quinta-feira, 25 de abril de 2013

Policarpo de Esmirna e a Sola Scriptura


Policarpo, bispo de Esmirna e mártir (69? – 155?) foi segundo se diz discípulo do Apóstolo João. No entanto, nada se encontra na sua Epístola aos Filipenses que possa corresponder a tradições doutrinais ausentes dos escritos do Novo Testamento. Pelo contrário, na Epístola relativamente curta há pelo menos quarenta citações do Novo Testamento. Tudo o que Policarpo ensina o sustenta com as Escrituras, e não introduz nenhuma tradição apostólica extrabíblica. Além disso, nesta carta dirigida à Igreja de Filipos, Policarpo reconhece a diferença entre os seus próprios ensinos e os ensinos dos Apóstolos, alude posteriormente à tradição apostólica oral e à escrita, e significativamente remete os seus destinatários para esta última:
“Tudo isto, irmãos, que vos escrevo sobre a justiça, não o faço por próprio impulso, mas porque vós antes me incitastes a isso. Porque nem eu nem outro semelhante a mim pode competir com a sabedoria do bem-aventurado e glorioso Paulo, que, morando entre vós, em presença dos homens de então, ensinou pontual e firmemente a palavra da verdade; e ausente depois, vos escreveu cartas, com cuja leitura, se souberdes vos aprofundar nelas, podereis edificar-vos em ordem à fé que vos foi dada.” (Filip., 3:1-2; negrito acrescentado).

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Lutero exortou os cristãos a "pecar fortemente"?


É muito comum ver católicos falando que Lutero teria dito: “Seja um pecador e peque fortemente, mas creia e se alegre em Cristo mais fortemente ainda”. Sempre que eu ouço coisas como essas, eu fico com um pé atrás, embora conceda o benefício da dúvida. Após fazer uma pesquisa descobri que Lutero realmente disse isso, mas que a sua declaração não era uma licença para pecar, como supõem os seus detratores. Eu vou abordar essa questão aqui muito brevemente. Vocês podem conferir um extenso tratamento dessa citação nesse link:
 
 
O parágrafo onde se localiza a citação diz o seguinte:
 
Se você é um pregador da misericórdia, não pregue uma misericórdia imaginária, mas uma misericórdia real. Se a misericórdia é real, então você deve arcar com o pecado real e não com um imaginário. Deus não salva aqueles que são apenas pecadores imaginários. Seja um pecador, e peque fortemente*, mas creia e se alegre em Cristo mais fortemente, porque ele é vitorioso sobre o pecado, sobre a morte e sobre o mundo. Enquanto nós estivermos aqui [neste mundo] nós pecaremos. Essa vida não é um lugar onde a justiça reside. É suficiente que pelas riquezas da glória de Deus nós tenhamos conhecido o Cordeiro que tira o pecado do mundo”
 
*Nota: Algumas versões dizem “Seja um pecador e deixe que seu pecado seja forte”
 
A primeira coisa a ser dita sobre isso é que Lutero não era antinomiano. Existem vários textos do reformador onde ele defende a necessidade do crente obedecer a Deus e buscar a santificação. Um exemplo de que as obras devem necessariamente seguir a fé no crente pode ser visto abaixo:
 
“Porque é impossível para aquele que crê em Cristo, como um justo Salvador, não amar e fazer o bem. Se, no entanto, ele não faz o bem e não ama, é certo que a fé não está presente. Portanto o homem conhece pelos frutos que tipo de árvore ela é, e é provado pelo amor e ações se Cristo está nele e se ele crê em Cristo. Como diz São Pedro em 2 Pedro 1:10 'Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis', isto é, se vocês bravamente praticarem boas obras vocês estarão certos e não poderão duvidar que Deus tem chamado e escolhido vocês”. [Sermons of Martin Luther 1:40]
 
Além disso, é preciso ressaltar que não se trata de algo que Lutero disse no púlpito ou que tenha escrito num livro. Muito pelo contrário. Esse texto foi retirado de um carta pessoal enviada para seu amigo Melanchthon. Para ser mais específico, o texto foi retirado de um fragmento da carta, pois só existe parte dela, o qual pode ser lido nesse link:
 
 
Não foi uma declaração pública, mas uma conversa particular, privada. Não foi endereçada para alguém que não conhecesse a teologia de Lutero, mas para alguém extremamente familiar com ela.
 
Tendo feito essas duas observações preliminares, eu preciso falar de uma coisa antes de explicar o sentido da citação. É extremamente interessante que embora os detratores de Lutero tentem usar essa citação como uma vergonha para os protestantes em geral e para os luteranos mais especificamente, estes últimos, pelo que pude perceber em vários de seus sites disponíveis na língua inglesa, não tem o mínimo de vergonha do que Lutero disse. A reação deles é exatamente contrária: orgulho. Eles ostentam a declaração do reformador como um emblema, como uma bandeira.
 
