25 de setembro de 2011

Marcos 6:3 e o artigo definido


No Evangelho de Marcos está escrito: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão aqui entre nós suas irmãs? E escandalizavam-se dele" (Mc 6,3).
Para defender o dogma da virgindade perpétua de Maria, que necessita que Jesus tenha sido o filho único de Maria, os apologistas católicos costumam argumentar da seguinte forma com esta passagem:
O evangelista Marcos diz “o filho de Maria” e não simplesmente “filho de Maria”; e podia sem dificuldade omitir o artigo “o” ou até escrever “um dos filhos de Maria”. Logo isto significa que ao colocar o artigo definido “o” antes da palavra "filho" Marcos refere-se ao único.
Respondemos:
Discorrer sobre o que os autores bíblicos deveriam ter escrito, segundo os nossos próprios critérios, é questionar a obra do Espírito Santo, além de ocioso.
De igual modo, Marcos poderia ter escrito "o único filho de Maria", mas também não escreveu.
A função do artigo grego “o” (ho) no texto de Marcos não é mostrar Jesus como filho único de Maria.
O texto de Marcos, único que diz "o filho de Maria", diz na mesma frase "e irmão de Tiago, e de José, e de Judas, e de Simão". O artigo grego, que deriva do pronome demonstrativo, conserva muitas vezes esta característica e neste caso particular não assinala a exclusividade de Jesus como filho de Maria mas a sua identidade como "o (que é) filho de Maria e irmão de...". Isto fica claro ao comparar com o texto paralelo de Mateus, que diz: "Não se chama sua mãe Maria e seus irmãos..."
Adicionalmente, o artigo também é usado em outras passagens dos evangelhos para descrever personagens de quem é dito explicitamente terem irmãos e, portanto, não serem filhos únicos. Tal é o caso de Tiago o Maior: "Tiago, o filho de Zebedeu, e João seu irmão" (Mateus 10:2, cfr. também Marcos 3:17); ou ainda Simão Pedro, irmão de André: "Tu és Simão, o filho de João" (João 1:42).
Além disso, é usado em Lucas 2:7 "e deu à luz o filho dela, o primogénito" (grego kai eteken ton uion autês ton prôtotokon).
Contudo, aqui aprouve ao Espírito Santo inspirar Lucas para esclarecer que "o filho" era "o primogénito" (em ambos os casos usando o artigo definido).
Notavelmente, os católicos argumentam que a descrição de Jesus como o filho primogénito de Maria não implica que depois tenha tido outros.
Em conclusão, não há nada que nos faça pensar que, na expressão "o filho de Maria" (Marcos 6:3), o artigo definido "o" possua valor de unicidade e, portanto, que seja um modo de apresentar Jesus como único e exclusivo filho de Maria.
Por muito que se esforcem os apologistas romanos por esconder o óbvio, a crua verdade é que a virgindade perpétua não é proclamada na Bíblia e aqueles que primeiro a ensinaram foram os evangelhos apócrifos que nunca foram tidos por Escrituras por alguma igreja cristã.

23 de setembro de 2011

Orígenes ensinou a virgindade perpétua de Maria?


Eis aqui o que diz Orígenes no seu Comentário sobre João:

Pois se Maria, como declaram os que com mente íntegra a louvam, não teve outro filho senão Jesus, e mesmo assim Jesus diz à sua mãe, "Mulher, eis aqui o teu filho" e não "Eis aqui, também tens este filho", então virtualmente disse a ela, "Eis aqui, este é Jesus, a quem tu pariste".

Apesar da sua alta estima pela virgindade como virtude, Orígenes em nenhuma parte dos seus escritos conservados fala da perpétua virgindade de Maria. O que ele acreditava como opinião piedosa é que Jesus não tinha tido mais irmãos (o que não nos diz palavra acerca da virgindade durante ou depois do parto).

O mariólogo jesuíta, Philip J. Donnelly, diz:

Mas parece ser que Orígenes não viu a ligação entre o que agora chamamos virgindade in partu e virgindade post partum; a primeira não lhe era desconhecida: no seu comentário à epístola a Tito deparou-se com o problema e rejeitou o parto virginal.

Nenhuma indicação de atitude distinta encontramos nos textos, realmente autênticos, de Orígenes; nas suas homilias sobre o Evangelho de São Lucas, traduzidas por São Jerónimo, expressou-se em termos incompatíveis com a virgindade de Maria in partu.

(Mariología, Ed. J.E. Carol. Trad. Cast. Madrid: BAC, 1964, p. 658-659)

O que Orígenes pensava era que Maria não teve relações sexuais com José, e "as suas resoluções inspiram-se nas opiniões de certos ascetas contemporâneos que levavam vida de virgindade consagrada; professavam eles que era impossível e inconcebível que Maria se submetesse a algum homem depois de ter concebido por obra do altíssimo" (ibid).

Portanto, a doutrina de Orígenes não era equivalente à actual doutrina católica da "virgindade perpétua". Explicitamente exclui a virgindade durante o parto, que a Igreja Católica afirma.

17 de setembro de 2011

BAPTISMO


O verbo grego baptizö é uma forma intensiva de baptö e significa primariamente “submergir”; secundariamente pode significar “lavar” ou “fazer perecer”. Na antiga versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, usa-se na imersão sétupla de Naamã o sírio nas águas do Jordão (2 Reis 5:14).

G.R. Beasley-Murray explica: “Apesar de afirmações contrárias, parece que baptizö, tanto em contextos judeus como cristãos, normalmente significava ‘submergir’ e que mesmo quando se tornou um termo técnico para o baptismo, a ideia de imersão permanece... Os usos metafóricos do termo no Novo Testamento parecem dar isto por adquirido; por exemplo, a profecia de que o Messias baptizaria em Espírito [Santo] e fogo, como um líquido (Mateus 3:11), o “baptismo” dos israelitas na nuvem e no mar (1 Coríntios 10:2) e a noção da morte de Jesus como um baptismo (Marcos 10:38-39, baptisma; Lucas 12:50...). A representação paulina do baptismo como a sepultura e a ressurreição com Cristo é consistente com esta opinião, embora não a exija.” [1].

