«Os últimos anos de Júlio (que ficou conhecido como il papa terribile) viram os Estados Papais expandirem-se, com a tomada de Modena (1510) e Parma e Piacenza (1512), e os franceses expulsos de Itália. Ao mesmo tempo que tornava o governo papal uma realidade nos Estados Pontifícios, as campanhas militares de Júlio, nas quais teve um papel vigoroso até ao fim da sua vida, atraíram críticas crescentes de toda a Europa por parte daqueles que sentiam que este não era o tipo de liderança esperado de um papa. No diálogo satírico “Júlio Excluído do Céu” [1], citado no início deste capítulo, o papa, chegando às portas do Céu com vinte mil soldados mortos nas suas guerras, vangloria-se a São Pedro das suas conquistas:
Júlio: Ainda deves estar a
sonhar com aquela antiga igreja na qual, com alguns bispos famintos, tu
próprio, um pontífice a tremer de frio, estavas exposto à pobreza, ao suor, aos
perigos e a mil outras provações. Mas agora o tempo mudou tudo para melhor...
se pudesses ver a vida em Roma hoje: todos os cardeais vestidos de púrpura, acompanhados
por regimentos inteiros de vassalos, os cavalos mais do que dignos de um rei,
as mulas enfeitadas com tecidos finos, ouro e joias, algumas até calçadas com
ouro e prata! Se pudesses vislumbrar o sumo pontífice, transportado numa
cadeira de ouro sobre os ombros dos seus homens, enquanto o povo de todos os
lados presta homenagem com um aceno da mão; se pudesses ouvir o trovão do
canhão, o retumbar das cornetas, o toque das trombetas, ver os clarões das
armas e ouvir os aplausos do povo, os vivas, toda a cena iluminada por tochas
brilhantes e até os maiores príncipes a beijar o pé bendito… se pudesses ver e
ouvir tudo isto, o que dirias?
Pedro: Que eu estava a ver
um tirano pior do que qualquer outro no mundo, o inimigo de Cristo, a ruína da
igreja.
Quando São Pedro se recusa
a admitir Júlio no céu, o papa ameaça invadir o Céu e expulsar Pedro. Críticas
como esta do papado contemporâneo eram moderadas em comparação com as que
viriam...»
Roger Collins, Keepers of the Keys of Heaven: A History of the Papacy, Orion Publishing CO, 2010)
Nota
[1] Os seus contemporâneos e a maioria dos académicos modernos atribuem a autoria do diálogo “Júlio Excluído do Céu” (Latim: Iulius exclusus e coelis) ao humanista e teólogo holandês Erasmo de Roterdão, embora seja tecnicamente uma obra anónima.
O sujeito do diálogo,
Júlio II (papa 1503-1513), era famoso pelo seu patrocínio das artes e pela sua
vida imoral e belicosa. O diálogo, que satiriza as suas ambições mundanas e os
seus abusos de poder, foi imensamente popular nos anos que antecederam a Reforma Protestante. Teve treze edições em quatro anos e foi rapidamente traduzido para
alemão, inglês e francês, ficando disponível para um largo público.
É mais um testemunho do estado decadente e corrupto em que se encontrava a Igreja de Roma, do
descontentamento social, da ânsia de liberdade e do desejo generalizado de uma grande reforma religiosa antes da explosão da Reforma Protestante.
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