Vocês podem ver uma amostra disso aqui:

http://sinboldly.tumblr.com/sinboldly
 
E aqui:
 
 
Vendo isso eu me lembrei imediatamente da diferença do que a Cruz de Cristo significava para um romano não convertido na época dos apóstolos e o que significava para um cristão. O primeiro olhava para a imagem de um judeu morto numa cruz e via nisso uma vergonha para os que se diziam cristãos, pois a morte na cruz era o destino dos assassinos, dos criminosos. Significava para ele que o líder da nova “seita” que surgia teve um fim desonroso. Já para um cristão a Cruz de Cristo era motivo de orgulho. Significava para ele, e significa para nós, o Filho de Deus entregando-se a Si mesmo para morrer em nosso lugar num ato de amor e o triunfo de Cristo sobre o pecado, sobre a morte e sobre o mundo. A cruz é para nós Christus Victor.
 
A situação dos luteranos em relação a essa citação de Lutero é muito parecida com a dos primeiros cristãos em relação à Cruz. Estes pegaram aquilo que os outros pensavam ser uma vergonha para eles e fizeram disso seu emblema. Fizeram isso porque entendiam o sentido da Cruz, enquanto os seus detratores não a compreendiam. Da mesma forma os luteranos ostentam o que Lutero disse como um símbolo porque eles compreendem o que ele disse. Eles compreendem a graça de Deus.
 
E o que Lutero queria dizer afinal?
 
Lutero nessa citação nos exorta a confiarmos mais fortemente em Cristo e essa confiança na misericórdia de Deus sendo tão forte como deve ser, deve nos levar a aceitar a força do pecado em nossas vidas. Isso não é um encorajamento para o pecado, mas, pelo contrário, uma declaração do poder da graça de Deus em Cristo. O pecado é poderoso. Tentar se enganar só leva ao desastre. Quando falhamos em admitir o pecado, de olhar para ele de frente, sem subterfúgios, nós perdemos a necessidade de um Cristo vitorioso e da misericórdia divina. É claro que não podemos nos conformar. Devemos buscar a santidade constantemente, mas no processo não podemos nos fingir de cegos para os nossos próprios pecados, para nós mesmos. Só precisa de médico quem está doente, e só confia no Médico quem admite a sua doença.
 
Peque fortemente, mas creia mais fortemente!
 
Emerson Campos

domingo, 21 de abril de 2013

Lutero: "Eu não admito que minha doutrina possa ser julgada por ninguém, nem mesmo pelos anjos. Aquele que não recebe minha doutrina não pode alcançar a salvação"


Eu estava assistindo um vídeo sobre a História da Reforma Protestante e me deparei com algumas declarações incorretas sobre Martinho Lutero. Dei uma resposta nos comentários do vídeo, a qual é uma edição do encontrado aqui.
Segue abaixo meu comentário:
Por volta de 1:01:00 o palestrante faz menção de uma citação de Lutero:
"Eu não admito que minha doutrina possa ser julgada por ninguém, nem mesmo pelos anjos. Aquele que não recebe minha doutrina não pode alcançar a salvação"
A seguir conclui que o reformador estava convencido de que estava com a razão e que ele era uma espécie de novo Papa.
Embora não perceba má-fé, a conclusão do palestrante não procede e a citação isolada dá uma impressão errada sobre o pensamento de Lutero.
O texto citado vem do tratado Wyder den falsch genantten Standt des Bapst und der Bischoffen (1522), traduzido para o inglês como "Against the Spiritual Estate of the Pope and the Bishops Falsely So-Called" e pode ser encontrado em Luther Works 39: 248-249.
Em primeiro lugar, vale a pena falar do contexto mais amplo do Tratado. A celebração do festival anual de relíquias em setembro de 1521 pelo Arcebispo Albrecht de Mainz na Igreja de St. Moritz e Maria Madalena em Halle e a bula do Papa Leão X de 1519 concedendo à catedral de Halle os mesmos privilégios concedidos à Igreja de São Pedro em Roma, a saber, confessores passaram a ter autoridade para absolver casos usualmente absolvidos somente pela Sé Apostólica em Roma, levaram Lutero a escrever esse tratado. Uma nota na LW diz:
Lutero ...estava mais preocupado como o mal das indulgências do que com a pessoa do arcebispo de Mainz. 'Eu quero colocar um fim à impiedade' escreveu para Melanchthon em Janeiro de 1522" (LW 39:243).
Em suma, o ponto principal de seu tratado e o outro evangelho contra o qual luta no mesmo é o da venda de indulgências.
O que Lutero disse [na verdade] foi:
"Eu não devo ter (meu ensino) julgado por nenhum homem, nem mesmo por nenhum anjo. Pois, uma vez que estou certo dele, eu devo ser o seu juiz e o juiz dos anjos por meio deste ensino (como diz São Paulo [I Cor. 6:3]) de modo que aquele que não aceita o meu ensino não pode ser salvo - porque ele é de Deus e não meu. Portanto o meu juízo também não é meu, mas de Deus"
Mas porque ele disse algo assim? Um pouco antes ele declarou:
"Eu não darei mais a vocês a honra de permitir que vocês - ou mesmo um anjo do céu - julguem meu ensino ou o examinem. Porque já houve suficiente humildade tola por três vezes em Worms, e isso não foi útil".
Lutero por três vezes já se havia submetido ao julgamento romanista e o que resultou disso foi, na opinião dele, ofuscação e subterfúgios. Ao dizer que não teria o seu ensino julgado por homens, ele se refere a não se submeter MAIS UMA VEZ ao juízo romanista. Se falar dos anjos parece chocante, uma mera leitura do texto paulino em referência é suficiente para entender o reformador:
"Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo perante os injustos, e não perante os santos? Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós, sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas? Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida?"
O apóstolo diz aqui que os cristãos não deveriam levar os seus conflitos com outros cristãos para serem julgados por ímpios, pois nós julgaremos o mundo e os anjos. Ora, se isso é verdade em relação aos ímpios, também é em relação aos anjos.
Voltando a Lutero, em seguida ele diz:
"Ao invés disso eu me permitirei ser ouvido e, como Pedro ensina, darei uma explicação e defesa do meu ensino para todo o mundo".
Esse é o contexto imediatamente anterior à citação. Lutero afirma que vai fazer uma defesa e explicação do seu ensino e faz isso até o fim do tratado. Após páginas de argumentação bíblica contra o Romanismo, Lutero resume tudo, afirmando uma necessidade DO LEITOR JULGAR os seus argumentos por si mesmo:
"If someone said to me at this point, “Previously you have rejected the pope; will you now also reject bishops and the spiritual estate? Is everything to be turned around?” my answer would be: JUDGE FOR YOURSELF E DECIDE whether I turn things around by preferring divine word and order, or whether they turn things around by preferring their order and destroying God’s. Tell me, which is right: for them to turn God’s order around, or for me to turn their blasphemous devil’s order around? Do not look at the work itself but at the basis and reason for the work. Nobody should look at that which opposes God’s word, nor should one care what the consequences may or may not be. Instead, one should look at God’s word alone and not worry—even if angels were involved—about who will get hurt, what will happen, or what the result will be" (LW 39:279).
Durante todo o tratado Lutero não se apoia na sua própria autoridade, mas na autoridade da Palavra de Deus e incita o leitor a julgar o seu ensino e olhar para a palavra de Deus somente. Lutero acreditava que o que defendia era o ensino da Palavra de Deus e baseado nisso podia afirmar com Isaías: “À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz neles" e com Paulo “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema."
Emerson Campos

