Nota prévia
Na época da Reforma a
posição protestante em relação aos judeus não era uniforme, e as opiniões de
Lutero não eram nem são subscritas pela maioria dos protestantes. Em honra da
verdade, é necessário reconhecer que Martinho Lutero evoluiu para uma posição
francamente judeofóbica.
De nenhum modo podemos
subscrever as opiniões do Dr. Martinho Lutero acerca dos judeus. Não se defende
a fé com a idealização de algum personagem. Lutero teve os seus erros, alguns
graves, e é bom reconhecê-los para não repeti-los.
De qualquer modo, para que
ninguém se engane no sentido de que Lutero tivesse sido o iniciador e não um
herdeiro da intolerância contra os judeus, eis aqui esta síntese.
Como se poderá constatar,
chamo ao ódio, ressentimento ou preconceito contra os judeus judeofobia e não antissemitismo. Este
último termo, cunhado por um inimigo dos judeus, elude a verdadeira natureza do
problema que não é basicamente racial.
Na
Europa Medieval
Depois da ascensão de
Constantino ao trono imperial romano em 312, os judeus começaram a ser excluídos
de cargos públicos e outras dignidades. Os seus privilégios foram restringidos,
a jurisdição dos rabinos foi limitada, desincentivaram-se as relações estreitas
com os cristãos, e proibiu-se o proselitismo judaico, ao mesmo tempo que se
incentivava a pregação cristã e a conversão a esta fé...
De qualquer modo, na
primeira parte da Idade Média judeus e cristãos conviveram sem grandes
dificuldades, apesar da legislação discriminatória de vários concílios
eclesiásticos: a judeofobia estava principalmente restrita a certos setores do
clero ...
... as relações entre
europeus judeus e cristãos eram amistosas, especialmente entre o povo. Isto
era a tal ponto verdade, que o clero começou a ver com preocupação que alguns
cristãos prestavam mais atenção à prédica dos rabinos do que à dos sacerdotes
cristãos.
Uma exceção à convivência
tranquila foi o reino visigodo de Espanha, que ao princípio impulsionou a
conversão (633) e depois a escravidão dos judeus e a proscrição do judaísmo
(694-711). Perante esta situação, muitos judeus fugiram para o califado árabe
estabelecido na península ibérica.
Os problemas sérios dos
judeus europeus começaram com a inauguração do segundo milénio. Em 1012 o
imperador Henrique II ordenou a expulsão dos judeus da cidade de Mainz. Também
houve expulsões em várias cidades francesas.
Muito mais grave, no
entanto, foram as atrocidades ocorridas como consequência das Cruzadas. Alguns
dos cruzados, especialmente do populacho, viam os judeus europeus como
detestáveis inimigos da cruz. Por conseguinte, empreenderam a sua «guerra santa» em terreno europeu, matando indefesos judeus em sangrentos episódios
que não trouxeram mais do que desonra e vergonha para a santa Cruz do Nazareno.
A primeira matança teve lugar em Rhineland em 1046, e se lhe seguiram várias
outras (1146, etc).
No século XII, as
transformações económicas da sociedade europeia tornaram necessários os
empréstimos e créditos com juros. Como esta atividade não era considerada
lícita para cristãos, autorizou-se o seu exercício por parte dos judeus, porque
alguém tinha de fazê-la e, de qualquer modo, as almas dos judeus já se davam
por perdidas!
Os judeus fizeram muito
bem o seu trabalho. O seu desempenho no antipático ofício de prestamistas e
usurários foi levado a cabo com a autorização e o beneplácito dos governantes e
da Igreja romana. No entanto, mais tarde usou-se a idoneidade dos judeus nestas
áreas como alimento para nutrir a judeofobia, especialmente quando o surgimento
de grupos de fortes banqueiros italianos permitiu aos europeus prescindir dos
prestamistas judeus.
Calúnias
populares
É nesta época que
apareceram uma série de acusações caluniosas contra os judeus, que serviria
como justificativa para medidas discriminatórias. Popularizou-se a ideia de que
os judeus diferiam fisicamente das outras pessoas, e que tinham atributos
satânicos, incluído o chamado foetor judaicus, ou fedor judaico, que se opunha ao cheiro de santidade próprio dos
cristãos. Certas calúnias tornaram-se populares, e foram aceites como factos
comprovados pela maior parte da população europeia.