O baptismo de João

O antecedente imediato do baptismo cristão é o baptismo que realizava João filho de Zacarias, mais conhecido como João o baptista. Por sua vez, João poderia ter sido influenciado pelas lavagens cerimoniais dos grupos predominantes do judaísmo ou de Qumran (essénios, seita do Mar Morto). Contudo, este tipo de limpeza ritual não se realizava uma única vez, mas de maneira repetida e periódica [2]. Um antecedente mais interessante ou pelo menos um paralelo (não está claro qual veio primeiro) é o baptismo dos prosélitos, ou seja, de pessoas de origem gentia que se convertiam ao judaísmo [3]. Pelo primeiro século da nossa era, quando os judeus tinham adoptado uma decidida atitude proselitista (ver Mateus 23:15) os convertidos da gentilidade que se convertiam não somente deviam ser circuncidados como mandava a Lei a todos os varões, mas também se lhes exigia uma lavagem ou baptismo, o qual simbolizava a limpeza da imundice pagã.

O desafio imposto pelo baptismo de João é que ele não somente chamava os prosélitos, mas e muito particularmente os judeus de nascimento, a baptizar-se. João estava a dizer com isto que não só os pagãos, mas também os “filhos de Abraão” deviam arrepender-se e voltar-se para Deus. O baptismo de João foi então, sobretudo, um chamado ao arrependimento pelos pecados (Mateus 3:11 e paralelos) e uma expressão do desejo de ser perdoado por Deus.

Por que era isto necessário? Porque, como Paulo diria mais tarde, “todos pecaram”, e a João fora dada a missão de ser o precursor do Messias e o arauto do reino dos céus (Mateus 3:1-3; João 1:15-23). A pregação e o baptismo de João foram portanto uma preparação para a manifestação definitiva de Deus em glória para trazer recompensa e juízo, e todos deviam preparar-se para este acontecimento.

À luz do exposto, parece estranho que Jesus pedisse a João que o baptizasse, e o primeiro a surpreender-se foi o próprio João. No entanto, a razão do pedido de Jesus encontra-se na sua identificação com aqueles que vinha salvar. Tinha nascido de mulher, e debaixo da Lei (Gálatas 4:4) e deu este passo “para que se cumpra toda a justiça” (Mateus 3:15). Neste acontecimento fundamental, Jesus, que jamais pecou (2 Coríntios 5:21; Hebreus 4:15), se identificou a si mesmo com a humanidade pecaminosa e deste modo iniciou formalmente o seu ministério. Isto fica claro pelo que aconteceu imediatamente depois do baptismo de Jesus: Foi declarado pelo Pai como seu Filho amado e ungido pelo Espírito Santo (Mateus 3:17). A Voz celestial o declarou Rei Messias e Servo sofredor; cf. Salmo 2:7 e Isaías 42:1. É significativo que quando a autoridade de Jesus foi questionada, ele respondeu com outra pergunta: “O baptismo de João, era de Deus ou dos homens?” (Marcos 11:27-33 e paralelos). Esta não foi uma maneira astuta de fugir à pergunta “Com que autoridade fazes isto?”, mas tinha uma relação crucial com ela. Se o baptismo de João era do céu, a inevitável conclusão seria que a autoridade de Jesus provinha da mesma fonte, já que a unção de Jesus ocorreu após ter sido baptizado por João [4].

O baptismo cristão

No seu carácter de último e maior dos profetas em sentido veterotestamentário, João anunciou o juízo vindouro. João proclamou o que Deus lhe disse que proclamasse. E evidentemente estava certo. Mas Jesus introduz um novo elemento, que certamente estava presente na profecia do Antigo Testamento (Isaías 42, 49, 50, 53) mas não tinha sido entendido pelos judeus, a saber: que o reino dos céus não haveria de ser introduzido com a violência de um conquistador guerreiro, mas através da obra de um humilde Servo. E este Servo, que não era mais ninguém senão o próprio Jesus, devia submeter-se a outro “baptismo” do qual o de João não foi senão um sinal (Lucas 12:49-50). Ele falava, claro está, do seu sacrifício na cruz.

Depois de ressuscitar, Jesus Cristo disse aos seus discípulos:

“Todo poder me é dado no céu e na terra. Portanto ide e fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a observar todas as coisas que eu vos tenho mandado. E eis que Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mateus 28:18-20).

O baptismo cristão na água, tem agora um novo e imprevisto significado: Como Jesus se identificou a si mesmo connosco no baptismo de João, nós devemos identificar-nos com Ele mediante o baptismo cristão (Romanos 6, etc.).

Quem deve baptizar-se?

É claro que todos os que creiam em Cristo devem baptizar-se. Aqueles que tornam-se seus discípulos devem ser baptizados e se lhes deve ensinar tudo o que Jesus mandou (Mateus 28:16-20). Depois de Pedro ter proclamado as boas novas da salvação no dia de Pentecostes, perguntaram a ele e aos demais Apóstolos: “Irmãos, que faremos?”. A resposta de Pedro foi: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja baptizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo” (Actos 2:37-38). Como diz Brooks:

“Os sermões cristãos mais primitivos, ... convocaram para o baptismo como o acto externo que representava a decisão interna. A exigência de Pedro do baptismo [cristão] tinha continuidade com o baptismo de João pois ambos expressavam a nova relação do indivíduo com Deus e seu reino. A diferença significativa, no entanto, era a relação que Pedro estabeleceu com a vida, a morte e a ressurreição de Jesus.” [5].

A mesma sequência, isto é, primeiro crer e a seguir ser baptizado, observa-se em Samaria e no caso do ministro etíope (Actos 8:12, 26-39). O mesmo se observa depois de Pedro ter pregado o Evangelho em casa do centurião Cornélio (Actos 10:44-48). Aí o Apóstolo exclamou: “Pode alguém porventura impedir a água para que não sejam baptizados estes que também, como nós, receberam o Espírito Santo?”

O que há sobre o baptismo de bebés?

Em comparação com o claro mandato de baptizar-se para os que se arrependem e crêem em Jesus, há a questão de se as crianças demasiado pequenas para entender o Evangelho devem ser baptizadas. Este tem sido tema de controvérsia por séculos [6].

Deve ter-se em conta que a maior parte das Igrejas cristãs históricas, como a de Roma, as Orientais, a Luterana, a Reformada, a Presbiteriana e outras, praticam o baptismo infantil. Uma das melhores defesas do baptismo infantil é a escrita por Michael Green [7]. Os principais argumentos a favor desta prática são:

1. O baptismo é um sinal ou sacramento do Novo Pacto, como a circuncisão o era do Antigo Pacto. Já que todos os bebés varões eram circuncidados, de igual modo e por analogia todos os filhos de cristãos devem ser baptizados.