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Sola Fide em Tomás de Aquino


1) Comentário sobre Romanos 3:28
"Então quando ele diz "Porque nós sustentamos", ele demonstra como a jactância dos judeus é excluída pela lei da fé, dizendo:
"Porque nós apóstolos, sendo ensinados na verdade por Cristo, sustentamos que um homem, quem quer que ele seja, quer judeu ou gentio, é justificado pela fé:
"Ele purificou seus corações pela fé" (Atos 15:9)
E isso à parte das obras da lei. Não somente sem as obras cerimoniais, as quais não conferem graça, mas apenas a significam, MAS TAMBÉM SEM AS OBRAS DOS PRECEITOS MORAIS, como declarado em Tito:
"Não por causa das ações feitas por nós em justiça"
Isso, é claro, significa sem obras antes de se tornar justo, mas não sem obras seguintes, porque, como se afirma em Tiago (2:26): "A fé sem obras", ou seja, obras subsequentes, "é morta" e, conseqüentemente, não pode justificar.
Fonte: Lectures on the Letter to the Romans by Saint Thomas Aquinas, Translated by Fabian Larcher, Edited by Jeremy Holmes with the support of the Aquinas Center for Theological Renewal
2) Comentário sobre I Timóteo: Sola Fide
"Sed apostolus videtur loqui de moralibus, quia subdit quod lex posita est propter peccata, et haec sunt praecepta moralia. Horum legitimus usus est, ut homo non attribuat eis plus quam quod in eis continetur. Data est lex ut cognoscatur peccatum. Rom. VII, 7: quia nisi lex diceret: non concupisces, concupiscentiam nesciebam, etc.; quod dicitur in Decalogo. Non est ergo in eis spes iustificationis, sed in SOLA FIDE. Rom. III, 28: arbitramur iustificari hominem per fidem sine operibus legis".
"Mas o apóstolo parece estar falando sobre morais, porque ele adiciona que a lei foi estabelecida por causa do pecado, e a lei consiste de preceitos morais. O próprio uso desses preceitos é que o homem não atribua a eles mais do que é contido neles. A lei foi dada para que o pecado possa ser reconhecido. Como Romanos 7:7 diz "A menos que a lei dissesse "não cobiçarás" (o que é dito pelo Decálogo), eu não teria conhecido a cobiça. Nos preceitos, portanto, não há esperança de justificação, mas somente pela fé. Como Romanos 3:28 diz: Nós concluímos que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei"
Fonte: Super I Epistolam B. Pauli ad Timotheum lectura
Obs: ênfase adicionados.
Tradução de: Emerson Campos Pinheiro

"Os sacramentos da Nova Lei no entanto, embora sejam elementos materiais, não são elementos carenciados, por isso podem justificar. De novo, se houve alguém na Velha Lei, que foi justo, ele não foi feito justo pelas obras da Lei mas somente pela fé em Cristo "a quem Deus propôs para ser uma propiciação mediante a fé", como se diz em Romanos (3:25). Assim, os sacramentos da Antiga Lei eram determinadas protestações da fé em Cristo, tal como os nossos sacramentos são, mas não da mesma maneira, porque esses sacramentos estavam configurados para a graça de Cristo como algo que está no futuro, os nossos sacramentos, no entanto, testemunham como coisas que contém uma graça que está presente. Portanto, ele diz significativamente, que não é pelas obras da lei que somos justificados, mas pela fé em Cristo, porque, apesar de alguns que observaram as obras da Lei em tempos passados​​ terem sido feitos justos, não obstante, isso foi efetuado somente pela fé em Jesus Cristo."

