A referência ao concílio de Roma de 382 é muito interessante, porque teria sido presidido nada menos do que pelo bispo de Roma, Dâmaso. Ora bem, segundo a Igreja de Roma as decisões dogmáticas do papa são irreformáveis por si mesmas e não precisam do assentimento da Igreja em geral, ou de um concílio em particular. No entanto, se as coisas fossem como dizem os apologistas católicos, estaríamos perante a curiosa situação (para um católico romano) que a decisão do papa Dâmaso e dos bispos reunidos com ele em Roma precisava da ratificação por parte de um concílio regional africano.
De qualquer modo, há razões para duvidar da precedência da lista atribuída a Dâmaso:
“O que é habitualmente chamado o Decreto Gelasiano sobre livros que devem ser recebidos e não recebidos toma o seu nome do Papa Gelásio (492-496). Dá uma lista de livros bíblicos como apareciam na Vulgata, com os apócrifos dispersos entre os demais. Em alguns manuscritos, na verdade, é atribuído ao papa Dâmaso, como se tivesse sido promulgado por ele no Concílio de Roma em 382. Mas na realidade parece ter sido uma compilação privada redigida em alguma parte de Itália em princípios do século VI” (F.F. Bruce, “The Canon of Scripture”. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, p. 97).
Outra forma desta coleção atribui a lista ao papa Hormisdas (514-523).
A coleção de documentos, no entanto, somente está documentada a partir do século VIII, ou seja, quatro séculos depois do tempo de Dâmaso. É notável que nem Isidoro de Sevilha nem, antes dele, Cassiodoro dão indícios de tê-la conhecido. O silêncio de Flavius Magnus Aurelius Cassiodorus (c. 485 - c. 580) é particularmente significativo. Era um nobre romano que foi senador e prefeito do pretório, mas retirou-se da vida pública para o monacato em 540. Estabeleceu uma academia no seu mosteiro, onde impulsionou o estudo e a conservação das letras tanto seculares como religiosas. Na sua obra “Introdução ao Estudo da Santa Escritura” (ca. 556) dá várias enumerações dos livros sagrados (sem mencionar os apócrifos na de Jerónimo), sem tomar partido decididamente por uma; em particular, não parece ter estado a par de alguma decisão final por parte de Roma anterior ao seu próprio tempo. Também não o estava ao que parece o bispo de Roma, Gregório I Magno (540-604; papa desde 590) que ao citar uma passagem de 1 Macabeus indica que tal livro era “para a edificação da Igreja, embora não fosse canónico”.
Por conseguinte, estas famosas listas de livros canónicos provenientes do Decreto Gelasiano, com toda a probabilidade não representam uma ordenança Papal, mas são a produção de um académico anónimo do século VI.
De salientar, por fim, que os concílios de Hipona e Cartago foram sínodos locais, certamente não convocados por Roma; e as suas decisões impuseram-se porque, pelo menos em relação ao Novo Testamento, representavam adequadamente o consenso em finais do século IV, não porque um "papa" as tinha estabelecido. Na verdade, não precisaram de sanção romana alguma para serem aceites (e durante dez séculos também não a tiveram). E embora Agostinho tivesse sido a principal figura inspiradora desses concílios, e aceitasse os apócrifos, não os colocava ao mesmo nível de autoridade que o cânon palestino, como se observa em De Civ. Dei 18:36, ao dizer que uma cronologia “não se encontra nas santas Escrituras chamadas canónicas mas em outras” e dá como exemplo os livros de Macabeus.
Concluo com as palavras de F.F. Bruce:
"Uma coisa deve ser enfaticamente declarada. Os livros do Novo Testamento não se tornaram autoritativos para a Igreja, porque foram formalmente incluídos numa lista canónica; pelo contrário, a Igreja incluiu-os no seu cânon porque ela já os considerava como divinamente inspirados, reconhecendo o seu valor inato e a sua geral autoridade apostólica, direta ou indireta. Os primeiros concílios eclesiásticos a classificar os livros canónicos foram ambos realizados no Norte de África - em Hippo Regius em 393 e em Cartago, em 397 - mas o que estes concílios fizeram não foi impor algo novo às comunidades Cristãs, mas codificar o que já era a prática geral dessas comunidades." (F.F. Bruce, "The New Testament Documents - Are They Reliable?", p. 27)