Jesus.
Ora, o argumento que tu aplicas às Escrituras se
aplica também à tradição oral: também não poderia conter TUDO o que fez e disse
Jesus. Mesmo que pudesse, seria impossível para qualquer cristão individual,
por mais erudito e consagrado que fosse, ter um conhecimento adequado de semelhante
hipotético cúmulo de informação. Por outro lado, como antes te assinalava, à
diferença das Escrituras, jamais Igreja alguma determinou sequer aproximadamente
o conteúdo da suposta tradição oral de origem apostólica.
De modo que, voltando ao tema, creio que na revelação
escrita em seu conjunto – Antigo e Novo Testamento - está contido TUDO o que
Deus quis que soubéssemos para a nossa salvação e vida de fé. Aplica-se aqui aquilo
de “As coisas
encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, mas as reveladas são para nós e para
os nossos filhos, para que observemos todas as palavras desta Lei” (Deut 29:29).
[Juan Carlos] Não interessa o que a ti ou
a mim nos pareça, como tu bem dizes citando Santo Agostinho, pois em questões
de religião devemos buscar o que DEUS estabeleceu, não o que NÓS cremos ser o
melhor (Jesus, tudo o que estabeleceu, o estabeleceu de modo oral... curioso,
verdade?.
[Fernando Saraví] Acabas de tirar do contexto a citação
a que te referes, uma vez que o bispo de Hipona continua dizendo “Indubitavelmente
existem Livros do Senhor, a cuja autoridade ambos damos nosso consentimento,
submissão e obediência; neles pois busquemos a igreja, e neles discutamos a
nossa disputa”. Ou seja,
que as Escrituras eram o árbitro final, e isto devido a que são o que Deus
estabeleceu.
Deus mandou a Moisés que escrevesse tudo quanto lhe havia
mandado, sem acrescentar nem diminuir (Deut 4:2). Também a Isaías, etc. Jesus e
os Apóstolos usaram as Escrituras, não a tradição oral, para ensinar e refutar
falsas crenças.
É verdade que Jesus não escreveu nada, como também é verdade que, desde a
criação do mundo até ao tempo de Moisés não houve um registo inspirado do que
Deus quis que soubéssemos... e não se trata de uma crónica exaustiva da história
do mundo nem de TUDO o que Deus fez nesse tempo, mas da história da salvação.
No caso dos ensinamentos de Jesus, o intervalo entre os factos e o seu registo
escrito é de umas poucas décadas se tanto.
Ambos admitimos que os Apóstolos não agiram caprichosamente, mas em obediência à ordem do Senhor de transmitir fielmente
os Seus ensinamentos. Quando São João recebeu a Revelação ou Apocalipse, Jesus
lhe mandou que a escrevesse: Apoc 1:3, 11, 19; 2:1, 12 etc.).
Em outro lado, São João afirma que escreve “o que foi desde o princípio, o que
ouvimos, o que vimos com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as
nossas mãos apalparam, isto vos anunciamos a respeito do Verbo da vida.” (1 João 1:1).
[Juan Carlos] No meu artigo eu dizia que é preciso ver o
que Deus quis fazer e como Deus o quis fazer. Ele pode ter excluído da doutrina
revelada - como o fazem, de facto, os evangélicos - tudo o que não está escrito explicitamente na Bíblia, ou melhor dizendo, pode ter querido que nós
nos fiquemos com o que explicitamente diz a Bíblia, e basta. Mas... de onde
tiramos essa doutrina? É evangélica? Foi ensinada por Jesus ou pelos apóstolos?
Podes dar-me algumas citações? Que me dizes das citações onde se fala de
conservar a doutrina oral, de cujas citações não mencionas nada?
[Fernando Saraví] Creio que podemos conhecer o que
Deus quis fazer com base no que efetivamente fez, visto que os Seus propósitos
não podem ser torcidos pela vontade do homem. É um erro grave sustentar que os
evangélicos excluem da doutrina revelada tudo o que não está explicitamente
escrito na Bíblia. Um exemplo óbvio deste erro é a doutrina da Santíssima Trindade,
que não é ensinada explicitamente na Bíblia, mas pode deduzir-se dela como uma
necessidade lógica das afirmações que sustentam que há um só Deus verdadeiro,
que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são Deus e ao mesmo tempo Pessoas
diferentes.
