Não se pode compreender devidamente a origem e a própria concepção do papado como o conhecemos hoje, sem ter em conta o papel que teve a avalanche de falsificações, como a Doação de Constantino e as Falsas Decretais, que a partir do século VIII apoiavam o poder espiritual e temporal do papado. Este não teve outra alternativa senão renunciar ao segundo, mas em contrapartida sustém tenazmente o primeiro.
A chamada Doação de Constantino é um documento do século VIII ou IX. Trata-se de uma carta espúria do imperador Constantino o Grande, dirigida ao bispo de Roma Silvestre I (314-335). Consta de duas partes. A primeira, ou Confessio narra a sua instrução na fé, o seu baptismo e a sua cura da lepra por parte de Silvestre, além de uma confissão de fé. Na segunda parte, ou Donatio, Constantino confere ao bispo de Roma ou papa, como sucessor de São Pedro, privilégios imperiais, e aos principais clérigos, prerrogativas senatoriais. Segundo este documento, o papa “possui a primazia sobre os quatro Patriarcas de Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Jerusalém, e também sobre todos os bispos do mundo”.
Obviamente aqui não se trata somente de potestade temporal, mas também espiritual, e concretamente da primazia tão ambicionada pelos bispos romanos. De facto, em 1054 o papa Leão IX esgrimiu contra o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, a Doação para demonstrar que a sede romana possuía uma autoridade tanto temporal como espiritual. Leão sustentava que “Pedro e seus sucessores têm livre juízo sobre toda a Igreja, sem que ninguém deva fazê-los mudar de lugar, pois a Sede suprema por ninguém é julgada...”.
Sem dúvida, semelhante pretensão era inaudita na Igreja antiga, e certamente nada disto provinha dos cânones dos primeiros Concílios Ecuménicos, onde se reconhecia a Roma uma primazia honorífica mas de modo algum de jurisdição.
No entanto, um par de séculos antes (865) Nicolau I tinha escrito ao imperador Miguel que “o juiz [isto é, o bispo de Roma] não será julgado nem pelo Augusto, nem por todo o clero, nem pelos reis, nem pelo povo...”, “A primeira Sede não será julgada por ninguém...”. O Denzinger esclarece acerca da primeira citação que “Estas palavras alegam-se como de São Silvestre”, e sobre a segunda “Das actas do sínodo apócrifo de Sinuessa, 303 (cf. Hfl. I, 143 ss).
A apócrifa Doação foi incluída nas compilações de leis canónicas realizadas por Anselmo de Luca e Deusdedit, e mais tarde acrescentada ao Decretum de Graciano, obras de referência na instrução do clero da época. Foi livremente citada pelos defensores do papado, inclusive por Pedro Damião, e pelos próprios papas, como por exemplo Inocêncio III e IV, e Gregório IX. Embora tenha sido exposta como patentemente falsa no século XV, os canonistas e juristas continuaram a apelar para a sua autoridade durante todo o século seguinte (precisamente o da Reforma).
Além disso, a Doação foi incorporada na monumental série de documentos, muitos deles falsificados, conhecida como Falsas Decretais ou Decretais Pseudo-Isidorianas, que foi publicada em 850; o autor usa o pseudónimo de Isidoro Mercator. Segundo The Catholic Encyclopedia, esta colecção, cuja suposta intenção foi a de compilar todos os documentos importantes sobre a lei canónica, constava em resumo de:
O efeito destas concepções acerca do poder papal, inauditas para a Igreja primitiva, foi o de fornecer apoio jurídico não somente para as pretensões temporais do papado, mas para toda a teoria do primado e posteriormente da infalibilidade pontifícia.
Portanto, estes e outros documentos falsificados tiveram imerecidamente efeitos perduráveis que são facilmente discerníveis no actual Código de Direito Canónico (por exemplo, que ninguém pode julgar a primeira Sede) e na doutrina acerca do primado e da infalibilidade.
A doação de Constantino é mencionada por Dante, na sua conhecida obra "A Divina Comédia" ("Inferno", canto XIX."), e o testemunho que o maior poeta medieval dá do papado não é muito abonatório.
ResponderEliminarDante refere-se ao papado com um lamento que reza assim:
"Ah, Constantino! A quantos males deu origem, não a tua conversão ao cristianismo, mas a doação que de ti recebeu o primeiro Papa que foi rico"
Dante disse isto pensando que a doação de Constantino era autêntica. O que teria dito se soubesse que tal doação nunca existiu e que foi uma grande falsificação?