segunda-feira, 9 de setembro de 2024

O "CONCÍLIO DE ROMA" DE 382 E O DECRETO FANTASMA DE DÂMASO SOBRE O CÂNON BÍBLICO

 

O que foi exatamente o "Concílio de Roma" de 382 d.C.? E como é que ninguém ouviu falar dele antes do século XVIII?

O único registo que temos deste "Concílio" vem de um códice do século VIII, conhecido como códice de Ragyndrudis, que contém um manuscrito habitualmente intitulado como "Decretum Gelasianum". O texto completo está aqui: link.

- Os capítulos I e II são interessantes, listam as atas de um suposto Concílio de Roma presidido pelo papa Dâmaso, ​​junto com o cânon bíblico.

- Os capítulos III-V são menos pertinentes, listam alguns decretos do papa Gelásio (492-496). No entanto, também a credibilidade destes decretos é duvidosa, porque o texto menciona factos que ocorreram após 496 d.C., data da morte de Gelásio (ver abaixo).

Este documento é confiável?

Ao que tudo indica este documento é uma completa fraude, por quatro razões:

1) Não existe nenhuma consciência do "Decreto de Dâmaso" ao longo da história. Existem várias figuras históricas que não estão cientes deste Decreto sobre o cânon bíblico. Isso inclui Jerónimo, que naquela época estava a produzir a sua tradução da Bíblia em Latim, conhecida como Vulgata Latina. Jerónimo negou explicitamente a canonicidade dos livros apócrifos incluídos no suposto decreto de Dâmaso e introduziu juízos depreciativos sobre estes livros que ecoariam pelos séculos seguintes. Nenhum dos Padres Latinos (para não mencionar os Padres Gregos) demonstra qualquer conhecimento de um decreto sobre o Cânon das Escrituras; nunca o referenciam, ou mesmo sugerem estar cientes da sua existência. É também óbvio que os teólogos medievais até ao tempo do Cardeal Caetano no século XVI não têm ideia da sua existência, citando o cânon do AT como Martinho Lutero faria, e não como o "Papa Dâmaso do Concílio de Roma de 382" fez.

2) Não há nenhuma evidência do Concílio. Não há registo histórico na antiguidade de qualquer Concílio realizado em Roma no ano de 382! Tão simples quanto isso. Temos histórias eclesiásticas detalhadas da Antiguidade Tardia, com descrições de concílios, sínodos e procedimentos da igreja. Não há nenhum registo de um concílio realizado em Roma em todo o século IV, sob o Papa Dâmaso ou qualquer outro. No entanto, temos registos de concílios de cidades menos significativas, como Cartago, realizados nos séculos III, IV e V.

3) A era das falsificações. No período de 500-1000 d.C., sabe-se que o papado se envolveu numa vasta gama de falsificações documentais, para provar que era a igreja suprema (na verdade a única) em todo o mundo, que o seu bispo era o Pastor Universal e que tinha direito de governar temporalmente e conquistar reinos mundanos como bem entendesse. A existência deste documento reforça o direito do papado em todas estas reivindicações.

4) Evidência textual de falsificação. O próprio texto mostra sinais de falsificação. Uma das melhores análises críticas foi feita por F. C. Burkitt em 1913:

Burkitt observou que:

- O texto supostamente datado de 382, ​​contém uma citação de um livro de Santo Agostinho escrito em 416.

- A parte atribuída ao Papa Gelásio I (492-496) contém factos que ocorreram após 496.

- A existência deste "Concílio de Roma de 382" foi alegada pela primeira vez em 1794, por um padre jesuíta espanhol exilado em Itália de nome F. Arévalo. Em outras palavras, uma falsificação criada pela primeira vez na Idade Média foi reutilizada uma segunda vez como evidência forjada, por um escritor muito fiel ao papado do século XVIII.

Burkitt subscreve, então, a conclusão do professor Ernst von Dobschütz:

«Todos os cinco capítulos [do Decretum Gelasianum] pertencem à mesma obra original, que não é um decreto ou carta genuína de Dâmaso ou Gelásio, mas uma produção literária pseudónima da primeira metade do século VI (entre 519 e 553)»

https://www.tertullian.org/articles/burkitt_gelasianum.htm

Entretanto, na realidade paralela da apologética católica podem se ler coisas deste tipo:

O cânon das Escrituras, Antigo e Novo Testamento, foi fixado definitivamente no Concílio de Roma em 382, sob a autoridade do Papa Dâmaso I

Como se o bispo de Roma tivesse poder para impor às outras igrejas alguma coisa por decreto...

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