Do mesmo modo, a doutrina da Sola Scriptura pode deduzir-se
como logicamente necessária a partir dos dados da Bíblia e da história. Mais à
frente ocupo-me da história; por agora vejamos como se deduz da Bíblia, porque
[1] Jesus advertiu muito
seriamente contra invalidar as Escrituras – obrigatórias e inspiradas - por
causa da tradição oral (Mar 7:8-9 e par.). Não falamos aqui de
quaisquer tradições, mas das tradições religiosas piedosamente transmitidas e
conservadas pelos mestres do seu tempo.
[2] Além da Sua própria Palavra
de plena autoridade, o Senhor recorreu sempre às Escrituras para decidir
qualquer controvérsia.
[3] Porque Jesus Cristo acusou
os judeus não de ignorar as tradições orais, mas de não compreender que as
Escrituras davam testemunho d`Ele (João 5:39).
[4] Porque aos Saduceus, que
rejeitavam a tradição oral dos fariseus, o Senhor não lhes reprovou isso, mas
sim o desconhecer "as Escrituras e o poder de Deus" (Mar 12:24-27 e
par.).
[5] Os Apóstolos e alguns dos
seus condiscípulos (como Marcos ou Lucas) consideraram apropriado – inspirados
seguramente pelo Espírito Santo - pôr por escrito os seus ensinamentos, como
Moisés, Isaías e o resto dos autores humanos do AT puseram por escrito os seus.
[6] São Paulo afirma a natureza
essencialmente inspirada das Escrituras e a sua absoluta suficiência quando
escreve a Timóteo (2 Tim 3:15-17); o facto de o Apóstolo se referir ao AT não
modifica o seu juízo sobre a natureza da Escritura quanto ao seu caráter
normativo.
[7] Os escritos apostólicos são
considerados "Escritura" (2 Pedro 3:15-16; 1 Tim 5:18 comparado com
Lucas 10:7).
[8] Considera-se louvável que
os que ouviam os Apóstolos vissem por si mesmos se a pregação era consistente
com o já revelado por escrito no AT (Atos 17:11).
[9] Ao dirigir-se aos Coríntios
a propósito das contendas entre fações, São Paulo recomenda que, "como
está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf. Jer 9:
23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "a não ir além do que
está escrito" (4:6). Seja como for que se veja este versículo, parece claro
que para São Paulo o escrito tinha um caráter normativo que ia para lá dos
pareceres individuais.
[10] A própria Bíblia dá testemunho
do pouco confiável que é a tradição oral no médio ou longo prazo. "Por
isso o dito se propagou entre os irmãos que aquele discípulo não morreria, mas
Jesus não disse que não morreria..." (João 21:23). São João obviamente
corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea.
[Juan Carlos] Ou pelo menos, foi ensinada pela Igreja
em algum momento da história? Tu sabes quando os cristãos começaram a guiar-se
exclusivamente pelo que diz a Bíblia, deixando de lado os ensinamentos da
Igreja que não estavam contidos explicitamente na Bíblia?
[Fernando Saraví] Como o indiquei antes,
“explicitamente” é uma qualificação que não convém nem às crenças católicas
romanas, nem às cristãs evangélicas (nem às ortodoxas orientais se formos por
aí).
Além disso, não estávamos a discutir os ensinamentos
da Igreja. Como já disse, os evangélicos não questionam o direito ou melhor
dito a obrigação kerigmática, docente e disciplinar da Igreja, mas os colocam
em subordinação ao claro ensinamento escritural.
O foco da discussão era a Sola Scriptura (tal como a delimitei
antes) e consequentemente, os supostos ensinamentos orais de origem apostólica
que não se encontram na Bíblia.
O problema é que tal tradição oral, se é que existe,
carece da precisão, clareza, incorruptibilidade e confiabilidade da revelação
escrita. Se pomos como exemplo os ditos e feitos de Jesus e dos Apóstolos que
não aparecem no NT, sabes perfeitamente que há um grande acúmulo de literatura
apócrifa que tentou preencher este vazio. Diversos estudiosos tentaram
identificar possíveis ditos autênticos de Jesus que puderam ter-se transmitido
por esta via, com um sucesso muito baixo (por exemplo, o luterano Joachim
Jeremias no seu “Palavras desconhecidas de Jesus”). Estas fontes seguramente
confiariam em diversas tradições – como a refutada por São João que já mencionei
- que não eram de modo nenhum confiáveis. Acertadamente, a antiga
Igreja católica cedo rejeitou todas estas lendas e especulações.