2. Jesus chamou para si as criancinhas e admoestou com extrema severidade os discípulos por tentar impedi-lo. (Marcos 10:13-16).

3. No livro de Actos há vários casos de pessoas que creram e se diz que foram baptizadas “com toda a sua casa” (Lídia, Actos  16:14-15; o carcereiro de Filipos, Actos 16:30-34); compare-se também 1 Coríntios 1:16, “a casa de Estéfanas”.

4. O baptismo infantil é testemunhado na Igreja pelo menos a partir de princípios do terceiro século, e é praticado por muitas denominações cristãs.

Por outro lado, os que, como nós, se opõem ao baptismo infantil assinalam que:

1. O Novo Pacto tem tanto semelhanças como diferenças com o Antigo Pacto. Portanto, deve-se ser muito cauteloso com o raciocínio por analogia. Por exemplo, uma diferença óbvia é que a circuncisão era aplicável apenas aos varões, ao passo que o baptismo cristão é para homens e mulheres por igual. Além disso, os mesmos que invocam esta analogia habitualmente rejeitam a noção de que o baptismo deva adiar-se, como a circuncisão, até o oitavo dia de vida. Finalmente, se bem que os filhos de pais cristãos num sentido participam das bênçãos destes (Actos 2:38; 1 Coríntios 7:14), não é de todo claro que isso só se cumpra na condição de que as crianças sejam baptizadas.

2. Jesus certamente chamou para si as criancinhas, mas não as baptizou nem mandou que fossem baptizadas. De facto, é óbvio e sugestivo que não existe nenhuma instrução explícita acerca do baptismo infantil em todo o Novo Testamento. Os que promovem esta prática têm de basear-se em conjecturas e pressuposições.

3. Deve notar-se que nos textos que falam de Lídia, Cornélio ou Estéfanas a palavra grega oikia (“casa”) indica mais do que os familiares, já que habitualmente estão incluídos também os criados. Os que promovem o baptismo infantil supõem que havia pequeninos nas “casas” de Lídia, Cornélio ou Estéfanas, mas não há nenhum indício certo de que isso fosse assim. Nada sabemos do estado civil de Lídia. Em casa de Cornélio, Pedro disse que deviam baptizar-se os que tinham crido, e sobre os que tinha manifestamente descido o Espírito Santo. Ignoramos se o carcereiro de Filipos tinha filhos e se assim era, que idades tinham. Seja como for, Lucas afirma em Actos 16:34 que o homem se regozijou “com toda a sua casa que havia crido em Deus”, o que obviamente não é aplicável aos bebés.

4. Sabe-se que em tempos pós-apostólicos introduziram-se práticas baptismais que eram próprias do período apostólico. Uma foi o costume de retardar o baptismo até que a morte fosse iminente (pela noção errada de que não teria perdão nenhum pecado cometido depois do baptismo). Outra foi a introdução de um longo período de instrução entre a profissão de fé e o rito baptismal, juntamente com complexos ritos carentes de respaldo neotestamentário. Portanto, o simples facto de que se praticasse o baptismo infantil em finais do segundo ou princípios do terceiro século não é fundamento suficiente para considerar tal prática de origem apostólica. A primeira indicação clara acerca do baptismo infantil – a favor -  encontra-se no tratado sobre práticas eclesiásticas de Hipólito de Roma titulado “A Tradição Apostólica” [8]. Mas a segunda alusão, contra tal prática, aparece no escrito de Tertuliano de Cartago, “Sobre o baptismo” [9]. Ambos os documentos datam do século III.

Que significa o baptismo?

O significado do baptismo poderá resumir-se como se segue:

1. É um acto de obediência que todo cristão deve levar muito a sério. Jesus Cristo mandou que todo aquele que se tornasse seu discípulo fosse baptizado (Mateus 28:16-20).

2. É um acto que expressa o propósito de ser limpo do pecado e puro para com Deus (1 Pedro 3:21).

3. É um acto que nos identifica com Jesus Cristo na sua morte e na sua nova vida de ressurreição (Romanos 6).

4. É um acto que significa ser incorporado ao Corpo de Cristo, a Igreja, e a entrada na participação plena na fraternidade cristã (Efésios 4:4-6).

Também, e tendo em conta o anteriormente referido, o baptismo pode considerar-se um testemunho público do nosso compromisso de seguir a Cristo.

Relação entre a regeneração e o baptismo com água

Uma vez que o baptismo é um sinal externo de uma graça interior, não há uma relação simples e unívoca entre estes acontecimentos. No Novo Testamento, os que se arrependem e crêem em Cristo são baptizados, mas uma vez que tanto a confissão como o rito do baptismo em si mesmo são actos externos, eles não garantem de maneira absoluta que a obra interna da graça esteja presente.

Contudo, pelo modo em que o assunto é apresentado na pregação apostólica, F.F. Bruce acerta ao afirmar: “O baptismo é o sinal externo e visível do arrependimento e da fé. Na era apostólica o sinal externo estava em geral tão imediatamente associado com a graça interior e espiritual que se podia falar de ambos como partes componentes de uma única experiência, ou por uma espécie de metonímia, o que era estritamente verdade de uma podia atribuir-se à outra.” [10].

Isto permite explicar passagens como Actos 22:16, onde Paulo narra a sua própria experiência de conversão; foi-lhe dito: “Agora, pois, por que te demoras? Levanta-te, baptiza-te e lava os teus pecados, invocando o seu nome..” Bruce observa: “Paulo, sendo um homem inteligente, saberia que a aplicação externa de água no seu corpo não poderia, em si mesma, tirar os seus pecados; entenderia que o seu baptismo na água era o sinal externo e visível da sua purificação do pecado, interior e espiritual, pela graça de Deus, uma purificação que fez sua pela fé.” [11].

De igual modo, Tito 3:4-7 pode entender-se no mesmo sentido: “Mas quando se manifestou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com os homens, nos salvou, não por obras de justiça que nós houvéssemos feito, mas por sua misericórdia, pela lavagem da regeneração, e pela renovação no Espírito Santo, [grego, dia loutrou palingenesias kai anakainöseös pneumatos hagiou], que ele derramou abundantemente sobre nós por Jesus Cristo, nosso Salvador, para que, justificados pela sua graça, fôssemos feitos herdeiros segundo a esperança da vida eterna“ (ver também Romanos 5 e 8).