St. Thomas Aquinas, Commentary on Saint Paul’s Epistle to the Galations, trans. F. R. Larcher, O.P. (Albany: Magi Books, Inc., 1966), Chapter 2, Lecture 4, (Gal. 2:15-16), pp. 54-55.

sábado, 13 de abril de 2013

Qual dos lemas é o correcto: o protestante “Sola Scriptura” ou o católico “Solum Verbum Dei”?

 
A Igreja de Roma não admite teoricamente como fonte de revelação, para efeitos do seu ensino magisterial, senão duas fontes. A primeira é a Bíblia, e a segunda a tradição apostólica. Ou seja, que para efeitos da revelação normativa, Solum Verbum Dei é a soma das Escrituras e da Tradição Apostólica.

E isto nos traz ao seguinte problema:

1. A Igreja de Roma estabelece que as Escrituras e a Tradição Apostólica transmitida inicialmente em forma oral são ambas fontes de revelação que justificam a expressão inclusiva Solum Verbum Dei em vez de Sola Scriptura. Deve recordar-se uma vez mais que para Roma, como para a maioria dos protestantes, a revelação normativa terminou com os Apóstolos.

2. O cânon da Escritura, ou seja, a delimitação do que é e do que não é Escritura, foi reconhecido através de um processo histórico que produziu um consenso virtualmente unânime em finais do século IV para o Novo Testamento e os livros protocanónicos do Antigo.

3. No século XVI o Concílio de Trento sustentou contra os Reformadores a doutrina das duas fontes de revelação, que foi reafirmada até aos nossos dias.

4. Este concílio delimitou claramente o cânon bíblico mediante a enumeração dos livros que no seu entender compunham o Antigo e o Novo Testamento.

5. No entanto, nem os bispos de Trento, nem ninguém antes deles, delimitaram e definiram quais eram precisamente os ensinamentos que, transmitidos oralmente pelos Apóstolos, se conservaram na Igreja até aos nossos dias.

6. Em outras palavras, o conteúdo e os limites da suposta tradição oral Apostólica nunca foi delimitado por aqueles que afirmam dogmaticamente a sua existência.

7. Portanto, é absolutamente impossível submeter a uma prova histórica, como podemos fazê-lo com as Escrituras, a indefinida Tradição Apostólica.

8. Conclui-se que a pretensão romana de possuir uma fonte de revelação adicional além das Escrituras, a qual no entanto não conseguiu ou quis definir, é uma ficção destinada a permitir novas doutrinas desconhecidas para a Bíblia.

É por estas razões que Solum Verbum Dei fica na prática reduzida a Sola Scriptura. Nos séculos decorridos desde Trento, os romanistas não conseguiram demonstrar o contrário.

sábado, 6 de abril de 2013

A DOUTRINA DA TRINDADE E A TRADIÇÃO DA IGREJA DE ROMA


Antes de tudo, queremos deixar claro que se defendemos a Trindade é porque chegamos à conclusão de que é a formulação mais consequente com a totalidade dos dados bíblicos.
Pode encontrar-se aqui uma exposição da doutrina da Trindade onde se utiliza somente a Escritura e regras elementares de lógica.
É verdade que a doutrina trinitária foi formulada depois da morte dos apóstolos; isso se deveu à formulação ortodoxa ter sido impulsionada pelas heresias antitrinitárias, como o modalismo e o arianismo, que como qualquer pessoa com algum conhecimento de história sabe, surgiram muito depois da morte do último apóstolo.
No entanto, não se deve confundir a suposta tradição oral apostólica, que a Igreja de Roma diz conservar, com a formulação histórica de uma doutrina que se encontra nas Escrituras. A doutrina da Trindade não é uma tradição oral apostólica independente das Escrituras. Não há na sua formulação nenhum elemento que remonte aos apóstolos e se tenha transmitido fora das Escrituras.
As tradições orais apostólicas não tiveram nenhum papel na formulação da doutrina da Trindade, como é facilmente constatável pelos escritos, por exemplo, de Atanásio.
Um pouco de História
A doutrina trinitária foi estabelecida nos Concílios de Niceia e de Constantinopla. No de Niceia de 325, a posição trinitária ortodoxa foi sustentada por Atanásio, presbítero (e depois bispo) de Alexandria, não de Roma. Na verdade, mais tarde uma confissão assinada por Libério, bispo de Roma, opôs-se à doutrina formulada por Atanásio.
No primeiro Concílio de Constantinopla de 381 assistiram 150 bispos, todos eles orientais; não houve nem sequer legados do bispo de Roma.
Mais tarde Agostinho, bispo de Hipona, e não de Roma, contribuiu substancialmente para a formulação ortodoxa.
É uma falácia confundir a Igreja de Roma com a Igreja Católica (Universal) antiga, na qual o bispo de Roma não possuía a autoridade suprema que agora se atribui.
A doutrina trinitária ortodoxa foi claramente sustentada pela igreja universal. Não pertence à Igreja de Roma, nem pode ostentá-la como joia da sua coroa. Apenas pode proclamá-la e defendê-la, em unanimidade com o resto das Igrejas cristãs.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

