sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A "Doação de Constantino" e outras falsificações


Não se pode compreender devidamente a origem e a própria concepção do papado como o conhecemos hoje, sem ter em conta o papel que teve a avalanche de falsificações, como a Doação de Constantino e as Falsas Decretais, que a partir do século VIII apoiavam o poder espiritual e temporal do papado. Este não teve outra alternativa senão renunciar ao segundo, mas em contrapartida sustém tenazmente o primeiro.

A chamada Doação de Constantino é um documento do século VIII ou IX. Trata-se de uma carta espúria do imperador Constantino o Grande, dirigida ao bispo de Roma Silvestre I (314-335). Consta de duas partes. A primeira, ou Confessio narra a sua instrução na fé, o seu baptismo e a sua cura da lepra por parte de Silvestre, além de uma confissão de fé. Na segunda parte, ou Donatio, Constantino confere ao bispo de Roma ou papa, como sucessor de São Pedro, privilégios imperiais, e aos principais clérigos, prerrogativas senatoriais. Segundo este documento, o papa “possui a primazia sobre os quatro Patriarcas de Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Jerusalém, e também sobre todos os bispos do mundo”.

Obviamente aqui não se trata somente de potestade temporal, mas também espiritual, e concretamente da primazia tão ambicionada pelos bispos romanos. De facto, em 1054 o papa Leão IX esgrimiu contra o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, a Doação para demonstrar que a sede romana possuía uma autoridade tanto temporal como espiritual. Leão sustentava que “Pedro e seus sucessores têm livre juízo sobre toda a Igreja, sem que ninguém deva fazê-los mudar de lugar, pois a Sede suprema por ninguém é julgada...”.

Sem dúvida, semelhante pretensão era inaudita na Igreja antiga, e certamente nada disto provinha dos cânones dos primeiros Concílios Ecuménicos, onde se reconhecia a Roma uma primazia honorífica mas de modo algum de jurisdição.

No entanto, um par de séculos antes (865) Nicolau I tinha escrito ao imperador Miguel que “o juiz [isto é, o bispo de Roma] não será julgado nem pelo Augusto, nem por todo o clero, nem pelos reis, nem pelo povo...”, “A primeira Sede não será julgada por ninguém...”. O Denzinger esclarece acerca da primeira citação que “Estas palavras alegam-se como de São Silvestre”, e sobre a segunda “Das actas do sínodo apócrifo de Sinuessa, 303 (cf. Hfl. I, 143 ss).

A apócrifa Doação foi incluída nas compilações de leis canónicas realizadas por Anselmo de Luca e Deusdedit, e mais tarde acrescentada ao Decretum de Graciano, obras de referência na instrução do clero da época. Foi livremente citada pelos defensores do papado, inclusive por Pedro Damião, e pelos próprios papas, como por exemplo Inocêncio III e IV, e Gregório IX. Embora tenha sido exposta como patentemente falsa no século XV, os canonistas e juristas continuaram a apelar para a sua autoridade durante todo o século seguinte (precisamente o da Reforma).

Além disso, a Doação foi incorporada na monumental série de documentos, muitos deles falsificados, conhecida como Falsas Decretais ou Decretais Pseudo-Isidorianas, que foi publicada em 850; o autor usa o pseudónimo de Isidoro Mercator. Segundo The Catholic Encyclopedia, esta colecção, cuja suposta intenção foi a de compilar todos os documentos importantes sobre a lei canónica, constava em resumo de:


(1) Uma lista de sessenta cartas ou decretos apócrifos atribuídos aos papas desde São Clemente (88-97) até Melquíades (311-314) inclusive. Destas sessenta cartas, cinquenta e oito são falsificações; começam com uma carta de Aurélio de Cartago solicitando ao Papa Dámaso (366-384) que lhe enviasse as cartas dos seus predecessores na cátedra dos Apóstolos; e isto é seguido por uma resposta na qual Dámaso assegura a Aurélio que as cartas desejadas estavam sendo enviadas. Esta correspondência se propunha dar um ar de verdade às falsas decretais, e foi obra de Isidoro.
(2) Um tratado sobre a Igreja Primitiva e sobre o Concílio de Niceia, escrito por Isidoro, e seguido pelos cânones autênticos de cinquenta e quatro concílios. Deve assinalar-se, no entanto, que entre os cânones do segundo Concílio de Sevilha (página 438) o cânon VII é uma interpolação dirigida contra os chorepiscopi.
(3) As cartas principalmente de trinta e três papas, desde Silvestre (314-335) até Gregório II (715-731). Destas cerca de trinta cartas são falsificações, enquanto todas as outras são autênticas.”
Louis Saltet, False Decretals. Em The Catholic Encyclopedia, vol. V (1909)