É o baptismo necessário para a salvação?

A Igreja Católica Apostólica Romana é o defensor mais ilustre da noção de que o baptismo é necessário para a salvação. O recente “Catecismo da Igreja Católica” (1992) afirma: “O santo Baptismo é o fundamento de toda a vida cristã, o pórtico da vida no Espírito («vitae spiritualis ianua – porta da vida espiritual») e a porta que dá acesso aos outros sacramentos. Pelo Baptismo somos libertos do pecado e regenerados como filhos de Deus: tornamo-nos membros de Cristo e somos incorporados na Igreja e tornados participantes na sua missão.” [12].

Segundo a doutrina romana, os sacramentos em geral não são somente sinais externos da graça interior, mas são meios pelos quais se confere a graça; ou seja, contêm em si a graça que simbolizam, quando são ministrados e recebidos apropriadamente [13]. No que se refere ao baptismo, o novo Catecismo sustenta que “O próprio Senhor afirma que o Baptismo é necessário para a salvação (cf. Jo 3,5).” [14]. No entanto, o sincero desejo de ser baptizado é considerado equivalente, para os efeitos da salvação, ao próprio sacramento nos casos em que este é impossível. Tal é o caso, por exemplo, de quem morre mártir sem possibilidade de baptizar-se – é o chamado “baptismo de sangue” - ou o de um adulto que é impedido pela morte ou por um obstáculo intransponível, mas que verdadeiramente desejava baptizar-se [15].

O problema do destino das crianças que morrem sem ter sido baptizadas não é respondido de maneira consistente pelo romanismo. Com efeito, o novo Catecismo afirma que a Igreja “não pode senão confiá-las à misericórdia de Deus”, confiando “que haja um caminho de salvação para as crianças que morrem sem Baptismo.” [16]. Esta declaração é muito surpreendente, já que por séculos se sustentou como doutrina de fé que “as almas que saem desta vida em estado de pecado original estão excluídas da visão beatífica de Deus” [17].

Em outras palavras que as almas das crianças que morriam em pecado original – ou seja, sem ser baptizadas - ficavam excluídas da bênção de contemplar Deus. Adicionalmente, pelo menos dois concílios gerais do Ocidente (chamados ecuménicos por Roma), a saber o IV Concílio de Lyon (1274) e o Concílio de Florença (1438-1445) estabeleceram dogmaticamente que os que morrem em pecado original vão para o inferno: “Mas as almas dos que morrem em pecado mortal actual ou com apenas o original, descem imediatamente ao inferno, para ser castigadas, embora com penas diferentes” [18].

Até há muito pouco tempo, ensinava-se que as crianças sem baptizar iam para um lugar, o limbo (limbus infantium) onde poderiam gozar a maior felicidade natural, mas eram excluídas da presença de Deus. Eis aqui o que diz um compêndio publicado em 1973:

“O LIMBO. – As crianças que morreram sem o baptismo não vão para o paraíso terrenal (Bento XII, [Denzinger] 534), mas para o chamado «limbo das crianças» (Pio VI, [Denzinger] 1526 ). Carecem da visão de Deus, mas não sofrem a pena de fogo (Inocêncio III, [Denzinger] 410).” [19]

No entanto, agora a Igreja de Roma silenciosamente ignora o seu ensino de séculos e limita-se a declarar que somente confia as criancinhas à misericórdia de Deus (Catecismo da Igreja Católica, # 1261). O até há não muito tempo famoso limbo nem aparece no índice alfabético do novo Catecismo assinado por João Paulo II.

Na realidade, importantíssimo como é o baptismo, em nenhuma parte do Novo Testamento é declarado como necessário para a salvação. Os requisitos que são consistentemente apresentados como imprescindíveis são o arrependimento do pecado e a fé em Jesus Cristo.

Apêndice: João 3:5

Este texto é o apoio mais importante para a doutrina da regeneração baptismal, isto é, a noção de que o próprio sacramento do baptismo efectua a regeneração ou novo nascimento em Cristo. Portanto, é conveniente examinar cuidadosamente este texto.

Havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe:
- Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus; pois ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.
Respondeu-lhe Jesus:
- Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo [ou do alto], não pode ver o reino de Deus.
Perguntou-lhe Nicodemos:
- Como pode um homem nascer, sendo velho? porventura pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?
Jesus respondeu:
- Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.
Perguntou-lhe Nicodemos:
- Como pode ser isto?
Respondeu-lhe Jesus:
- Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas?...” (João 3:1-10).

O contexto imediato deste encontro é a primeira Páscoa celebrada durante o ministério terrenal do Senhor (João 2:13-25). Jesus acabava de anunciar veladamente a sua ressurreição (versículo 19). Nicodemos convenceu-se de que Deus estava com Cristo e foi vê-lo de noite.

Jesus lhe disse que aqueles que desejam entrar no reino de Deus devem nascer “de novo” ou “do alto”. O texto grego diz “ean më tis gennëthei anöthen” (se alguém não receber o nascimento do alto, versículo 3) e “gennëthëi ex hydatos kai pneumatos” (nascimento de água e Espírito, versículo 5). A palavra anöthen pode significar tanto “de novo” (Gálatas 4:9), como “do alto” (Tiago 1:17; 3:15,17). Evidentemente Nicodemos entendeu o expressado por Jesus no primeiro sentido, mas as palavras do Senhor no versículo 31 indicam que ele quis dizer primariamente “do alto”. Em outros termos, nada menos que um nascimento do alto, isto é, do próprio Deus, pode permitir a alguém ter parte no reino dos céus.

O mesmo pensamento se encontra em João 1:12-13, “Mas, a todos quantos o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus”. Também aparece repetidamente na primeira epístola de João (1 João 2:29; 3:9; 4:7; 5:1,4,18).

Os que afirmam que as palavras de Jesus eram fundamentalmente uma referência ao baptismo com água esquecem os seguintes factos:

1. O próprio baptismo de Jesus em nenhum lado é apresentado como modelo para o baptismo dos seus discípulos. Como se demonstrou antes, o baptismo do Senhor foi um sinal da sua identificação com a raça humana, preparatória da obra de redenção que ele cumpriria mais tarde na cruz.

