A famosa Bula Unam Sanctam, datada de 18 de novembro de
1302, estabelece em termos inequívocos que submeter-se ao Papa é absolutamente
necessário para a salvação. O seu autor foi Benedito Gaetani, mais conhecido
como Bonifácio VIII, papa entre 1294 e 1303.
Durante o século XIII, o papado tornou-se a
presa mais cobiçada pelas famílias nobres romanas. Após a morte do papa Nicolau
IV em 1292, seguiu-se um intervalo de dois anos durante os quais os cardeais,
em cujas mãos caia com exclusividade a eleição desde 1179 (III Concílio de Latrão, Cânon I), não conseguiam pôr-se
de acordo. A razão é que duas famílias, os Colonna e os Orsini, disputavam
entre si o cobiçado trono, mas as forças estavam muito equilibradas e nenhuma
conseguia prevalecer. Gaetani, um proeminente jurista que tinha sido feito
cardeal por Nicolau IV, persistia numa atitude neutral não por convicção, mas
porque alentava a esperança de que ao não poder prevalecer nem os Colonna nem
os Orsini, optassem por um candidato de compromisso, que não podia ser outro
senão ele.
Em teoria, os cardeais deviam proceder à
eleição de um novo papa com rapidez. Algumas décadas antes, o intervalo de
acefalia de três anos (1268-1271), que se seguiu à morte de Clemente IV e precedeu
a eleição de Gregório X, teve um final violento quando os cidadãos de Viterbo
arrancaram o teto do palácio episcopal onde estavam reunidos os cardeais e
forçaram a decisão. Para evitar futuras dilações, Gregório X (1271-1276) tinha
estabelecido normas segundo as quais os cardeais deviam reunir-se em conclave
num intervalo não maior de dez dias depois da morte do Papa, e ser submetidos a
progressivas restrições alimentares até chegarem a uma decisão. No entanto,
tais normas certamente não se cumpriam um par de décadas depois. Nem sequer a
ofuscada visita do rei francês de Nápoles comoveu os cardeais.
O escândalo que representava a acefalia da
Igreja de Roma refletia-se em protestos de toda a índole, e inclusive em
profecias e anúncios de juízo. O decano dos cardeais, Latino Malabranca,
declarou ter recebido uma dessas profecias, que anunciava o castigo divino
sobre os cardeais se não elegessem rapidamente um papa. Benedito Gaetani disse
com sarcasmo “Suponho que é uma das visões de vosso Pedro de Morrone”.
Pedro de Morrone era um octogenário muito
admirado por seu ascetismo e santidade, fundador de uma ordem monástica, que
vivia solitário nas montanhas. Malabranca respondeu ao deboche do cardeal
Gaetani: “Na realidade, é uma verdadeira revelação que Deus fez a este santo. É
um homem a quem os dons do Espírito Santo fizeram o mais digno de governar os
crentes”. A evocação dos feitos da vida do eremita incendiou o indolente
conclave, até um clímax quando Malabranca exclamou: “Em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, elejo o irmão Pedro de Morrone”. Alguns cardeais
acrescentaram de imediato o seu voto, dando os dois terços necessários, e os
demais, inclusive Gaetani, uniram-se pouco depois para uma eleição unânime a 5
de julho de 1294.
Correspondia aos cardeais comunicarem a
decisão ao eleito, que habitualmente estava muito perto, senão na mesma sala.
Mas Pedro de Morrone habitava numa gruta nas montanhas de Nápoles, e ali
tiveram de ir primeiro os enviados da Cúria e depois os próprios cardeais já
que, embora Pedro tivesse aceitado ser papa depois de considerável resistência,
se recusava a sair do seu próprio território rumo a Roma. Gaetani resistiu ao princípio;
exclamou: “Ide ter com vosso santo, pois eu não irei convosco, nem permitirei
que o Espírito Santo me engane mais sobre ele!”
Apesar do estalido inicial de cólera, o cardeal
Gaetani acabou, como os demais, comparecendo perante o novíssimo papa. Pedro,
que tomou o nome de Celestino, constituía para muitos uma esperança de reforma
de uma Igreja muito mais interessada no poder político e na riqueza que na cura
de almas. No entanto, o seu pontificado foi tão breve como desastroso.