O libelo de sangue é a
lenda segundo a qual os judeus tinham uma insaciável sede de sangue cristão. O
primeiro libelo de sangue da Idade Média ocorreu em Norwich (Inglaterra) no ano
1144. Segundo se dizia, uma criança cristã tinha sido sequestrada, torturada e
assassinada por uns judeus no dia de sexta-feira santa. Rapidamente as
acusações se multiplicaram: em Gloucester (1168), em Blois (1171), em Saragoça
(1182), em Fulda (1235), etc. As Siete
Partidas espanholas de 1263 repetiam a acusação assim: "Ouvimos dizer
que em certos lugares, na Sexta-Feira Santa, os judeus roubam crianças e as
crucificam com mofa".
Um tal Simão de Trento,
cujo único e duvidoso mérito era o de ter sofrido o martírio às mãos dos judeus
em 1475, foi beatificado e permaneceu no santoral romano até 1965.
Tudo isto soa hoje
incrível ou ridículo, mas no seu tempo custou os bens, a honra e até a vida de
muitos judeus, como os assassinados em 1286 na matança de Munique. O caso da
Criança de la Guardia, no qual judeus conversos confessaram sob tortura ter
sacrificado uma criança com o conhecimento do Grande Rabino, foi um importante
antecedente para a expulsão dos judeus sefarditas (1492).
A
profanação da hóstia
Pouco depois da definição
dogmática da transubstanciação no IV Concílio de Latrão (1215) começou-se a
acusar os judeus de roubar hóstias consagradas, com o propósito de profaná-las,
para humilhar Cristo. Por muito difícil que seja para nós hoje imaginar os
judeus a arriscar as suas vidas para furtar hóstias com o único fim de
blasfemar contra Jesus Cristo, a patranha foi crida até ao século XIX.
A primeira denúncia de
profanação da hóstia ocorreu na cidade alemã de Belitz, em 1243. Como
resultado, vários judeus morreram na fogueira. Outros casos notáveis tiveram lugar
em Paris (1290), Deggendorf (1337), Bruxelas (1370) e Segóvia (1415). Também
vale a pena mencionar a tragédia de Knoblauch de 1510. Até 1836 pelo menos
houve acusações neste sentido.
A
lenda do judeu errante
Era uma espécie de alma
penada, que às vezes era identificada com o oficial do templo que esbofeteou
Jesus. Justamente castigado por sua falta, o Judeu Errante era o
arquétipo do povo judeu, sem pátria nem lar. Parece que a lenda surgiu em
Bolonha no século XIII quando Mateus Paris (1199-1259), monge beneditino que
foi o principal cronista da Idade Média, incorporou a fábula do Judeu Errante
na sua Chronica Majora, que teve
enorme influência.
Estas calúnias e outras
menos famosas moldaram a impressionável mente dos europeus medievais e
originaram preconceitos que perduram até hoje. O maior teólogo medieval, Tomás
de Aquino (1225-1274) considerava justo que os judeus fossem submetidos a
perpétua servidão, porque eram os assassinos de Jesus Cristo.
Legislação
discriminatória
No tempo que vai desde a
Idade Média até ao século XIX, a judeofobia deve ver-se à luz do conceito de um
vínculo inquebrantável entre a igreja e o Estado, segundo o qual quem está fora
da igreja é um traidor além de um herege. A tese foi declarada em termos
inequívocos pelo papa Bonifácio VIII na famosa bula Unam Sanctam de 18 de Novembro de 1302.
Os Concílios de Latrão III
(1176) e IV (1215), muito preocupados com a defesa da fé, ditaram legislação
discriminatória contra grupos diversos que consideravam perigosos. Proibiu-se a
judeus e sarracenos ter criados cristãos, e também a convivência de judeus e
sarracenos com cristãos. Esta última disposição é um antecedente importante do
sistema de ghettos (ver mais abaixo).
O IV Concílio de Latrão
dispôs também que, para preservar os cristãos do contacto sexual (sim, leu bem)
com judeus e sarracenos, estes últimos deveriam vestir-se de maneira
distintiva. Isto diz o Cânon 68 do citado Concílio:
Em
várias províncias, uma diferença nas vestimentas distingue os judeus ou os
sarracenos dos cristãos; mas noutras ... não pode notar-se já diferença. Pelo
que, às vezes tem acontecido que alguns cristãos têm tido por erro comércio
sexual com judias e sarracenas, e judeus e sarracenos com cristãs. Para que o
crime de tal pecaminosa mistura não encontre mais escape ou refúgio sob o
pretexto do erro, ordenamos que eles [os judeus e os sarracenos] de ambos os
sexos, em todas as terras cristãs e em todo tempo, sejam publicamente
diferentes do resto da população pela qualidade da sua vestimenta...
