sexta-feira, 20 de setembro de 2024

NOS ALVORES DA REFORMA

 

«Os últimos anos de Júlio (que ficou conhecido como il papa terribile) viram os Estados Papais expandirem-se, com a tomada de Modena (1510) e Parma e Piacenza (1512), e os franceses expulsos de Itália. Ao mesmo tempo que tornava o governo papal uma realidade nos Estados Pontifícios, as campanhas militares de Júlio, nas quais teve um papel vigoroso até ao fim da sua vida, atraíram críticas crescentes de toda a Europa por parte daqueles que sentiam que este não era o tipo de liderança esperado de um papa. No diálogo satírico “Júlio Excluído do Céu” [1], citado no início deste capítulo, o papa, chegando às portas do Céu com vinte mil soldados mortos nas suas guerras, vangloria-se a São Pedro das suas conquistas:

Júlio: Ainda deves estar a sonhar com aquela antiga igreja na qual, com alguns bispos famintos, tu próprio, um pontífice a tremer de frio, estavas exposto à pobreza, ao suor, aos perigos e a mil outras provações. Mas agora o tempo mudou tudo para melhor... se pudesses ver a vida em Roma hoje: todos os cardeais vestidos de púrpura, acompanhados por regimentos inteiros de vassalos, os cavalos mais do que dignos de um rei, as mulas enfeitadas com tecidos finos, ouro e joias, algumas até calçadas com ouro e prata! Se pudesses vislumbrar o sumo pontífice, transportado numa cadeira de ouro sobre os ombros dos seus homens, enquanto o povo de todos os lados presta homenagem com um aceno da mão; se pudesses ouvir o trovão do canhão, o retumbar das cornetas, o toque das trombetas, ver os clarões das armas e ouvir os aplausos do povo, os vivas, toda a cena iluminada por tochas brilhantes e até os maiores príncipes a beijar o pé bendito… se pudesses ver e ouvir tudo isto, o que dirias?

Pedro: Que eu estava a ver um tirano pior do que qualquer outro no mundo, o inimigo de Cristo, a ruína da igreja.

Quando São Pedro se recusa a admitir Júlio no céu, o papa ameaça invadir o Céu e expulsar Pedro. Críticas como esta do papado contemporâneo eram moderadas em comparação com as que viriam...»

Roger Collins, Keepers of the Keys of Heaven: A History of the Papacy, Orion Publishing CO, 2010)

 

Nota

[1] Os seus contemporâneos e a maioria dos académicos modernos atribuem a autoria do diálogo “Júlio Excluído do Céu” (Latim: Iulius exclusus e coelis) ao humanista e teólogo holandês Erasmo de Roterdão, embora seja tecnicamente uma obra anónima.

O sujeito do diálogo, Júlio II (papa 1503-1513), era famoso pelo seu patrocínio das artes e pela sua vida imoral e belicosa. O diálogo, que satiriza as suas ambições mundanas e os seus abusos de poder, foi imensamente popular nos anos que antecederam a Reforma Protestante. Teve treze edições em quatro anos e foi rapidamente traduzido para alemão, inglês e francês, ficando disponível para um largo público.

É mais um testemunho do estado decadente e corrupto em que se encontrava a Igreja de Roma, do descontentamento social, da ânsia de liberdade e do desejo generalizado de uma grande reforma religiosa antes da explosão da Reforma Protestante.

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