Ignorante da complexa maquinaria de poder, Celestino concedeu benefícios de
maneira indiscriminada, fizeram-no assinar bulas em branco, criou novos cardeais
sobretudo franceses e napolitanos e em pouco tempo originou um caos
administrativo. Consciente da sua própria incapacidade, concebeu a ideia de
abdicar. Para isso procurou aconselhamento no perito jurista que era o Cardeal
Gaetani. Decorridos cinco meses da sua eleição e três meses da sua coroação, a
13 de dezembro de 1294, dia de Santa Lúcia, Celestino abdicou ao trono papal.
Poucos dias depois, após uma breve deliberação, Benedito Gaetani foi proclamado
seu sucessor a 24 de dezembro, adotando o nome de Bonifácio VIII.
O novo papa não tinha a menor intenção de
permanecer no território hostil de Nápoles, e empreendeu enquanto pôde a viajem
para Roma, levando consigo Celestino, o qual no entanto conseguiu fugir para as
montanhas. O desgosto que tal fuga lhe causou não impediu que Bonifácio
continuasse os planos da sua coroação em Roma, a qual se realizou a 23 de
janeiro de 1295 com uma pompa digna de um imperador, maior que a de qualquer de
seus predecessores. A sua coroa tinha 48 rubis, 72 safiras, 45 esmeraldas e 66
pérolas; um grande rubi coroava o vértice piramidal. Mais tarde Bonifácio
acrescentou à tiara um segundo aro na sua coroa, como expressão da sua
pretensão de ostentar ao mesmo tempo a soma do poder espiritual e temporal.
Bonifácio, de elevada estatura e imponente figura, usava esta pesada coroa como
parte do seu traje habitual.
Pouco depois Celestino foi capturado pelos
enviados do papa enquanto tentava fugir para a Grécia. Obrigado a comparecer
perante Carlos de Nápoles e Bonifácio, o velho monge pronunciou uma profecia
famosa: “Entraste como uma raposa, reinarás como um leão e morrerás como um cão”.
Bonifácio relegou Celestino para a fortaleza de Fumone, onde o ancião morreu
menos de um ano depois. Entretanto, Bonifácio anulou as decisões de Celestino,
retirando os privilégios que este tinha concedido.
O novo papa concentrou-se de imediato no seu objetivo
fundamental, que era o de consolidar o seu próprio poder e o da sua família.
Para isso apelou sem hesitação à simonia (venda de cargos eclesiásticos) e ao
nepotismo, ou concessão de cargos e prebendas aos seus parentes. Com dinheiro
da Igreja, o papa empreendeu um plano sistemático de compra de terras para os
Gaetani, alocando para isso a quarta parte de todas as receitas havidas durante
o seu reinado. O papa considerava-se a si mesmo como o novo César, o novo imperador.
“Um contemporâneo e testemunha ocular,
Giovanni Villani, deixou na sua Crónica
Florentina (Muratori, XIII,
348 ss) um retrato de Bonifácio que o judicioso von Reumont parece considerar
muito confiável. Segundo ele, Bonifácio, o maior canonista de seu tempo, era um
homem de grande coração e generoso e um amante da magnificência, mas também
arrogante, orgulhoso e severo nas suas maneiras, mais temido que amado,
demasiado mundano para o seu alto ofício e demasiado ávido de dinheiro tanto
para a Igreja como para a sua família. O seu nepotismo era aberto. Fundou a
casa romana dos Gaetani, e no processo de exaltar a sua família trouxe sobre si
o efetivo ódio dos Colonna e dos homens fortes do seu clã”.
Thomas
Oestrich, Pope Boniface VIII,
em The Catholic Encyclopedia (1907), vol. 2.
Precisamente foi o roubo de um carregamento de ouro da
Santa Sé destinado a novas compras de terras para os Gaetani, ocorrido a 3 de
maio de 1297, o que provocou o início do enfraquecimento do poder de Bonifácio.
O perpetrador tinha sido Estêvão, jovem e imprudente membro da poderosa família
Colonna cujo poder se tinha visto diminuído pelas transações papais. Ao saber
disto, Bonifácio convocou de imediato os dois cardeais Colonna, Tiago e Pedro,
para que comparecessem perante ele.
