27 de fevereiro de 2025

A BÍBLIA DE JESUS

 

A Bíblia de Jesus era o cânon hebraico, conhecido hoje entre nós como o Antigo Testamento, que contém 39 livros segundo a contagem cristã ou 22 ou 24 segundo a contagem hebraica.

Uma evidência indireta do cânon hebraico, sobre o qual claramente existia um consenso no século I, é o modo em que Jesus fez referência ao primeiro e ao último mártir segundo a ordem tradicional hebraica:

“Por isso disse a Sabedoria de Deus: Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, e a alguns os matarão e perseguirão, para que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até ao sangue de Zacarias, que pereceu entre o altar e o santuário. Sim, vos asseguro que se pedirão contas a esta geração.” Lucas 11:49-51

Jesus refere-se aqui a todos os justos e enviados de Deus que sofreram o martírio segundo as Escrituras. A frase grega apo haimatos Abel eôs haimatos Zachariou, «desde (o) sangue de Abel ... até (o) sangue de Zacarias» (Lucas 11:51 = Mateus 23:35) abarca a totalidade dos mártires do Antigo Testamento, desde Abel às mãos do seu irmão Caim, até o martírio de Zacarias, que é narrado em 2 Crónicas:

"O Senhor enviou-lhes profetas que deram testemunho contra eles para que se convertessem a ele, mas não lhes deram ouvidos. Então o Espírito de Deus revestiu Zacarias, filho do sacerdote Joiadá que, apresentando-se diante do povo, lhes disse: «Assim diz Deus: Por que transgredis os mandamentos do Senhor? Não tereis êxito, pois, por ter abandonado o Senhor, ele vos abandonará a vós». Mas eles conspiraram contra ele, e por ordem do rei, o apedrejaram no átrio da casa do Senhor." 2 Crónicas 24:17-21

No entanto, a referência a Abel e Zacarias como o primeiro e o último mártir, respetivamente, registados nas Escrituras não é cronológica. Há pelo menos um mártir posterior a Zacarias, a saber, Urias, filho de Semaías, que foi assassinado no século VII a.C., durante o reino de Joaquim (Jeremias 26:20-24); entretanto Zacarias tinha sido martirizado muito antes, no século IX a.C., durante o reino de Joás em Judá.

Como deve entender-se então a referência de Jesus a Abel e Zacarias? A amplitude da lista de mártires não é evidente no Antigo Testamento das nossas versões modernas, pois a ordem dos livros difere da ordem hebraica. No Antigo Testamento da maioria das edições modernas, os livros dos Profetas aparecem no final, começando por Isaías e finalizando com Malaquias. Em contrapartida, os 24 livros do cânon hebraico (que correspondem aos 39 das Bíblias protestantes) se ordenavam como se segue:

I. A Torah (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio)

II.  Os Profetas

A. Profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel I e II, Reis I e II)

B. Profetas posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias)

III. Os Escritos (Salmos, Provérbios, Job, Cantares, Rute, Lamentações, Qohélet [Eclesiastes], Ester, Daniel, Esdras-Neemias, Crónicas I e II).

Em outras palavras, aqui Crónicas figurava no final da lista. A abrangente expressão de Jesus adquire sentido quando, no contexto de juízo pelo sangue inocente derramado, se entende como uma referência ao primeiro e último assassinato registado nas Escrituras, segundo a ordem tradicional do cânon hebraico: dizer «desde Abel até Zacarias» era equivalente a «de Génesis a Crónicas», ou seja desde o primeiro até ao último livro do cânon do Antigo Testamento. É como se hoje disséssemos, segundo a ordem tradicional do nosso Antigo Testamento, «De Génesis a Malaquias».

Logo, estas palavras do Senhor implicitamente sancionam o cânon hebraico como os oráculos de Deus confiados aos judeus, de que fala Paulo (cfr. Rom 3:2).

14 de fevereiro de 2025

SOBRE APARIÇÕES MARIANAS (OU OUTROS SERES DO ALÉM)


Sinais, milagres e maravilhas devem ser julgados por nós. Se te aparece um ser sobrenatural que diz ser a virgem Maria, mais católica romana do que o Papa, que afirma dogmas católicos que tu sabes que são claramente falsos e manda fazer coisas irracionais e imorais, isso funciona como derrotantes para essa aparição e, portanto, não deves dar crédito a esse ser vindo do além, seja ele quem for.

«E não é de admirar, porquanto o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz.» (2 Coríntios 11:14).

9 de fevereiro de 2025

DEFENDAMOS BASÍLIO MAGNO DOS ICONÓDULOS

 

Confesso a aparência do Filho de Deus na carne, e a santa Maria como a mãe de Deus, que deu à luz segundo a carne. E eu recebo também os santos apóstolos e profetas e mártires. Suas semelhanças eu reverencio e beijo com homenagem, pois elas são transmitidas dos santos apóstolos e não são proibidas, mas, pelo contrário, pintadas em todas as nossas igrejas.” (Basílio Magno, Epístola 360).

Apesar de este texto ter sido usado no Concílio de Niceia II como argumento a favor do culto das imagens, Basílio não escreveu isto. Todos os estudiosos da área concordam que este é um texto espúrio, uma falsificação iconófila.

O que não impede que ainda hoje se tente passar este texto como autêntico em algumas fontes católicas ou ortodoxas pouco escrupulosas.

A linguagem da epístola 360, aparentemente endereçada a ninguém em particular, revela uma origem muito posterior ao tempo de Basílio, própria da época da controvérsia iconoclasta. Sabemos por outras evidências da igreja primitiva que pelo menos partes significativas da igreja proibiam ícones, e portanto a afirmação de que a iconografia, descrita na referida homenagem e beijo das imagens, “não é proibida” é falsa. Além disso, se a iconografia foi realmente “transmitida” desde o início e era onipresente, como a epístola afirma, por que razão Basílio declararia o óbvio? Ou seja, por que razão um cristão antigo escreveria a outro sobre uma prática cristã supostamente antiga e difundida afirmando que ela “não era proibida”, se todos sabiam que ela não era proibida? Quando é que nós defendemos práticas cristãs antigas e difundidas como cantar? A epístola 360 tem fortes evidências de “anacronismos” e é tão amplamente questionada que não aparece na maioria das coleções das cartas de Basílio.

The Acts of the Second Council of Nicaea (787), ed. Richard Price, Liverpool University Press 2018, p. 314.



Um outro texto presente nas atas de Niceia II (4ª Sessão) é o comentário de Basílio Magno, feito na sua obra Sobre o Espírito Santo, onde ele afirma que “a honra prestada à imagem passa para o arquétipo” (18.45.19-20). O Concílio utilizou este texto para reforçar a sua defesa sobre a veneração de imagens, mas o contexto dos comentários de Basílio era outro. Como escreve Richard Price: “O contexto era a totalidade do culto prestado a Cristo como a imagem natural do Pai, mas, retirada do seu contexto imediato, esta afirmação pode ser aplicada ao papel das imagens artísticas ou miméticas, com a mensagem de que uma imagem deve receber exatamente o mesmo grau de honra que seu arquétipo” (45).

«A alegação iconoclasta de que a reverência para com as imagens não remontava à época de ouro dos padres, e muito menos aos apóstolos, seria hoje julgada por historiadores imparciais como simplesmente correta. A visão iconófila da história do pensamento cristão e da devoção cristã era [em Niceia II] virtualmente uma negação da história».

The Acts of the Second Council of Nicaea (787), ed. Richard Price, Liverpool University Press 2018, p. 43.