2. O Evangelho de João é o único que não contém um relato do facto preciso do baptismo de Jesus. Portanto, o seu próprio baptismo não é parte do contexto imediato da passagem.

3. Jesus dirigiu-se a Nicodemos tendo em conta que este era um mestre, alguém bem versado no Tanach (o Antigo Testamento: o Pentateuco, os Profetas e os Escritos). Daí que a declaração do Senhor da absoluta necessidade de nascer da água e do Espírito deve entender-se sob esta luz, e devia trazer à mente de Nicodemos textos como Zacarias 13:1; Jeremias 33:8; Isaías 43:20, 55:1, e sobretudo Ezequiel 36:25-27,

Aspergirei água limpa sobre vós, e sereis purificados; de todas as vossas imundícias, e de todos os vossos ídolos, vos limparei. Também vos darei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo. Porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis as minhas ordenanças, e as observeis..“

Enquanto o baptismo cristão na água não é ensinado como tal no Antigo Testamento, nenhum escriba ou mestre hebreu poderia ignorar estes textos proféticos tão importantes acerca da purificação espiritual. Por esta razão Jesus repreende Nicodemos deste modo: “Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas?” Como alguém que estava bem versado nas Escrituras, era de esperar-se que Nicodemos entendesse a alusão de imediato.

Em conclusão, as palavras de Jesus a Nicodemos não têm como referência primária o baptismo na água, mas a renovação espiritual anunciada pelos profetas do Antigo Testamento. Como notámos antes, este é um tema repetido nos escritos de João. De igual modo, é significativo que também Pedro vincule o novo nascimento ou regeneração (grego anagennaö, “nascer de novo”) com o poder purificador da Palavra de Deus, em vez de com o baptismo por imersão na água:

“Ao obedecer à verdade, mediante o Espírito, haveis purificado as vossas almas para o amor fraternal não fingido. Amai-vos ardentemente uns aos outros, pois haveis renascido [anagegennëmenoi] , não de semente corruptível, mas de incorruptível, pela palavra de Deus que vive e permanece para sempre.” (1 Pedro 1:22-23).

Também o Apóstolo Paulo, que não baptizou muitos cristãos em Corinto (1 Coríntios 1:14-17), declarou enfaticamente “eu pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus” (1 Coríntios 4:15).

Tal regeneração ou novo nascimento espiritual não é produzido pelo baptismo na água; este é um sinal ou sacramento da regeneração, mas de modo nenhum substitui, nem produz, a graça interior que representa.


Notas

[1] G.R. Beasley-Murray, Baptism. Em Colin Brown, Ed.: New International Dictionary of New Testament Theology. Grand Rapids: Zondervan, 1975-1978, 1: 144.
[2] James C. Vanderkam, The Dead Sea Scrolls Today. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1994, p. 168-170.
[3] C. Perrot, Los movimientos bautistas.
Em Augustin George e Pierre Grelot, Dir.: Intoducción Crítica al Nuevo Testamento. Barcelona: Herder, 1983; 1: 177-180.
[4] Joachim Jeremias, Teología del Nuevo Testamento. I. La predicación de Jesús, 4ª Ed.
Salamanca: Sígueme, 1980, p. 73-74.
[5] Oscar S. Brooks, The Drama of Decision: Baptism in the New Testament. Peabody: Hendrickson, 1987, p. 160.
[6] Donald Bridge e David Phypers, The Water that Divides – The Baptism Debate. Leicester: InterVarsity Press, 1977.
[7] Michael Green, Baptism: Its purpose, practice and power. Downers Grove: InterVarsity Press, 1987. Veja-se também Oscar Cullmann, Baptism in the New Testament (London: SCM Press, 1950) e Andrés Manrique.
O.S.A., Teología Bíblica del Bautismo – Formulación de la Iglesia Primitiva (Madrid: Editorial Biblia y Fe, 1977).
[8] Hipólito de Roma, A Tradição Apostólica, 21 (61).
[9] Tertuliano, De Baptismo, 18.
[10] F.F. Bruce, Answers to questions. Exeter: The Paternoster Press, 1972, p. 76
[11] Ibid., p. 84.
[12] Catecismo da Igreja Católica. Edição preparada sob a presidência do Arcebispo José Manuel Estepa Llaurens. Santo Domingo: Librería Juan Pablo II, 1992, # 1213 (p. 284).
[13] “Se alguém disser que os sacramentos da Nova Lei não contêm a graça que significam, ou que não conferem a própria graça aos que não põem óbice, como se só fossem sinais externos da graça ou justiça recebida pela fé e certos sinais da profissão cristã, pelos quais se distinguem entre os homens os fiéis dos infiéis, seja anátema”. (Concílio de Trento, Sessão VII de 3 de março de 1547; Cânones sobre os sacramentos em geral, Canon 6). Segundo Enrique Denzinger, O Magistério da Igreja – Manual dos símbolos, definições e declarações da Igreja em matéria de fé e costumes. Tradução de Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Herder, 1963, # 849 (p. 241).
[14] Catecismo da Igreja Católica, # 1257 (p. 292).
[15] Ibid, # 1258-1260 (p. 292- 293).
[16] Ibid., # 1261 (p. 293).
[17] Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática, 6ª Ed. Barcelona: Herder, 1969, p. 191-192.
[18] Eugénio IV – Concílio de Florença; Decreto para os gregos da Bula “Laetentur coeli” de 6 de julho de 1439; Denzinger # 693 (p. 201).
[19] Antonio Royo Marín, O.P., La Fe de la Iglesia – Lo que ha de creer el cristiano de hoy, 2ª Ed. Madrid: BAC, 1973, # 352 (p. 232).

27 de agosto de 2011

Se foi o concílio de Trento que acrescentou os livros apócrifos à Bíblia por que eles estavam em edições anteriores como a Vulgata de Jerónimo ou o próprio Lutero os incluiu na sua tradução?


Em resumo a situação é esta:

Os livros que os evangélicos chamam apócrifos e os católicos chamam deuterocanónicos são obras geradas durante o período posterior aos últimos profetas inspirados, no denominado período intertestamentário. Em geral não foram  escritos em hebraico, mas em grego (ou seja como for, apenas contamos com o texto grego).

Nunca foram aceites como canónicos pelos hebreus, a quem foi confiada a Palavra de Deus (o Antigo Testamento).