Tiago e Pedro se demoraram até terem a certeza
de que o ouro seria restituído. Mas Bonifácio, furioso, exigiu também que Estêvão
lhe fosse entregue e que os Colonna aceitassem ter guarnições papais nas suas próprias
cidades. Tal pretensão era inaceitável, e os Colonna contra-atacaram uma semana
depois do incidente, a 10 de maio, com um manifesto no qual se contestava a
legitimidade da eleição de Bonifácio e se apelava a um concílio geral.
A resposta do Papa adotou a forma de uma bula,
intitulada pomposamente In
excelso throno. Além de depor e excomungar os dois cardeais Colonna, exigia
a sua imediata presença. Os Colonna publicaram ainda outro manifesto ampliando
as suas acusações contra Bonifácio, e este replicou com outra bula na qual
excomungava toda a família, a qual declarava herege e presa legítima de quem a
capturasse. Como os Colonna continuavam em aberta resistência, Bonifácio
fulminou a excomunhão contra eles, e poucos meses depois convocou uma cruzada
contra a família rebelde.
Durante os meses seguintes, os Colonna foram
combatidos com notável ferocidade até que, uns meses mais tarde, se viram
empurrados para o seu último reduto, a cidade de Palestrina, onde a defesa
ficou ao comando do veterano Giovanni “Sciarra” Colonna, que não em vão tinha a
sua alcunha (Sciarra = Brigão). Perante um cerco que ameaçava prolongar-se por
tempo indefinido, Bonifácio seguiu o conselho de “promete muito, cumpre pouco”
e a cidade capitulou.
Bonifácio enviou o jovem Estêvão em
peregrinação. Devolveu a liberdade, embora não os cargos, aos cardeais Colonna.
Pouco depois, ordenou a destruição sistemática da cidade de Palestrina. A cidade,
que tinha sido a sede de um bispado desde a antiguidade, era tida por um dos
sete pilares da Igreja de Roma. Nela havia um palácio cuja construção se
atribuía a Júlio César, e os Colonna tinham reunido ali um tesouro incalculável
de obras de arte que tornava a cidade num extraordinário museu. A ordem papal
era inaudita, mas se cumpriu. Palestrina foi arrasada, com a única exceção da
igreja. Para completar a obra, Bonifácio a mandou arar e encher os sulcos com
sal, ao melhor estilo dos generais romanos.
Perante esta afronta, os Colonna rebelaram-se
novamente, pelo que Bonifácio os excomungou e se viram obrigados a exiliar-se.
Vários deles encontraram proteção na corte do rei de França, Felipe IV o
Formoso, que tinha os seus próprios pleitos com Bonifácio. Entretanto, o poder
de Bonifácio se via fortalecido pela derrota dos Colonna e também porque,
aproveitando as diferenças internas dos florentinos, tinha conseguido que a
poderosa cidade de Florença ficasse em mãos dos seus aliados.
Entretanto, adotando um costume imperial
romano, decidiu receber o começo do novo século com um Jubileu (costume que
continua até hoje), proclamado numa bula de 22 de fevereiro de 1300. A multidão
de peregrinos que se aglomerava em Roma trouxe consigo uma boa quantidade de
dinheiro e deu a Bonifácio a oportunidade de gloriar-se do seu poder. Segundo
os cronistas da época, “o Vigário de Cristo, o dono do mundo, apareceu várias
vezes perante os peregrinos com vestiduras imperiais e exclamara: «Sou César,
sou imperador!»”.
Apesar de na política externa o papa não ter
tido grandes sobressaltos, e inclusive ter mediado com sucesso entre França e
Inglaterra, existia uma tensão manifesta entre ele e Felipe IV o Formoso, rei
de França desde 1285. E, como no caso da luta iniciada contra os Colonna, nesta
luta de poder havia um problema de dinheiro.
Felipe o Formoso necessitava de dinheiro para
as suas lutas contra os grandes senhores feudais e, sobretudo, contra Inglaterra.