Aparentemente, Isidoro usou como base uma muito má edição francesa de uma colecção de documentos existente, chamada Hispana por ter sido compilada em Espanha em 633 (ou seja, a “Hispana Gallica”). Continha os textos conciliares desde Niceia, e decretais papais desde Dámaso (finais do século IV). A isto antepôs as suas cartas forjadas dos papas dos primeiros séculos. Acrescentou também à segunda parte da Hispana as cartas forjadas de papas entre Dámaso e Gregório I, e interpolou aqui e ali outros documentos.
Além disso, na realidade adulterou o texto da Hispana Gallica. Na Biblioteca do Vaticano conserva-se uma cópia desta adulteração, chamada Hispana Gallica Augustodunensis (manuscrito latino 1341).
Em conjunto, a colecção espúria de Isidoro tinha como propósito evidente defender os bispos do poder secular. No entanto, o modo de fazê-lo foi submetê-los ao poder papal. Paradoxalmente as Falsas Decretais fracassaram em grande medida em relação ao seu objectivo primário, mas em contrapartida serviram para sustentar as novas e grandiosas ideias acerca da primazia papal entre Nicolau I e Inocêncio III.
Sobre a noção da primazia do poder espiritual sobre o temporal, afirma por exemplo Isidoro que o governante não pode convocar por si um sínodo, mas que precisa da autorização do papa. Isto é uma novidade, como é evidente do facto de os concílios ecuménicos terem sido convocados pelos imperadores e não pelos bispos de Roma.
Segundo Isidoro, a organização das paróquias foi estabelecida já no século I por Clemente de Roma; em outras palavras, os apóstolos teriam seguido a organização territorial do Império, e as divisões diocesanas e metropolitanas eram muito primitivas. Saltet chama a isto uma “visão fantástica da história”.
Embora afirme a autoridade dos bispos, e faça todo o possível para subtraí-los de qualquer acusação e juízo, o faz com base na divisão originalmente realizada pelos papas. E reserva ao papa a jurisdição suprema sobre as apelações.
Além disso, Isidoro reserva para o papa o direito de convocar ou autorizar a convocatória de todos os concílios, assim como o de ratificar as suas decisões. Saltet observa:

Posto desta forma geral e imperativa, estas afirmações eram algo novo. Nada parecido tinha sido obrigação para a celebração de Sínodos provinciais; em relação à aprovação dos decretos conciliares, era um acontecimento comum na antiguidade. Quando estavam em jogo assuntos de muita importância, os papas reclamavam o direito de aprovação, mas não havia um preceito formal ou geral que afirmasse tal direito.

O efeito destas concepções acerca do poder papal, inauditas para a Igreja primitiva, foi o de fornecer apoio jurídico não somente para as pretensões temporais do papado, mas para toda a teoria do primado e posteriormente da infalibilidade pontifícia.

Portanto, estes e outros documentos falsificados tiveram imerecidamente efeitos perduráveis que são facilmente discerníveis no actual Código de Direito Canónico (por exemplo, que ninguém pode julgar a primeira Sede) e na doutrina acerca do primado e da infalibilidade.

1 comentário:

  1. A doação de Constantino é mencionada por Dante, na sua conhecida obra "A Divina Comédia" ("Inferno", canto XIX."), e o testemunho que o maior poeta medieval dá do papado não é muito abonatório.

    Dante refere-se ao papado com um lamento que reza assim:

    "Ah, Constantino! A quantos males deu origem, não a tua conversão ao cristianismo, mas a doação que de ti recebeu o primeiro Papa que foi rico"

    Dante disse isto pensando que a doação de Constantino era autêntica. O que teria dito se soubesse que tal doação nunca existiu e que foi uma grande falsificação?

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