ROMA APLICA A SI MESMO A NEOTESTAMENTÁRIA PROMESSA A PEDRO


É Dámaso (366-384) quem utiliza pela primeira vez Mateus 16:18 para fundamentar as pretensões romanas de poder e, ao mesmo tempo, as interpreta de forma jurídica. O contexto: na sua tumultuosa eleição contra Ursino, 137 pessoas perderam a vida na Igreja. Ele deve a sua entronização ao perfeito da cidade de Roma, e é acusado sob um novo perfeito da cidade de instigar o assassinato; somente a intervenção de amigos ricos diante do imperador o salva de ser condenado. Este bispo romano sedento de poder, anfitrião principesco e chamado “bajulador dos ouvidos das damas”, tem todos os motivos para fortalecer a sua fraca autoridade política e moral, mediante uma inovadora acentuação da dignidade do seu cargo como sucessor de Pedro. Ao referir-se à Igreja romana, ele utiliza sempre, e apenas, a expressão “Sede apostólica” (sedes apostolica) e esgrime com isso para a igreja romana a pretensão de um nível superior ao das restantes igrejas, baseada numa posição de monopólio da Igreja de Roma supostamente dada por Deus através de Pedro e Paulo. Por isso, não é de estranhar que Dámaso mandasse ornamentar as sepulturas e igrejas de Pedro e Paulo assim como as dos bispos e mártires romanos e adorná-las com belas e elogiosas inscrições latinas. Tudo isso para deixar claro que a verdadeira Roma é agora a Roma cristã. E nessa política insere-se também o encargo dado a Jerónimo, erudito do norte de Itália, para que faça uma versão latina da Bíblia, moderna e facilmente inteligível (em vez da velha-latina “Itala” ou “Vetus Latina”). Ela traduz com toda a naturalidade muitas expressões, sobretudo veterotestamentárias, mediante outras do direito romano, e se converte mais tarde na “Vulgata”, normativa tanto no eclesiástico-teológico como no litúrgico-jurídico. Qual é a contribuição de Dámaso, que, como todos os outros bispos romanos do século IV, tenta atrair a simpatia da alta sociedade romana saudosista da grande Roma pagã? Poder-se-á dizer que a sua contribuição é, como diz com sensatez Henry Chadwick, “que ele funde o orgulho imperial e civil vetero-romano com o cristianismo”. Quem quiser escrever uma história da mentalidade da Cúria romana deve começar por aí.
Extraído de “El cristianismo, esencia e historia” de Hans Küng, Ed. Trotta. Pag. 323

quinta-feira, 4 de abril de 2013

A controvérsia pascal - um dos primeiros episódios que atestam o primado do bispo de Roma?