Dado que os nobres estavam isentos e o povo já estava espremido ao máximo, o
rei dirigiu o seu olhar para os grandes mosteiros cistercienses, os quais
começou a explorar. Dado que as abadias dependiam diretamente do papa, perante
este protestaram. Na Bula Clericis
laicos Bonifácio proibiu
pagar e receber impostos sobre lucros eclesiásticos sem a sua autorização. Sem
responder à Bula, Felipe contra-atacou proibindo a exportação de divisas e
declarou ilegal a permanência de estrangeiros em França. Com isto cortava o
fornecimento de dinheiro a Roma e tornava tecnicamente ilegal a permanência dos
legados papais no seu território. Dado que a medida régia era extremamente
prejudicial para Bonifácio, este moderou as medidas salvando as formas
(permitia que o rei “convidasse” os clérigos a colaborar segundo as necessidades
do reino, e os monges a “oferecer” ao soberano doações monetárias). Por sua vez
Felipe o Formoso deixou na prática sem efeito a proibição de exportar divisas e
da permanência dos legados pontifícios em França.
Apesar da escaramuça ter passado, permanecia o
problema de fundo das duas concepções diferentes das relações entre a igreja e
o estado que Felipe e Bonifácio sustentavam. Um historiador católico resume
assim a situação:
“O conflito entre Bonifácio VIII e o rei de
França, Felipe o Formoso, nasceu essencialmente da mentalidade antitética dos
dois protagonistas. O Papa, penetrado por temperamento e por formação de
espírito jurídico, era tremendamente firme e inflexível nas suas decisões e
prestava muito pouca atenção às circunstâncias históricas concretas que tão mal
encaixavam nos princípios teóricos em que ele se inspirava. Imitando Inocêncio
III e outros pontífices medievais aos quais vários soberanos europeus tinham
enfeudado os seus próprios reinos, pretendia Bonifácio exercer sobre todos os
reinos católicos uma alta e soberana autoridade, sem ter em conta que o que
tinha sido possível em tempos de Inocêncio III, em princípios do século XIII,
já não o era um século depois. Por seu lado, Felipe o Formoso, muito superior ao
seu rival no terreno do prático e disposto a servir-se sem escrúpulos de
qualquer meio que lhe fosse útil, apoiava a sua concepção da autoridade do rei
nos princípios do direito romano que desde há várias décadas vinham sendo estudados
com renovado vigor nas Universidades medievais: quod principi placuit, legit habet
vigorem; rex in suo regno est imperator. O soberano no seu território é
independente de qualquer autoridade seja imperial ou pontifícia”.
G. Martina: La
Iglesia de Lutero a nuestros días. Trad. J.L. Ortega. Madrid: Cristiandad,
1974, 1:43-44.
Apesar de Felipe não ter querido intrometer-se
abertamente aquando da perseguição dos Colonna (1297-1298), pois tinha assuntos
mais urgentes, isso não significa que tivesse cedido na sua posição. No entanto,
Bonifácio cometeu a imprudência de nomear seu legado em Paris nada menos que o bispo
de Pamiers, Bernard Saisset, que era hostil ao rei. O prelado foi conduzido ao
Conselho de Estado e depois colocado na prisão por ordem do rei, sob a acusação
de falar contra a segurança do estado e incitar à insurreição.
O papa restabeleceu a vigência da bula Clericis laicos mediante a bula Salvator mundi, e a 10 de
novembro de 1301 publicou outra com o paternal e condescendente título Ausculta fili, na qual
denunciava os abusos da coroa contra a Igreja e convocava os bispos franceses e
os juristas da Universidade de Paris para um concílio a realizar-se em Roma. O
tom da bula era enérgico mas não ofensivo: “Não te deixes enganar por ninguém
que queira convencer-te de que não tens nenhum superior e de que não estás
submetido ao mais alto na hierarquia eclesiástica. Quem assim pensa é louco;
quem o defende obstinadamente, um infiel...”