A razão pela qual foram utilizados e apreciados pelos cristãos é que, em número variável segundo os manuscritos, estavam incluídos nos códices da tradução para o grego do Antigo Testamento conhecida como Septuaginta, produzida em Alexandria entre os séculos III e I a.C.

Apesar dos antigos escritores cristãos ocasionalmente os terem usado, em geral predominou a opinião de Jerónimo de considerar como canónicos os livros do AT do cânon hebreu. Os apócrifos/deuterocanónicos foram considerados como úteis para edificação mas não para basear doutrinas neles, num nível portanto inferior aos do cânon hebreu.

Jerónimo os incluiu na sua tradução a contragosto, e para estabelecer a sua posição acrescentou um prólogo em que estabelecia e fundamentava a sua própria posição.

Os apócrifos/deuterocanónicos continuaram pois nos manuscritos tardios da Bíblia, e foram incluídos nas traduções protestantes para línguas vernáculas, como a de Lutero, a Versão Autorizada (King James) e a espanhola Reina-Valera.

A posição protestante histórica é basicamente a mesma de Jerónimo.

O que ocorreu há pouco menos de 500 anos é que um concílio ocidental (o de Trento) se atreveu a fazer algo que a Igreja católica em sentido estrito – isto é, universal – jamais fez, a saber, afirmar dogmaticamente que estes livros tardios eram inspirados e portanto parte integral do Antigo Testamento.

Mediante esta decisão, um número ínfimo de bispos, de modo algum representativos da Igreja universal, pretendeu tornar os apócrifos em parte da regra da fé ou cânon.

25 de junho de 2011

O sermão apócrifo de Agostinho e a carta espúria de Jerónimo sobre a assunção de Maria aos céus


São Jerônimo afirma que Maria subiu ao Céu no dia 18 das calendas de Setembro [15 de Agosto]: “Se alguns dizem que quem ressuscitou na mesma época que Cristo conheceu a Ressurreição perpétua, e se alguns acreditam que João, o guardião da Virgem, teve sua carne glorificada e desfruta da alegria celeste ao lado do Cristo, por que não acreditar com mais forte razão que o mesmo acontece com a mãe do Salvador? Aquele que disse: “Honre seu pai e sua mãe” (Êxodo 20, 12), e “Não vim destruir a lei, mas cumpri-la” (Mateus 5, 17), certamente honrou Sua mãe acima de todas as coisas, e por isso não duvidamos que o mesmo aconteceu com a bem-aventurada Maria”.
Santo Agostinho também defendeu a mesma coisa: “Já que a natureza humana está condenada à podridão e aos vermes, e que Jesus foi poupado desse ultraje, a natureza de Maria também está imune a isso, pois foi nela que Jesus assumiu a sua natureza. (...) O trono de Deus, o leito nupcial do Senhor, o tabernáculo de Cristo, deve estar onde Ele próprio está, pois é mais digno conservar este tesouro no Céu do que na Terra (...) Alegre-se, Maria, de uma alegria indizível em seu corpo e em sua alma, em seu próprio filho Cristo, com se próprio filho e por seu próprio filho, pois a pena da corrupção não deve ser conhecida por aquela que não teve sua integridade corrompida quando gerou seu filho. Será sempre incorrupta aquela que foi cumulada de tantas graças, que viveu íntegra, que gerou vida em total e perfeita integridade, que deve ficar junto daquele a quem carregou em seu útero, a quem gerou, aqueceu, nutriu – Maria, mãe de Deus, nutriz escrava de Deus. Por tudo isso não ouso pensar de outra maneira, seria presunção dizer diferente”.

Circula por vários sites católicos estas citações de Agostinho e Jerónimo como se fossem autênticas e prova de que a doutrina da assunção de Maria aos céus era crida desde o princípio pelos cristãos, mas que, na verdade, são parte respectivamente de um sermão falsamente atribuído a Agostinho e de uma carta espúria de Jerónimo.
Os testemunhos mais antigos da crença na assunção de Maria aos céus provêm de apócrifos dos séculos V e VI, certamente não de tradições preservadas por escritores cristãos ortodoxos dos primeiros séculos.  A noção ganhou maior impulso a partir da baixa Idade Média, para o qual contribuiu estas falsificações de Agostinho e Jerónimo, até a sua proclamação em 1950.
A assunção de Maria aos céus carece de toda a prova bíblica, patrística e histórica, e a sua origem não poderia ser mais questionável.
No seu Manual de Teologia Dogmática diz Ludwig Ott: "A ideia da assunção corporal da Virgem encontra-se expressa primeiramente nos relatos apócrifos sobre o trânsito da Virgem, que datam dos séculos V e VI... O primeiro escritor eclesiástico que fala da assunção corporal de Maria, seguindo um relato apócrifo do Transitus B.M.V. é Gregório de Tours (m. 594)..." (p. 328).

24 de junho de 2011

O culto a Maria, os dogmas marianos e a tradição apostólica


Na sua erudita obra "Maria na Patrística dos séculos I e II" (Madrid: BAC, 1970, p. 371) o marianíssimo José Antonio de Aldama, S.I., confessa: "Falar de verdadeiro culto a Maria no século II seria anacrónico".

Sobre os dogmas marianos:

1. A primeira defesa da virgindade perpétua é provavelmente o Adversus Helvidium de Jerónimo, escrito em finais do século IV. Foi depois defendida por Leão I. O dogma da virgindade perpétua - antes, durante e depois do parto - foi definido por um sínodo local (III Latrão, 649) sob o papa Martinho I, e ratificado pelo III de Constantinopla, sexto ecuménico (680-681).

Ou seja, nada se ouve acerca da virgindade perpétua antes de finais do século IV.

2. A imaculada conceição é completamente desconhecida para a Igreja antiga. A sua formulação é medieval tardia, e originou controvérsias entre os próprios teólogos escolásticos. De facto, foi proposto como dogma no concílio de Basileia (1439) mas de maneira inválida já que o papa Eugénio IV excomungou os membros do concílio. O primeiro a aceitar esta doutrina foi Sisto IV em 1477, pelo menos de modo indireto, ao aprovar a festa da Imaculada Conceição da Virgem.

O próprio Concílio de Trento se absteve prudentemente de sancionar o dogma. Não veio a ser tal até 1854, graças a Pio IX.

3. Sobre a Assunção corporal de Maria aos céus, diz o hiper-mariologista P. Carol: "Não existe nenhum documento do magistério anterior a Pio XII em que se declare oficialmente a assunção corporal da Virgem aos céus".