Alguns católicos romanos alegam que a controvérsia pascal ocorrida em finais do século II representa um dos primeiros episódios que atestam o primado do bispo de Roma.
No entanto, a controvérsia pascal não se trata de um episódio em que o bispo romano Vítor exerceu um imaginário primado. É antes um episódio de um bispo de uma sede importante que extravasou as suas funções, talvez por um excessivo zelo uniformista, mas mais provavelmente por circunstâncias que detalho mais abaixo. Seja como for, creio que ficará claro que Vítor carecia de autoridade para impor alguma prática ao resto da igreja; que encontrou firme resistência entre os bispos da Ásia Menor; e que se a prática finalmente se impôs de maneira definitiva em Niceia (325) foi porque a maioria das comunidades da Igreja do século II, com a exceção notável das citadas asiáticas, já tinha este costume como regra.
Argumento católico
1) Para a celebração da Páscoa havia duas tradições distintas no seio da Igreja. Vítor quis unificar ambas as tradições e para isso ordenou que se celebrassem concílios locais para estudar o assunto. Ora, alguém disse a Vítor que ele não tinha autoridade para ordenar que se celebrassem esses sínodos episcopais fora do âmbito territorial de Roma? Não!!. Portanto, temos o primeiro facto assinalável deste assunto:
- O bispo de Roma ordenou que se celebrassem concílios locais para tratar o tema e assim se fez
2) A decisão tomada na maioria dos sínodos celebrados foi a de seguir a Páscoa segundo determinou o bispo de Roma. Não foi assim com as dioceses da Ásia, as quais insistiram em seguir o seu próprio costume. Então Vítor decide excomungá-los se não mudarem de opinião. Diante de uma decisão assim, qual foi a reação de boa parte da cristandade?
Pedir a Vítor que reconsiderasse a sua decisão. Mas, atenção, ninguém, absolutamente ninguém utilizou o argumento de que Vítor não tinha autoridade para fazer o que queria fazer. Apresentaram-se várias razões para convencer Vítor mas entre elas não estava a de que "tu não tens autoridade para fazer o que estás fazendo"
O próprio Ireneu roga a Vítor que não excomungue os asiáticos por seguirem as suas próprias tradições mas em nenhum caso lhe faz a observação de que não pode fazê-lo.
3) E, finalmente, o tempo acabou dando razão a Vítor no essencial da sua petição e as igrejas da Ásia acabaram celebrando a Páscoa como o resto da cristandade.
Sobre Vítor e o papel que desempenhou na controvérsia pascal, é sem dúvida muito interessante a versão à la romana apresentada pelos católicos. É uma pena, no entanto, que segundo tudo o que conhecemos, nos aspectos que dizem respeito ao tema em discussão, não seja compatível com os factos.
1. Antes de tudo, o costume de celebrar a Páscoa no domingo seguinte ao 14 de Nissan, embora provavelmente não fosse o original, estava muito difundido já em finais do século II. Na realidade, na maioria das Igrejas já se celebrava desse modo, exceto na Ásia menor. Os cristãos asiáticos, baseados numa tradição que Eusébio chama “muito antiga”, celebravam a páscoa segundo o costume judaico, a 14 de Nissan. Mas, repito, em finais do século II o resto não tinha este costume, que alguns consideravam “judaizante” (por exemplo Hipólito de Roma, em seus Philosophumena 8,11). Portanto, não necessitavam de ser convencidos nem que se lhes ordenasse que se adaptassem ao costume que já era tradicional para eles; em tais circunstâncias não é de admirar que a posição que já no tempo de Vítor sustentava a maioria dos bispos fosse promulgada como a prática universal em Niceia. O tempo não deu razão a Vítor mais do que deu a Teófilo de Cesareia, Narciso de Jerusalém, Ireneu de Lyon, e tantos outros que observavam a Páscoa no domingo.
2. Segundo a argumentação católica, “Vítor quis unificar ambas as tradições e para isso ordenou que se celebrassem concílios locais para estudar o assunto”. Isto é duplamente errado. Em primeiro lugar, Vítor não queria unificar ambas as tradições, mas extirpar a asiática a favor da adotada pela maioria das igrejas. Em segundo lugar, Eusébio, que é a fonte primária sobre esta controvérsia pascal ou quartodecimana, de modo algum insinua, nem muito menos diz, que os sínodos que por então se reuniram para tratar o assunto em diversos lugares foram convocados por Vítor.
Por este tempo levantou-se uma questão bastante grave ... Para tratar este ponto houve sínodos e reuniões de bispos, e todos unânimes, por meio de cartas, formularam para os fiéis de todas as partes um decreto eclesiástico: que nunca se celebre o mistério da ressurreição do Senhor de entre os mortos em outro dia que não no domingo, e que somente nesse dia guardemos o fim dos jejuns pascais.
Ainda se conserva até hoje um escrito dos que se reuniram naquela ocasião na Palestina; presidiram-nos Teófilo, bispo da igreja de Cesareia, e Narciso, da de Jerusalém. Também sobre o mesmo assunto conserva-se outro escrito dos reunidos em Roma, que mostra Vítor como bispo; e também outro dos bispos do Ponto presididos por Palmas, que era o mais antigo, e outro das igrejas da Gália, das quais era bispo Ireneu.
Assim como também as de Osroene e as demais cidades da região, e em particular de Baquilo, bispo da igreja de Corinto, e de muitos outros, todos os quais, emitindo um único e idêntico parecer e juízo, estabelecem a mesma decisão.
História Eclesiástica V, 23:1-4
Mesmo se Vítor tivesse sido quem solicitou em primeiro lugar que se realizassem sínodos, isso não prova algum primado; antes demonstraria o contrário, ou seja, que não podia impor a sua vontade e necessitava do consenso do resto dos bispos.