No entanto, o chanceler francês Pierre Flotte
distribuiu em Paris uma versão espúria que, se bem no fundo era por inteiro
fiel ao pensamento de Bonifácio, estava calculada para irritar os franceses:
“Bonifácio, bispo e servo dos servos de Deus, a Felipe, rei dos franceses. Teme
a Deus e obedece aos seus mandamentos! Sabe que no temporal e no espiritual nos
estás submetido (Scire
te volumnus quod in spiritualibus et temporalibus nobis subes); tu não tens a faculdade de
conceder benefícios e prebendas ... Nós declaramos que as concessões feitas por
tua mão são inválidas ... Consideramos herege quem creia o contrário”. A resposta
de Felipe “a Bonifácio, que se apresenta como Papa” dizia entre outras coisas
“Tua suma tolice deve saber que nós não estamos submetidos a ninguém no
temporal; quem creia o contrário, o temos por néscio e por louco”. De imediato
pôs em vigor a proibição de exportar dinheiro e proibiu os clérigos franceses de irem a Roma ao concílio convocado pelo Papa.
A 10 de abril de 1302 Felipe reuniu os Estados
Gerais (compostos pela nobreza, o clero e os cidadãos) na catedral de Notre
Dame e, com a ajuda dos seus próprios juristas e de membros da família Colonna
que faziam agora parte da sua corte, levantou gravíssimas acusações contra
Bonifácio, que incluíam simonia, nepotismo, sodomia e outras coisas do estilo.
Os bispos presentes não se atreveram a replicar, e acabaram aceitando escrever
ao papa nos termos que o rei queria, com grande desgosto de Bonifácio que os
fustigou acerbamente, “fazendo uso ao mesmo tempo, segundo seu costume, de não
poucas expressões ofensivas para o orgulho dos eclesiásticos franceses”.
Em todo o caso, o Papa, embora firme nas suas
pretensões, adotou como jurista um tom mais conciliador: “Há quarenta anos que nos
ocupamos do direito, e ainda não descobrimos que Deus estabelecesse dois
poderes. Não pretendemos tocar a jurisdição do rei, mas o rei, como qualquer outro
cristão, não pode também negar que nos está submetido no que respeita aos
pecados”. Mas já era tarde.
Quando 4 arcebispos, 35 bispos, 6 abades e
vários doutores franceses concorreram a Roma ao concílio convocado para 30 de
outubro, o rei mandou confiscar as suas propriedades. É nestas circunstâncias que
o papa Bonifácio publicou a famosa bula Unam
Sanctam a 18 de novembro de
1302.
Este documento produziu ainda maior fúria no
rei, que defendeu que “aquele ladrão e assassino, esse herege e o pior de todos
os simoníacos, a quem o mundo acusa dos mais horrendos crimes” não podia
constituir-se a si mesmo como soberano e juiz da humanidade. A 12 de março de
1303 o jurista e recente chanceler Guilherme
de Nogaret repetiu as acusações contra Bonifácio perante o Conselho
de Estado, as quais foram repetidas com renovada ferocidade por Guilherme de
Plasián a 13 de junho: “Bonifácio não crê na imortalidade da alma; declarou
publicamente que preferia ser um cão, um asno ou outro irracional do que um
francês; que não crê na transubstanciação sacramental e durante a missa vira as
costas para o altar; tem um diabo a seu serviço que o aconselha em todas as coisas;
lida com feiticeiros; manda colocar nas igrejas estátuas de prata com a sua
efigie e induz assim os fiéis à idolatria; comete simonia; manda assassinar
clérigos na sua presença; come carne nos dias de vigília; assassinou o seu
predecessor Celestino; tem a culpa de se ter perdido a Terra Santa; por todas
estas razões é inimigo do rei de França, modelo para todos os crentes, pilar da
cristandade...”
Friedrich Gontard, Historia de los Papas. Regentes
entre el cielo y el infierno. Trad. J. Rovira Armengol. Buenos Aires:
Compañía General Fabril Editora, 1961; 1:474).
É claro que havia patente exagero tanto na
exaltação de Felipe como na degradação de Bonifácio. Contudo, muitas das
acusações não eram infundadas. A simonia e o nepotismo do papa era bem
conhecido, assim como a sua refinada crueldade contra os seus inimigos. E Bonifácio
era muito pouco prudente nos seus comentários, que eram cuidadosamente
registados pelos cronistas; numa ocasião disse que tinha tantas esperanças na
vida após a morte como o frango que estava servido na mesa; em outra que ir
para a cama com uma menina ou um jovem era tão inócuo como lavar as mãos.