Não há vestígios no Ocidente da ideia, para não falar do dogma, até finais do século VIII.

Fonte: J.B. Carol (Dir.): Mariología. Madrid: BAC, 1964.


De modo que é óbvio que estes dogmas não surgiram de tradições provenientes dos Apóstolos, das quais falta completamente qualquer testemunho, mas de desvios doutrinais produzidos sobretudo a partir da Idade Média.

A desculpa da tradição apostólica transmitida oralmente na Igreja não serve. A própria Igreja de Roma até hoje não conseguiu (ou melhor, não quis) delimitar e enunciar o que arbitrariamente chama "tradição apostólica", que lhe permitiu introduzir doutrinas totalmente desconhecidas pelos Apóstolos.

21 de junho de 2011

Qual é o nome verdadeiro do sogro de Moisés? Reuel Ex 2:18, Jetro Ex 3:1, ou Hobabe Jz 4:11?


Jetro significa "excelência" e Reuel "amigo de Deus", em ambos os casos em hebraico. São portanto dois nomes da mesma pessoa, a saber, o pai de Séfora e sogro de Moisés, um sacerdote de Midiã (Êxodo 2:16, 18; 3:1).

Quanto a Hobabe, parece que era filho de Jetro e irmão de Séfora.

Somente é mencionado em duas passagens, a saber, Números 10:29 e Juízes 4:11.

Números 10:29-33

29 Disse então Moisés a Hobabe, filho de Reuel, o midianita, sogro de Moisés: Nós caminhamos para aquele lugar de que o Senhor disse: Vo-lo darei. Vem connosco, e te faremos bem; porque o Senhor prometeu o bem a Israel.
30 Respondeu ele: Não irei; antes irei à minha terra e à minha parentela.
31 Tornou-lhe Moisés: Ora, não nos deixes, porquanto sabes onde devamos acampar no deserto; de olhos nos servirás.
32 Se, pois, vieres connosco, o bem que o Senhor nos fizer, também nós faremos a ti.
33 Assim partiram do monte do Senhor caminho de três dias; e a arca do pacto do Senhor ia adiante deles, para lhes buscar lugar de descanso.

Neste texto Hobabe é identificado como filho de Reuel, o sogro de Moisés; Hobabe é, pois, cunhado deste último. Hobabe era um conhecedor do deserto e embora estivesse relutante, Moisés o convenceu para que o ajudasse.

Juízes 4:11

Ora, Heber, um queneu, se tinha apartado dos queneus, dos filhos de Hobabe, sogro de Moisés, e tinha estendido as suas tendas até o carvalho de Zaananim, que está junto a Quedes.

Esta segunda menção de Hobabe é a propósito da procedência de Heber.

Apesar de em ambos os casos a raiz hebraica chtn (Strong #2859) ser traduzida «sogro», na realidade pode significar várias coisas distintas relacionadas com parentesco originado num matrimónio (como diferente do parentesco por consanguinidade).

Segundo Herbert Wolf (The Expositor's Bible Commentary, 3:405) a mesma raiz pode significar "sogro" se se vocalizar chatan e "cunhado" se se vocalizar choten. Como segundo o texto de Números Hobabe era filho de Reuel, parece apropriado traduzir "cunhado de Moisés" em Juízes 4:11, como o faz a New International Version (assim não faz, curiosamente, a sua homóloga em português).

Portanto, parece razoável concluir que Jetro/Reuel era sogro de Moisés e pai de Hobabe.

19 de junho de 2011

A Fé explicada com mentiras


No blogue a Fé explicada lê-se a seguinte frase “Graças aos monges católicos que a bíblia chegou até nossos dias, pois estes a copiavam manualmente, assim sendo possível nos dias de hoje, a difusão da bíblia. A Bíblia chegou até nós única e exclusivamente através da Igreja Católica.”

Esta é uma meia verdade, pois embora o texto bíblico se tenha conservado nos mosteiros, ao mesmo tempo deixou-se de traduzi-lo para línguas vernáculas e de pô-lo ao alcance dos laicos (tarefas que realizou a Reforma).  

Além disso, as modernas versões da Bíblia baseadas em manuscritos hebraicos e gregos não dependem de forma crítica dos esforços dos monges ocidentais. É interessante que um dos manuscritos gregos mais valiosos do Novo Testamento é o códice Vaticano, que se encontrava na biblioteca homónima pelo menos desde 1475. No entanto, "por alguma razão que nunca foi completamente explicada, durante grande parte do século XIX as autoridades da Biblioteca puseram contínuos obstáculos aos eruditos que desejavam estudá-lo em detalhe. Não foi senão em 1889-1890 que o seu conteúdo ficou disponível para todos num fac-símile fotográfico completo editado por Giuseppe Cozz-Luzi."

(Bruce M. Metzger, The Text of the New Testament: Its transmission, corruption and restoration, 3a ed. rev. New York: Oxford University Press, 1992, p. 47).

