sábado, 5 de abril de 2025

O «FIAT» DE JOSÉ

 

Segundo o Catecismo da Igreja Católica:

973 Ao pronunciar o «Fiat» da Anunciação e dando o seu consentimento ao mistério da Encarnação, Maria colabora desde logo com toda a obra a realizar por seu Filho. Ela é Mãe, onde quer que Ele seja Salvador e Cabeça do Corpo Místico.

O “fiat” alude à tradução da Vulgata de Lc 1,38:

fiat mihi secundum verbum tuum

“Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

Os teólogos católicos agem como se isso significasse que Deus estava a colocar à votação o plano da redenção ao dar a Maria poder de veto. Obviamente, a Anunciação é um anúncio do que Deus fará acontecer.

1) Há apologistas católicos que dizem que se o nascimento virginal não foi consensual, então ele foi uma violação. Isto ignora o facto elementar de que uma violação requer sexo: penetração na relação sexual. Mas é óbvio que a conceção virginal não é sexual. Violação sem sexo?

2) Ainda assim, continuemos com o argumento católico, fazendo uma comparação. Em Mt 2, José recebe alguns sonhos revelatórios. Eles são premonições de perigo. Os sonhos levantam implicitamente o espectro de futuros alternativos. Se José ficar em Belém, o seu filho será morto pelos capangas de Herodes. Mas ele pode evitar este resultado hipotético se fugir a tempo. Se as coisas continuarem como estão, na sua trajetória atual, Jesus terá uma morte prematura.

3) Isto levanta uma questão para os cristãos libertários. Não atender ao aviso angélico era uma opção viável para José? Pense-se o que isso implicaria. Não estamos a falar aqui apenas do destino de um indivíduo isolado. O destino de toda a raça humana estaria em causa. A Encarnação seria em vão. Séculos de preparação providencial seriam destruídos. Deus teria de começar do zero. Então, por paridade de argumentos, porque é que o catolicismo realça o "fiat" de Maria, mas ignora o "fiat" de José?

4) Além disso, a lógica do argumento católico estende-se a muitos outros intervenientes na história da redenção. Considere-se a chamada de Abraão.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

DORMINDO COM O INIMIGO

 

Arthur Lovejoy está certamente correto ao dizer que o Deus austero da metafísica aristotélico-tomista não tem quase nada em comum com o Deus do Sermão do Monte — contudo, por um dos mais estranhos e marcantes paradoxos da história ocidental, a teologia filosófica da cristandade identificou um com o outro” (Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being (Harvard, 1936), p. 5).

Os ‘incrédulos’ contra cujo ‘ridículo’ [Aquino] desejava proteger a causa cristã ao não tentar oferecer provas racionais para a Trindade eram, sem dúvida, os filósofos muçulmanos e judeus, cuja abordagem ele tanto admirava e imitava. O que ele provavelmente não percebeu é que os seus argumentos para a simplicidade divina que ele adotou, e que eram o fundamento para o ‘ridículo’ deles, não tinham de forma alguma surgido num contexto neutro, mas tinham sido forjados como armas numa batalha contra a doutrina da Trindade... Ironicamente, então, Tomás aceitou como os resultados do raciocínio natural autêntico uma tradição que tinha sido formada especificamente para se opor ao teísmo trinitário no qual ele acreditava. (Robert M. Burns, “The Divine Simplicity in St. Thomas”, Religious Studies 25/3 (1989), p. 287).

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