Parece que o Concílio
estava muito mais preocupado pela mistura com judeus e sarracenos do que pela
promiscuidade sexual dos cristãos que é pressuposta neste cânon. Em todo o caso,
como o concílio não estabeleceu exatamente que tipo de vestimenta distintiva os judeus deviam vestir, a prática variou em diversos países: um gorro
bicudo na Alemanha, um círculo vermelho e branco na França, um pedaço de pano
amarelo cuja forma imitava as tábuas da Lei em Inglaterra, etc. O papa
Alexandre IV ordenou em 1257 o uso de um círculo amarelo para os varões judeus,
e de duas fitas azuis no véu das judias. Três séculos mais tarde, Paulo IV
mandou, na bula Cum nimis absurdum
(1555) o uso de um gorro amarelo e um lenço da mesma cor, para judeus varões e
mulheres respetivamente.
Queima
do Talmude
A partir do século XIV, os
mais decididos judeofóbicos proviriam da nascente classe burguesa de artesãos e
comerciantes, e dentre os monges franciscanos como João de Capistrano, e os
dominicanos como Vicente Ferrer. Este último tinha um ardente zelo pela evangelização
dos muçulmanos e dos judeus de Espanha, que o transformou num inflamado inimigo
do islamismo e do judaísmo.
A partir do século XIII
começou a haver debates públicos entre judeus e cristãos, em que os judeus se
encontravam em clara desvantagem. O ataque contra o judaísmo manifestou-se
muitas vezes sob a condenável forma da queima de exemplares do Talmude. Isto
ocorreu primeiramente em Paris (1240) e foi seguido de atos similares em
outras cidades. Quando a Inquisição criou o Índice de Livros Proibidos, os
livros da tradição judaica foram submetidos a forte censura.
Expulsões
Depois dos últimos
concílios lateranenses, alguns países tomaram a decisão de expulsar os judeus
dos seus territórios, uma prática que se prolongaria por séculos. A primeira expulsão,
acompanhada do confisco de bens, foi decretada pelo rei francês Felipe Augusto
em 1182. Mais importante foi a expulsão ocorrida em 1290 em Inglaterra, país em
que a influência de Roma era muito forte naquele tempo.
Mais tarde, como
consequência da epidemia de peste que dizimou a população europeia, os judeus
foram acusados de envenenar a água dos cristãos e houve numerosos assassinatos.
Uma onda de perseguições em Viena foi seguida pela expulsão dos judeus
austríacos em 1421.
Em Espanha, a convivência
de judeus e cristãos havia sido relativamente pacífica entre o século XI e o
século XIV. Em 1411, como resultado da acesa prédica de Vicente Ferrer, se
ditou legislação discriminatória. Dois anos mais tarde houve um famoso debate
em Tortosa, que ocasionou conversões forçadas e novas perseguições.
No biénio 1473-1474 houve
matanças de "marranos" (falsos conversos do judaísmo ao cristianismo)
em Valladolid, Córdova e Segóvia. Quando, pouco depois, se estabeleceu a
Inquisição espanhola, a perseguição dos judeus tornou-se sistemática e cruel.
As penúrias dos judeus sefarditas foram coroadas com a expulsão ordenada pelos
reis Católicos, Isabel e Fernando, a 31 de Março de 1492. O exemplo espanhol
foi seguido pouco depois (1496) pelos portugueses.
O
Ghetto
A restrição do lugar de
residência dos judeus na Europa originou-se com a proibição de que cristãos e
judeus convivessem, e organizou-se mediante toda uma legislação sancionada
entre os séculos XIII e XV.
Em 1516 surgiu em Veneza o
Ghetto ou bairro onde os judeus deviam ser confinados. O exemplo veneziano foi imitado por outras cidades.
Assim, em 1555 o papa contrarreformador Paulo IV confinou os judeus romanos a
um setor rodeado por um muro, na margem oposta do Tibre; a medida era parte de
toda uma série de disposições que incluíam a restrição dos ofícios lícitos para
os judeus, a limitação das suas transações com os cristãos, o uso obrigatório
de distintivos, e um programa de sermões cristãos com assistência forçada.
Como os limites dos
ghettos não podiam ser ampliados, com o tempo tornaram-se lugares de
amontoamento com muito precárias condições de vida, expostos a derrocadas,
epidemias e incêndios. Além disso, em teoria os ghettos deviam ter um único
acesso, o qual era fechado durante as festividades cristãs, devendo os judeus permanecer lá dentro. Com o tempo, estabeleceram-se ghettos em outros países, como
França, Alemanha e Polónia.
Fernando
D. Saraví
Bibliografia
Yizhak Heinemann e col., Antisemitism. Jerusalém: Ketter Publishing House, 1974.
Jacob Robinson e col., Holocaust. Jerusalém: Ketter Publishing House, 1974.
A.S. Turberville, La
Inquisición Española. México: Fondo de Cultura Económica,
1954.
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