16 de junho de 2011

A proibição da leitura da Bíblia na igreja de Roma

 
Durante os primeiros mil anos da Igreja, não houve restrições à leitura dos Livros Sagrados; pelo contrário, podem-se encontrar muitas recomendações a lê-los. Foi um bispo de Roma, Gregório VII, quem teve o duvidoso privilégio de ter estabelecido em 1080 a primeira proibição: O duque da Boémia tinha-lhe solicitado permissão para publicar as Escrituras em eslavo para serem usadas nos serviços. O papa proibiu que se fizesse tal coisa. Em finais do século seguinte, Inocêncio III escreveu ao bispo de Metz que a prática da leitura da Bíblia era perigosa para os simples e incultos (noção oposta ao que ensina a Bíblia). Seguiram-se proibições locais dos Sínodos de Tolosa (1229), Tarragona (1233) e Oxford (1408) contra a tradução de Wycliffe, de quem se disse no Concílio de Constança “aquele pestilento miserável de maldita heresia que inventou uma nova tradução das Escrituras na sua língua materna”.
A partir da época da Reforma as proibições emanam de Roma. Pio IV, no Index Librorum Prohibitorum de 1559, indica na Regra IV que somente se pode autorizar a leitura da Bíblia aos leigos educados que possam beneficiar com isso, para o que era necessário uma permissão escrita.
Não há dúvida que alentar a leitura da Bíblia por parte dos leigos não foi a atitude da Igreja de Roma até ao século XX.
A 8 de setembro de 1713, na Constituição Dogmática Unigenitus, o papa Clemente XI condenou como erradas uma série de proposições de Pascásio Quesnel, entre elas as seguintes:
70. É útil e necessário em todo tempo, em todo lugar e para todo tipo de pessoas estudar e conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura.
71. A leitura da Sagrada Escritura é para todos.
81. A obscuridade santa da Palavra de Deus não é razão para os leigos se escusarem da sua leitura.
82. O dia do Senhor deve ser santificado pelos cristãos com leituras piedosas e, sobretudo, das Sagradas Escrituras. É condenável desejar impedir um cristão de tal leitura.
83. É uma ilusão convencer-se de que o conhecimento dos mistérios da religião não deve ser comunicado às mulheres pela leitura dos Livros Sagrados...
84. Arrebatar das mãos dos cristãos o Novo Testamento ou mantê-lo fechado, tirando-lhes o modo de entendê-lo, é fechar-lhes a boca de Cristo. 
85. Interditar aos cristãos a leitura da Sagrada Escritura, especialmente do Evangelho, é proibir o uso da luz aos filhos da luz, e fazer com que sofram certo tipo de excomunhão.
86. Arrebatar ao povo simples este consolo de unir a sua voz à voz de toda a Igreja, é costume contrário à prática apostólica e à intenção de Deus.
(Denzinger #1429-1434, 1436).
"Porque deverias ter tido diante dos olhos o que constantemente avisaram também os nossos predecessores, a saber: que se os sagrados Livros forem permitidos correntemente e em língua vulgar e sem discernimento, disso resultará mais dano que utilidade. Ora, a Igreja Romana que somente admite a edição Vulgata, por prescrição bem notória do Concílio Tridentino (ver 785 s), rejeita as versões das outras línguas e somente permite aquelas que são publicadas com anotações oportunamente tomadas dos escritos dos Padres e doutores católicos, a fim de que tão grande tesouro não esteja aberto às corruptelas das novidades e para que a Igreja, difundida por todo o orbe, seja de uma só língua e das mesmas palavras (Gen 11,1)."
(Pio VII, carta Magno et acerbo, 3 de setembro de 1816; Denzinger # 1603)
"A iniquidade dos nossos inimigos chega a tanto que ... procuram revirar em prejuízo da religião as Sagradas Letras, que nos foram divinamente dadas para edificação da própria religião. Não se vos oculta, Veneráveis Irmãos, que certa Sociedade vulgarmente chamada bíblica percorre audazmente todo o orbe e, desprezadas as tradições dos santos Padres, contra o conhecidíssimo decreto do Concílio Tridentino [v. 786], juntando para isso as suas forças e todos os meios, tenta que os Sagrados Livros se vertam, ou melhor, se pervertam nas línguas vulgares de todas as nações."
(Leão XII, Encíclica Ubi primum de 5 de maio de 1824).
"Nas regras que foram aprovadas pelos Padres designados pelo Concílio Tridentino, aprovadas por Pio IV e antepostas ao Índice dos livros proibidos, lê-se por sanção geral que não se deve permitir a leitura da Bíblia publicada em língua vulgar a não ser àqueles que se julgue poderem tirar proveito dela para aumento da fé e da piedade. A esta mesma regra,..., foi acrescentada finalmente por autoridade de Bento XIV a declaração de que fosse tida no futuro como permitida a leitura daquelas versões vulgares que tenham sido aprovadas pela Sé Apostólica ou publicadas com notas tomadas dos Padres da Igreja ou de varões doutos e católicos ... Todas as referidas Sociedades Bíblicas, já há muito tempo reprovadas por nossos antecessores, as condenamos novamente por autoridade apostólica..."
(Pio IX, Encíclica Inter praecipuas, 16 de maio de 1844; negrito acrescentado)
As primeiras versões católicas em português e espanhol, realizadas a partir dos manuscritos gregos e hebraicos foram publicadas um século depois da última encíclica citada.
Somente a partir do Concílio Vaticano II a Igreja de Roma alentou seriamente a leitura das Escrituras, exortação que a maioria dos católicos ainda não leva a sério.
Por vezes, ainda hoje se ouve alguns católicos argumentar que a difusão das Escrituras a partir da Reforma protestante teve efeitos indesejáveis e que seria melhor o acesso a elas ser restrito. Este argumento esquece várias coisas.
Em primeiro lugar, que uma razão poderosa dos efeitos tanto desejáveis como indesejáveis da difusão da Bíblia foram as diferenças abismais entre as doutrinas e práticas da Igreja de Roma e as que são ensinadas nas Escrituras. Por sua vez, isso se deveu ao afastamento progressivo da Bíblia por parte dos clérigos; primeiro porque se deu importância exagerada aos ensinamentos dos escolásticos, de modo que a doutrina aprendia-se deles da sua síntese aristotélica-escritural e não da pura fonte da revelação (como aprendiam o que havia sido dito pelos Padres das Sentenças de Pedro Lombardo). Todos os clamores de reforma anteriores ao século XVI insistem na ignorância dos clérigos. E segundo, porque os bispos e cardeais eram em muitos casos não só ignorantes, como também não tinham interesse no estudo e na exposição bíblica séria. Eram príncipes seculares interessados em manter os seus feudos. Como é bem sabido, os bispos de Roma, em particular os que houve no tempo da Reforma, eram o paradigma do que acabo de dizer. Mas já antes se evidenciava claramente isto; por exemplo, Bonifácio VIII era um muito bom jurista mas um péssimo exegeta da Escritura.
Em outras palavras, a Igreja se havia afastado tanto das Escrituras que podia ser nefasto para a sua própria subsistência que o povo soubesse o que na verdade esta dizia.
Em segundo lugar, é preciso ter em conta que a liberdade sempre envolve risco. Adão foi criado livre, e já se sabe o que aconteceu. No entanto, isso não significa que a liberdade não seja um bem desejável para a condição humana. Obviamente, a Igreja de Roma optou por coartar a liberdade do povo em vez de educá-lo, seja por não poder ou não querer fazê-lo. As consequências de séculos da adoção consistente desta política tornaram-se manifestas logo que as pessoas tiveram acesso às Escrituras na sua própria língua. Mas o papado somente colhia o que tinha semeado por quase cinco séculos.