Enquanto Guilherme de Plasián incendiava o
Conselho de Estado, Guilherme de Nogaret, “Sciarra” Colonna e outros aliados
italianos encontravam-se em Itália conspirando contra o Papa, que na época se
encontrava na sua cidade natal de Anagni. Em agosto, Bonifácio negou sob solene
juramento as acusações publicadas contra ele em Paris, ao mesmo tempo que
tomava uma série de medidas disciplinares contra os franceses, como a exclusão
das eleições de corpos eclesiásticos, a reserva para a sede de Roma de todos os
benefícios vacantes em França e a rejeição da apelação para um concílio geral
que não fosse convocado por ele mesmo. Além disso ameaçou Felipe com os máximos
castigos eclesiásticos a menos que se arrependesse. Na realidade, tinha já
redigida a bula Super Petri
solio na qual excomungava o
rei francês e libertava os seus súbditos de toda a obediência ao monarca. A
bula trazia a data de 8 de setembro de 1303, mas nunca chegou a promulgar-se.
A 7 de setembro de 1303, ao grito de “Abaixo
Bonifácio! Viva o rei de França!”, os conspiradores entraram na cidade e, sem
encontrar mais resistência do que a resistência oposta pelos sobrinhos de
Bonifácio, penetraram no palácio papal. Encontraram Bonifácio de pé diante do
altar, com o seu esplêndido traje e a sua dupla coroa, com uma cruz e as chaves
nas suas mãos. Pouco antes tinha dito: “Já que sou atraiçoado como o Salvador,
e o meu fim se aproxima, ao menos morrerei como Papa”. Evidentemente, entre os
muitos defeitos do octogenário papa, não estava a cobardia. Nogaret impediu
que Colonna matasse ali mesmo Bonifácio, pois tinha ordens de levá-lo vivo
para Lyon.
No entanto, tal ordem nunca se cumpriu, porque
os cidadãos de Anagni, embora tarde, reagiram e expulsaram os conspiradores,
que tiveram que retirar-se também pela proximidade das tropas dos Orsini, fiéis
a Bonifácio. O papa foi conduzido a Roma, mas o episódio tinha minado as poucas
energias que lhe restavam, e salvo uma procissão para são Pedro no dia seguinte
ao seu retorno, já não saiu do seu palácio de Latrão. Morreu menos de dois
meses depois, a 11 de outubro de 1303.
Assim acabou os seus dias o homem que
proclamou como de absoluta necessidade para a salvação que todo ser humano lhe
estivesse sujeito. Tinha-se cumprido a profecia de Pedro de Morrone: Entrou
como uma raposa, reinou como um leão, e morreu como um cão.
Como diz a Catholic
Encyclopedia:
“Embora
certamente um dos mais notáveis pontífices que alguma vez ocuparam o trono
papal, Bonifácio VIII foi também um dos mais infelizes. O seu pontificado marca
na história a decadência da glória e poder medieval do papado”.
“A memória de Bonifácio, curiosamente, sofreu
principalmente por dois grandes poetas, porta-vozes de um catolicismo ultra-espiritual
e impossível, Frei Jacopone da Todi e Dante [Alighieri]. O primeiro foi o
«tonto sublime» do amor espiritual, autor do Stabat
Mater e principal cantor dos
«Espirituais» ou franciscanos extremos, colocado na prisão por Bonifácio [por
ter-se aliado com os Colonna] a quem por isso satirizou no vernáculo popular e
musical da península. O segundo era um gibelino, ou seja, um antagonista
político do papa guelfo a quem, também, atribuía todos os seus infortúnios pessoais
e a quem por isso arrastou ao tribunal de sua própria justiça, mas em
comovedoras linhas de imortal invectiva cuja maligna beleza sempre turbarão o
julgamento do leitor”.
Thomas
Oestrich, Pope Boniface VIII,
em The Catholic Encyclopedia (1907), vol. 2.