Mas além disso, do relato de Eusébio não se depreende de modo algum que os sínodos tenham sido iniciados por Vítor, nem sequer de maneira oficiosa. E quando Eusébio nomeia os principais sínodos põe em primeiro lugar os da Palestina sob Teófilo e Narciso, e menciona vários outros além do presidido por Vítor. Mais, apesar do historiador dizer com todas as letras que o escrito de Vítor se conservava na sua própria época, omite a sua citação, e em troca cita neste assunto o asiático Polícrates, Ireneu e, a favor da posição maioritária, bispos da Palestina e Síria:
Os bispos da Palestina antes mencionados, Narciso e Teófilo, e com eles Cássio, bispo da igreja de Tiro, e Claro da de Ptolemaida, assim como os que haviam se reunido com estes, deram detalhadas e abundantes explicações acerca da tradição sobre a Páscoa, vinda até eles por sucessão dos apóstolos, e ao final da carta acrescentam textualmente:
«Procurai que se envie cópia de nossa carta a cada igreja, para que não seja­mos responsáveis pelos que, com grande facilidade, desencaminham suas próprias almas. Manifestamos a vós que em Alexandria celebram precisa­mente o mesmo dia que nós, pois entre eles e nós vêm-se trocando corres­pondência epistolar, de modo que nos é possível celebrar o dia santo em consonância e simultaneamente».
História Eclesiástica V, 25
Embora não conste, pois, que Vítor tivesse sido o promotor desses sínodos, em contrapartida foi quem, conjuntamente com a Igreja de Roma, solicitou a reunião dos bispos da Ásia Menor, precisamente onde se encontrava concentrada a oposição. E neste caso particular, eis que a resposta lhe foi adversa.
Pergunta o católico retoricamente: “Alguém disse a Vítor que ele não tinha autoridade para ordenar que se celebrassem esses sínodos episcopais fora do âmbito territorial de Roma?
A resposta é que não consta que tenha “ordenado” alguma coisa. No caso dos asiáticos, como disse, os romanos com Vítor à cabeça lhes solicitaram que se reunissem; não poderiam ordená-lo. Na sua resposta, Polícrates afirma que ele e os demais asiáticos celebram intacto esse dia, “sem acrescentar nem tirar nada”. Cita em seu favor Felipe, João, Policarpo, Traseas, Sagaris, Papírio, e Melitão, como também sete da sua própria família que foram bispos antes dele, e prossegue:
«Portanto, irmãos, eu com meus sessenta e cinco anos no Senhor, que conversei com irmãos procedentes de todo o mundo e que recorri toda a Sagrada Escritura, não me assusto com os que tratam de impressionar-me, pois os que são maiores do que eu disseram: Importa mais obedecer a Deus do que aos homens» [Palavras de Pedro e dos apóstolos! At. 5:29].
Depois acrescenta isto que diz sobre os bispos que estavam com ele quando escrevia e eram da sua mesma opinião:
«Poderia mencionar os bispos que estão comigo, que vós me pedistes que convidasse e que eu convidei. Se escrevesse seus nomes, seria demasiado grande seu númeroEles, mesmo conhecendo minha pequenez, deram seu comum assentimento à minha carta, sabedores de que não é em vão que levo meus cabelos brancos, mas que sempre vivi em Cristo Jesus».
História Eclesiástica V, 24: 7-8
Pode ver-se pelo que transcreve Eusébio que, apesar de Vítor e Polícrates encabeçarem as respetivas comunidades, este último dirige-se aos romanos sempre no plural («irmãos», «vós») e não pessoalmente a Vítor. E também que, longe de tratar-se de uma “ordem papal”, o ponto de partida da reunião de Polícrates e seus colegas foi um pedido dos ministros de Roma. Obviamente, solicitar não é sinónimo de ordenar.
Tendo pois precisado a participação de Vítor como um dos protagonistas da controvérsia, fica por tratar a razão da sua tentativa fracassada de excomungar os asiáticos e a natureza da reação dos outros bispos.
Quanto à primeira questão, na passagem citada da sua História Eclesiástica (IV, 24), Eusébio simplesmente anota a atitude de Vítor à resposta de Polícrates. Não dá nem sugere nenhuma causa de tal virulenta reação.
A controvérsia quartodecimana já havia sido levantada antes, entre 150 e 155, quando Policarpo de Esmirna tratou o assunto em Roma com o bispo local, Aniceto. Nenhum conseguiu convencer o outro, mas nem por isso romperam a comunhão. Mais tarde, em 170, ressurgiu a controvérsia em Laodiceia. Nesta ocasião Melitão de Sardes defendeu a prática quartodecimana e Apolinário de Hierápolis a posição oposta. No entanto, a prática divergente não havia sido causa de séria divisão, e na verdade pelo que Ireneu diz a Vítor, em finais do século II ambas as tradições ainda coexistiam pacificamente no Ocidente (Eusébio, História Eclesiástica V, 24: 11-17); segundo o bispo de Lyon, “o desacordo quanto ao jejum confirma o acordo quanto à fé”. Então, de novo, porquê a posição intransigente de Vítor?
Ainda que não fosse impossível que Vítor se julgasse com algum direito especial por ser o bispo de Roma, o mesmo Eusébio dá-nos noutro lado uma pista sobre uma provável motivação mais concreta e urgente que explicaria a tentativa de excomunhão dos quartodecimanos.
Com efeito, um pouco antes no mesmo livro V da sua História Eclesiástica, Eusébio refere-se aos hereges montanistas da Ásia e Frígia, e a seguir fala-nos de outros da mesma laia:
[Do cisma de Blasto em Roma]
Os outros [hereges, cismáticos, falsos profetas] floresciam em Roma, eram dirigidos por Florino, um excluído do presbitério da Igreja, e com ele Blasto, que tivera uma queda similar. Estes arrastaram muitos da Igreja e os submeteram à sua vontade, tentando um e outro introduzir novidades sobre a verdade, cada um por seu lado.
História Eclesiástica V, 15; negrito acrescentado.
Eusébio não explica em que consistia a heresia de Florino e de Blasto. No entanto, na obra de Pseudo-Tertuliano Contra todas as heresias (capítulo 8), o tal Blasto é acusado de judaizante:
Além de todos estes, está igualmente Blasto, que introduziria sub-repticiamente o judaísmo. Pois ele diz que a páscoa não deve ser guardada de outro modo senão de acordo com a lei de Moisés, no [dia] décimo quarto do mês.
Por outro lado, Paciano numa epístola caracteriza Blasto como montanista, facto que já é sugerido porque tanto Eusébio como o Pseudo-Tertuliano o nomeiam ambos imediatamente a seguir de Montano e seus seguidores. Em contrapartida, Florino era um gnóstico (História Eclesiástica IV, 20); que se tratava de duas heresias diferentes o confirma Eusébio ao dizer que cada um por seu lado se esforçava por introduzir novidades. E o corrobora o facto de que Ireneu escreveu a cada um em separado: a Blasto uma epístola Sobre o Cisma e a Florino uma Sobre a monarquia (ou sobre que Deus não é o autor do mal; História Eclesiástica V, 20). Ora, Eusébio menciona ambos, Florino e Blasto, no mesmo parágrafo, em razão de ambos terem sido expulsos do presbitério da Igreja de Roma, e de terem sido contemporâneos. Sabe-se que Florino agiu quando Vítor era bispo, pelo que o mesmo deve ser certo para Blasto. Assim, pois, Blasto era cismático, montanista, quartodecimano, e estava extraviando muitos em Roma, onde Vítor era bispo.
Portanto, aqui temos uma boa causa para a desmesurada reação de Vítor contra os asiáticos, a saber, que tinha, por assim dizê-lo, o inimigo em sua própria casa. Se a Igreja universal mostrasse coincidência quanto à celebração da Pascoa, Vítor teria um forte argumento contra Blasto e seus seguidores. Mas então se deparou com a firme resistência dos asiáticos, e perante os sólidos argumentos destes quis recorrer à excomunhão, note-se bem, “de todos os irmãos daquela região, sem exceção” (História Eclesiástica V, 24:9).
Agora vejamos a reação dos outros bispos que, como Vítor, sustentavam o costume de celebrar a Ressurreição no domingo seguinte ao 14 de Nissan.
Tal como a apresenta a argumentação católica, tal reação consistiu em:  
Pedir a Vítor que reconsiderasse a sua decisão. Mas, atenção, ninguém, absolutamente ninguém utilizou o argumento de que Vítor não tinha autoridade para fazer o que queria fazer. Apresentaram-se várias razões para convencer Vítor mas entre elas não estava a de que "tu não tens autoridade para fazer o que estás fazendo"
Gostaríamos de saber como se chega a esta conclusão de que ninguém questionou a autoridade de Vítor. Esta afirmação parece ainda mais ousada quando se sabe que a única carta que Eusébio transcreve é a de Ireneu, que deve ter sido uma das mais suaves, pois diz Eusébio:
E Ireneu, fazendo honra a seu nome [Eirenaios = pacífico], pacificador pelo nome e por seu próprio carácter, fazia estas e semelhantes exortações e servia de embaixador em favor da paz das igrejas, pois tratava por correspondência epistolar ao mesmo tempo, não somente com Vítor, mas também com muitos outros chefes de diferentes igrejas, sobre o problema debatido.
História Eclesiástica IV, 24: 18
Os argumentos de Ireneu foram:
1. Que na sua própria região se havia mantido a paz apesar das práticas diferentes.
2. Que os antecessores de Vítor desde o tempo de Sisto (em 120) tinham observado o domingo mas guardavam a paz com os que seguiam a prática quartodecimana.
3. Que nunca ninguém foi rejeitado pela prática quartodecimana.
4. Que sendo bispo Aniceto não somente não brigou com Policarpo, mas inclusive teve a deferência de ceder ao bispo de Esmirna a celebração da eucaristia.
A citação de Ireneu termina com as seguintes palavras: “E toda a Igreja tinha paz, tanto os que observavam o dia como os que não o observavam”. Isto implica que era agora Vítor quem estava perturbando a paz com a sua tentativa de excomungar os asiáticos. E o tempo mostrou que não teve êxito nisto, facto que é notado pelo editor Argimiro Velasco Delgado: “A excomunhão não surtiu efeito, a julgar pelo termo peiratai (tentou), porém, segundo o texto, não é possível duvidar que Vítor a decretou” (1:334, nota 369).
Ora, mesmo que se admita que o mais que fez Ireneu foi acusar implicitamente o bispo romano de perturbar a paz, não é possível pensar que os outros bispos descontentes com o proceder de Vítor fossem tão diplomáticos. Com efeito, depois de mencionar o descontentamento, diz Eusébio que estes colegas “repreendem Vítor com bastante energiasegundo a versão de Velasco Delgado. Não parece que repreender com bastante energia tenha consistido em simplesmente argumentar. Além disso, o tradutor da edição que cito foi mais moderado ainda que Ireneu ao verter com extrema delicadeza a expressão grega plêktikôteron kazaptomenôn tou Biktoros. Em Nicene and Post-Nicene Fathers, Second Series (1:243) traduz-se com mais exatidão “sharply rebuking Victor”.
Com efeito, o verbo grego kazaptô é muito mais forte que uma simples repreensão. Em sentido militar, pode significar “atacar” ou “atirar-se para cima de alguém”; e no contexto que nos ocupa, significa “repreender” ou “reprovar com veemência”. Mas se dúvidas houvesse, Eusébio lhe acrescentou o advérbio plêktikôteron, que significa neste caso, “duramente”, “belicosamente”, como aos socos (de plêktikos, à porrada).
De modo que, embora os católicos gostem de pensar o contrário, é claro que Vítor foi repreendido com dureza pelos seus colegas por causa de ter pretendido excomungar os orientais.
Em jeito de conclusão, portanto, reiteramos o que já mostramos em Supremacia papal nos escritos antenicenos?, que o bispo romano Vítor não conseguiu impor o costume romano aos orientais e, quando pretendeu excomungá-los, trouxe sobre si o desagrado generalizado dos seus colegas e a repreensão de Ireneu, que por outros aspectos era um admirador da Igreja de Roma. E Vítor teve que engolir a sua cólera, pois não tinha autoridade para proceder como queria.
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