Não insisti, como assinalas, nas ordens apostólicas
de receber o que eles ensinaram tanto por escrito como verbalmente (embora na
minha primeira carta tenha incluído uma série de citações a tal respeito) por
uma razão muito simples. Os Apóstolos receberam do Senhor a sua missão como
Testemunhas do Cristo ressuscitado. Enquanto eles viviam, era natural que tanto
os seus ensinamentos orais como escritos fossem recebidos como a doutrina
autorizada pelo próprio Deus. Isto não está em discussão: os Apóstolos
ensinaram com autoridade tanto oralmente como por escrito. No entanto, há uma diferença
importante entre autoridade e infalibilidade. Como católico, podes facilmente
entender esta diferença, pois aplica-se ao magistério ordinário e extraordinário
(ex cathedra) do Papa.
O facto dos Apóstolos terem possuído tal autoridade
não significa que fossem infalíveis em todos os seus ensinamentos e condutas.
Na realidade existem indicações de que este não era o caso, como quando São
Paulo teve de exortar São Pedro pelo seu comportamento reprovável em Antioquia
(Gálatas 2:11-14). Também São Paulo, nos seus conselhos aos coríntios,
distingue entre o que é mandamento do Senhor do que é a sua própria postura,
sem dúvida válida e autorizada mas ainda assim não necessariamente inspirada (1
Cor 7:10,12).
Por conseguinte, é preciso traçar uma distinção entre tudo o que os Apóstolos
fizeram e disseram, e os seus ensinamentos inspirados e portanto infalíveis.
Estes últimos se encontram com certeza no Novo Testamento. Dos outros, pouco
sabemos. As supostas tradições orais, pela sua própria natureza, não são fontes
confiáveis, muito menos infalíveis, do que os Apóstolos ensinaram. A Bíblia
sim.
Deveria ser evidente que a Igreja primitiva compreendeu claramente a diferença
entre a autoridade e vigência permanente do escrito. Não se pode assinalar com
precisão um “momento”, porque não o houve. Depois que os Apóstolos morreram,
persistiram por um tempo alguns dos seus ensinamentos orais, transmitidos pelos
seus ouvintes diretos. A julgar por alguns deles que menciona Ireneu, tais
ensinamentos sofreram rápida corrupção. O exemplo das tradições supostamente
apostólicas conservadas pelo ilustre mas pouco crítico bispo de Hierápolis,
Papias, devia bastar como advertência.
Já desde o século II os mestres da Igreja, como
Justino, Ireneu, Tertuliano, Cipriano, etc., provam as suas doutrinas mediante as
Escrituras. Sem dúvida que defendem o papel fundamental da Igreja, assim como a
sua tradição interpretativa, mas não a colocam jamais acima das Escrituras. Em
outras palavras, ainda que não usassem a expressão “Sola Scriptura” procuravam
basear os seus ensinamentos no escrito, e não em supostas tradições apostólicas
independentes. Este feliz estado de coisas manteve-se por séculos, e deu como
resultado global (sem discutir detalhes como o batismo infantil) a sustentação
da ortodoxia bíblica pelo conjunto da Igreja, expressa entre outras coisas pelos
Credos históricos.
Já no segundo século – ou seja, logo que morreu o último Apóstolo - se perfila
o núcleo do que constituirá o NT. A autoridade apostólica, a consistência
interna, a antiguidade e a catolicidade destes Escritos sagrados foram alguns dos
fatores que influíram na sua pronta aceitação. Em finais do século IV o cânon
alcançou a sua forma atual, mas já existia desde muito antes um amplo consenso
em termos gerais. Ao fixar o cânon, a Igreja universal não concedeu aos
escritos alguma autoridade que não tivessem intrinsecamente, como Palavra
inspirada de Deus. O que a Igreja fez foi dar testemunho ao mundo de tal qualidade.
