A Ordem dos
Frades Menores nasceu de uma inspiração evangélica radical: a vivência da
pobreza absoluta, da fraternidade e do desapego ao poder eclesiástico.
Francisco de Assis não apenas recusava os privilégios clericais, como se
colocava deliberadamente à margem das estruturas institucionais da Igreja.
Sua regra era simples, oral, próxima do povo, e inspirada nos Evangelhos. Ele
desejava que os seus irmãos fossem verdadeiramente "menores", isto é, sem
posses, sem status e sem autoridade sobre os outros. Contudo, esse ideal
sofreu um rápido processo de distorção e domesticação quando passou a
ser regulado e apropriado pelo papado.
A primeira
etapa dessa perversão deu-se quando o papa Inocêncio III aprovou a Regra
franciscana oralmente em 1209, já com ressalvas sobre a sua viabilidade. Após
a morte de Francisco (1226), o processo se acelerou. Gregório IX, seu antigo
protetor, aprovou oficialmente uma versão institucionalizada da Regra, mais
adaptada à burocracia romana do que à inspiração original. A partir de então,
iniciou-se o processo de "clericalização" da ordem: criação de
conventos estáveis, necessidade de autorização para pregar, exigência de formação universitária, e posse
indireta de bens sob a forma jurídica de "propriedade papal". A bula Exiit
qui seminat (1279) do papa Nicolau III foi decisiva nesse ponto: reconhecia
que os bens dos franciscanos pertenciam à Santa Sé, que os
"emprestava" à ordem — uma manobra jurídica que traía frontalmente o
espírito de pobreza total de Francisco.
Esta submissão
institucional transformou os Frades Menores em servidores do
papado, relegando para segundo plano a sua vocação profética. Os frades passaram a
ocupar cargos eclesiásticos, integraram-se ao sistema inquisitorial e
participaram das disputas políticas medievais — tudo o que o "Poverello"
rejeitava. O conflito entre a espiritualidade original e a ortodoxia
institucionalizada gerou dissidências internas, como os
"Espirituais", grupo que desejava seguir fielmente a Regra primitiva.
Entre os
primeiros frades que resistiram a essa transformação, destaca-se Frei Leão,
confidente íntimo de São Francisco. Leão foi o autor de textos como o Speculum
Perfectionis, que revelam com clareza a ruptura entre o carisma
fundacional e a ordem institucionalizada. Após a morte do fundador, Frei
Leão se opôs abertamente ao ministro geral Elias de Cortona, que representava a
ala mais próxima do papado e da política eclesiástica. Leão, assim como outros
frades fiéis ao Testamento de Francisco, foi marginalizado, perseguido e
exilado em eremitérios, onde viveu em silêncio e pobreza, resistindo
espiritualmente à centralização romana. Ele simboliza a voz abafada do
franciscanismo fiel à sua origem, recusando o caminho da obediência cega à
autoridade papal que transformava o ideal evangélico em instituição
eclesiástica funcional.
Em contraste
com essa domesticação, o movimento dos valdenses, iniciado por
Pedro Valdo no século XII, escolheu a via da fidelidade radical ao Evangelho mesmo
à custa da exclusão da Igreja oficial. Valdo e seus seguidores também pregavam a pobreza voluntária,
a simplicidade evangélica e a leitura da Bíblia, mas recusaram-se a
submeter a sua missão à autoridade papal. Diferente dos
franciscanos, os valdenses recusaram compromissos institucionais e, por
isso, foram declarados hereges e duramente perseguidos. No entanto, a sua resistência
preservou a sua independência espiritual. Enquanto os franciscanos foram
incorporados à máquina eclesiástica, os valdenses mantiveram a sua autonomia
em nome da fidelidade ao Evangelho primitivo.
A história da
Ordem Franciscana mostra, assim, como o papado subverteu um movimento
profético em nome da disciplina e da ortodoxia, sufocando as vozes que —
como Frei Leão — apontavam para a incoerência de uma Igreja rica, autoritária e
distante dos pobres. Enquanto os valdenses foram perseguidos por sua desobediência,
os franciscanos foram recompensados por sua submissão. Mas ao custo da perda de
sua alma originária.
Em Frei Leão, contudo, sobreviveu a memória incómoda de um Evangelho sem poder, sem
propriedade, sem papado.
Referências Bibliográficas
- Moorman, John R. H. A
History of the Franciscan Order from Its Origins to the Year 1517. Oxford: Clarendon Press, 1988.
- Burr, David. The
Spiritual Franciscans: From Protest to Persecution in the Century After
Saint Francis. Penn State Press, 2001.
- Lambert, Malcolm. Medieval
Heresy: Popular Movements from the Gregorian Reform to the Reformation.
Oxford: Blackwell, 1998.
- Esser, Kajetan. Origins
of the Franciscan Order. Franciscan
Herald Press, 1970.
- Audisio, Gabriel. The Waldensian Dissent: Persecution and Survival, c.1170–c.1570. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.