COMENTÁRIO SOBRE O
ENSINO DA BULA UNAM SANCTAM
Este documento estabelece uma série de pontos,
baseados principalmente num florilégio de citações patrísticas e de teólogos
medievais, com textos bíblicos retirados do contexto e interpretados alegoricamente,
de uma maneira em que nenhum exegeta católico que valorizasse a sua reputação o
faria hoje.
A bula estabelece:
1. Que existe uma única Igreja fora da qual
não há salvação.
2. Que essa Igreja tem uma única cabeça visível,
a qual é o bispo de Roma (“Vigário de Cristo, sucessor de Pedro”)
3. Que há dois poderes, representados por duas
espadas, uma espiritual, confiada à igreja, e outra material, confiada aos reis
seculares.
4. Ambas as espadas estão sob o poder da
Igreja, embora a segunda seja administrada para ela pelos príncipes.
5. O papa tem poder para julgar tanto poderes
espirituais inferiores a ele como os poderes temporais.
6. No entanto, ele por sua vez não pode ser
julgado por nenhum homem, mas apenas por Deus.
7. Portanto, é absolutamente necessário para a
salvação que todo ser humano esteja submetido ao papa.
Desde a definição dogmática da doutrina da
infalibilidade papal no Concílio Vaticano I (1870), os teólogos católicos estabeleceram
que o papa somente exerce esta infalibilidade como carisma negativo (ou seja,
que o preserva do erro mas não lhe revela novas doutrinas) quando se cumprem
certas condições:
1. O papa deve falar na sua qualidade de
pastor universal, ou seja, ex
cathedra. Isto parece cumprir-se na Bula Unam
Sanctam:
“A bula é universal em caráter. Como
mostra o seu conteúdo, traça-se uma cuidadosa distinção entre os princípios fundamentais
respeitantes ao primado romano e as declarações em relação à aplicação destes
ao poder secular e seus representantes”.
J.P. Kirsch, Unam
Sanctam, em The Catholic
Encyclopedia (1912), vol. 15;
negrito acrescentado.
2. Deve tratar-se de um assunto de fé ou
costumes.
Neste caso, se trata de um assunto respeitante
à salvação, e portanto à fé.
3. Deve definir uma doutrina e expressar a sua
intenção de que seja firmemente crida pelos fiéis.
Aqui Bonifácio não deixou lugar a dúvidas:
“submeter-se ao Romano Pontífice,
o declaramos,
o dizemos,
definimos
e pronunciamos
como de toda a necessidade de salvação para toda a humana criatura”
J.P. Kirsch (l.c.) observa:
“Esta definição, cujo significado e
importância são claramente evidentes da ligação com a primeira parte sobre a
necessidade da única Igreja para salvação, e do papa como a única cabeça suprema
da Igreja, expressa a necessidade para todo aquele que deseja alcançar salvação
de pertencer à Igreja, e portanto de estar sujeito à autoridade do papa em
todos os assuntos religiosos. Este foi o ensino constante da Igreja, e foi
declarado no mesmo sentido pelo Quinto Concílio Ecuménico de Latrão, em 1516:
"De necessitate esse salutis omnes Christi fideles Romano Pontifici
subesse" (É necessário para a salvação de todos os fiéis de Cristo
estarem sujeitos ao pontífice romano)”.
Este autor católico compreensível mas
arbitrariamente afirma, contra as motivações históricas da bula, o pensamento
de Bonifácio e o próprio texto, que a autoridade que o documento reclama para o
papa se restringe apenas a “todos os assuntos religiosos”. A refutação mais clara
de semelhante limitação é dada pelo próprio texto, no desenvolvimento da teoria
das duas espadas e do poder supremo do papa tanto
sobre assuntos temporais como espirituais.
É natural que os católicos de hoje,
especialmente aqueles interessados no diálogo ecuménico, se sintam
particularmente incomodados com este documento. Trata-se de uma declaração
papal que cumpre com todos os requisitos para ser considerada uma declaração
infalível, e que deita por terra as doces palavras para com os “irmãos
separados” que fluíram a partir do decreto Unitatis Redintegratio no Concílio Vaticano II.
A Igreja de Roma demonstraria um espírito de
diálogo se derrogasse, com as desculpas devidas, esta infame bula nascida da
ambição de poder do jurista que chegou a papa.