Notavelmente, em contrapartida, a Igreja primitiva não fez a mesma coisa com
alguma tradição oral.
Um par de séculos mais tarde, no entanto, começou a
propiciar-se a noção da tradição como “outra fonte de revelação”. O sucesso de
tal inovação evidencia-se no curso posterior dos factos. Quando chegamos ao
século XVI o clamor de reforma dentro da Igreja do Ocidente (governada desde
Roma) era tão intenso como extenso. Os Reformadores não fizeram senão
reformular um princípio que tinha sido informalmente admitido já pela Igreja subapostólica.
[Juan Carlos] A minha posição é esta: a própria Bíblia
- tomada por ti e por mim como a Palavra de Deus escrita - ensina o contrário:
nunca limita a revelação a um livro ou a cem livros.
[Fernando Saraví] Pois, querido irmão, este é um argumento
perigosíssimo. Tanto os católicos como os evangélicos sustentam que a revelação
de Deus em Cristo é a Palavra divina final e definitiva para a humanidade, e
que não devemos esperar outra revelação antes de o Senhor voltar. Que a Bíblia
não o diga explicitamente não significa que não possa corretamente inferir-se
dela (Hebreus 1:1-3, etc).
Da perspetiva evangélica, os desvios doutrinais mais graves ocorreram não pela
adesão à Sola Scriptura, mas precisamente pelo seu abandono. Isto se aplica
tanto aos católicos como aos protestantes. Por exemplo, no mormonismo as
revelações de Joseph Smith têm precedência sobre a Escritura. Entre as
Testemunhas de Jeová pouco importa o que os membros interpretem: o seu Corpo
Governante decide por eles qual é A interpretação das Escrituras (e as mudam com
frequência). De igual modo, no catolicismo romano é o abandono de Sola
Scriptura o que torna tão difícil de conciliar as diferenças com outros
cristãos que partilham com ele muitas doutrinas fundamentais.
[Juan Carlos] (o que dizes de Apocalipse 22 é uma
aplicação que tu fazes a toda a Bíblia do que São João escreveu em relação às
profecias de UM livro: com que autoridade o fazes? posso eu pensar que NÃO se
referia a toda a Bíblia? quem decide a questão?).
[Fernando Saraví] Parece-me que não leste esta parte
com cuidado. A minha alusão a Apocalipse 22 era uma resposta concreta a esta
afirmação tua: “Ninguém pode dizer baseado em algum texto bíblico que os autores
dos textos do Novo Testamento quiseram limitar o ensinamento de Jesus ou dos
Apóstolos ao que eles estavam escrevendo”.
Agora lê COM CUIDADO o que eu escrevi a tal respeito
(depois de citar o texto): “Isto significa que, contrariamente ao que
dizes, pelo menos um autor bíblico, e um muito importante, considerou
apropriado restringir taxativamente os limites desta revelação. Claro está que
em sentido estrito esta advertência somente é válida para o Apocalipse, mas por
outro lado o facto de ter sido provavelmente o último livro bíblico a
escrever-se, e a Igreja primitiva ter considerado apropriado colocá-lo no final
da Bíblia não pode passar-se levianamente por alto”.
Da advertência de João observa-se que ele considerava fundamental que este
documento não fosse alterado de modo algum. Não achas que este princípio é
apropriado para todo o NT?
Muito interessante o debate!!!!!O debate está em um bom nível e não possui aquele clima beligerante,rude e agressivo de alguns "pseudoapologistas"!
ResponderEliminarUm velho adágio diz: Um bom debate é feito por bons debatedores!Sou cristão de origem reformada e sou adepto do princípio da sola scriptura e considerei a resposta muito bem elaborada e fundamentada!
Continuem nesse bom nível!!!!
Foi um debate diferenciado, de fato, não como tantos outros debates entre católicos e protestantes. Por outro lado eu ouso afirmar que o lado católico errou por vezes ao interpretar as afirmações do lado protestante e isso levanta questões muito sérias. Eu também não vi do lado católico respostas a todos os argumentos protestantes, e acredito que este tenha deixado algumas coisas passarem para o bem do curso do debate. De forma geral, esta leitura foi um ensaio apologético de muito alto nível!
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