18 de novembro de 2025

A OPOSIÇÃO DE IRENEU À VIRGINDADE PERPÉTUA DE MARIA


Gostaria de citar e comentar algumas passagens relevantes.

Em contraste com o conceito de virgindade in partu, Ireneu refere a forma como Jesus abriu o ventre de Maria:

"a Palavra deveria tornar-se carne, e o Filho de Deus, o Filho do Homem (o Puro abrir puramente esse ventre puro que regenera o género humano para Deus, e que Ele mesmo tornou puro); e tendo-se tornado nisto que nós também somos, Ele [contudo] é o Deus Poderoso e possui uma geração que não pode ser declarada." (Contra as Heresias, 4:33:11)

Ireneu refere-se a Jesus como o "primogénito" de Maria. Um filho único é por vezes chamado de primogénito, mas o termo refere-se geralmente a um dos filhos. Tanto conceptualmente como em termos da história do uso, "primogénito" parece referir-se mais provavelmente a alguém dentro de um grupo do que a um indivíduo isolado. Se tivéssemos evidência que contrariasse o significado normal de "primogénito", poderíamos interpretar Ireneu nesse sentido, mas não podemos optar por uma leitura menos natural sem evidências incontestáveis. Outra terminologia podia ter sido utilizada se Ireneu acreditasse na virgindade perpétua de Maria, especialmente se não apenas acreditasse nela, mas também a considerasse tão importante como os defensores do conceito frequentemente sugerem. Por exemplo, Jesus poderia ter sido chamado de "único filho" de Maria (como vemos com outras pessoas para além de Jesus em Lucas 7:12, 8:42, 9:38), o que seria consistente com a virgindade perpétua de Maria e expressaria o facto de que Jesus tinha as vantagens associadas a ser o primeiro filho. A escolha de Ireneu por "primogénito" é evidência de que ele não acreditava na virgindade perpétua de Maria:

"Mas Simeão também — aquele que recebera um aviso do Espírito Santo de que não morreria antes de contemplar Cristo Jesus — tomando-o nos braços, o primogénito da Virgem, bendisse a Deus e disse: 'Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra, porque os meus olhos já viram a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel'. Assim, confessou que o menino que segurava nos braços, Jesus, nascido de Maria, era o próprio Cristo, o Filho de Deus, a luz de todos, a glória de Israel e a paz e o refrigério dos que dormiam." (Contra as Heresias, 3:16:4)

Noutra passagem, Ireneu compara Maria a um solo que inicialmente era virgem, mas que depois perdeu a virgindade, e refere que Maria "ainda era virgem":

"E assim como o próprio protoplasto Adão, teve a sua substância proveniente de solo não cultivado e ainda virgem ('pois Deus ainda não tinha enviado chuva, e o homem não tinha lavrado a terra'), e foi formado pela mão de Deus, isto é, pela Palavra de Deus, pois 'todas as coisas foram feitas por Ele', e o Senhor tomou o pó da terra e formou o homem; assim também Ele, que é a Palavra, recapitulando Adão em Si mesmo, recebeu legitimamente um nascimento, permitindo-Lhe reunir Adão [em Si mesmo], de Maria, que ainda era virgem." (Contra as Heresias, 3:21:10)

Note-se, em primeiro lugar, que não havia nenhuma necessidade de comparar Maria ao solo virgem ou de comentar como a virgindade do solo veio a terminar. Ireneu podia ter utilizado outra analogia ou, por exemplo, adicionado um qualificativo relevante, se não quisesse que as pessoas chegassem à conclusão mais óbvia a partir dos seus comentários (de que Maria também deixou de ser virgem). Em segundo lugar, ele optou por dizer de Maria "que ainda era virgem" em vez de "que seria sempre virgem" ou algo parecido.

Repare-se que a questão aqui é como melhor explicar os comentários de Ireneu, e não simplesmente como ele pode ser interpretado. Não só ele nunca defende a virgindade perpétua de Maria, apesar de se referir frequentemente à sua virgindade de outras formas, como também faz vários tipos de comentários em vários contextos que quando considerados naturalmente são inconsistentes com a virgindade perpétua. É improvável que Ireneu acreditasse na virgindade perpétua de Maria. É ainda mais improvável que ele acreditasse nela e a considerasse tão importante como os defensores do conceito costumam sugerir.

Por vezes, Jerónimo é invocado quando se discute Ireneu, sob a alegação de que Jerónimo supostamente nos dá razões para crer que Ireneu acreditava na virgindade perpétua de Maria. Mas o apelo a Jerónimo é duvidoso, pelas razões expostas aqui.

1 de novembro de 2025

MARTINHO LUTERO E JOÃO CALVINO SOBRE MARIA

 

Comparação teológica e documental com a visão dogmática da Igreja de Roma


1. MARTINHO LUTERO (1483–1546)

Tema

Citação (tradução)

Referência

Observação crítica

Maria como Mãe de Deus (Theotokos)

“Ela é a Mãe de Deus e, no entanto, permaneceu virgem. [...] É a maior honra que foi possível conceder a uma criatura.”

LUTERO, Martin. Das Magnificat verdeutscht und ausgelegt (1521). In: D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (WA) 7, p. 572–574. Weimar: Böhlau, 1883ss.

Lutero aceita o título Theotokos como afirmação da encarnação, mas não o usa para justificar culto ou intercessão.

Contra o culto e a invocação de Maria

“Não devemos fazer de Maria uma deusa, pois ela não concede graça, não salva. É Deus quem faz tudo, por meio de seu Filho.”

LUTERO, Martin. Predigten über das Evangelium des Johannes (1521). WA 10 I/1, p. 268.

Rejeita toda forma de invocação mariana; condena o culto que a “transforma em ídolo”.

Maria aponta para Cristo, não para si mesma

“Maria não quer que recorramos a ela, mas através dela aprendamos a ir a Cristo.”

LUTERO, Martin. Weihnachtspredigt (1529). WA 29, p. 182.

Lutero vê Maria como testemunha de Cristo, não como intercessora.

Imaculada Conceição

“Maria foi concebida de maneira natural, como todos os outros seres humanos, mas o Espírito Santo manteve-a livre do pecado.”

LUTERO, Martin. Predigt am Tag der Empfängnis Mariä (1527). WA 17 II, p. 287.

Em fase inicial, Lutero admite certa “purificação” de Maria, mas mais tarde nega qualquer concepção imaculada.

Somente Cristo é sem pecado

“Somente Cristo é sem pecado; todos os outros nascem em pecado.”

LUTERO, Martin. Vorlesung über den Psalter (1535). WA 39 II, p. 88.

Lutero exclui Maria da impecabilidade absoluta.

Contra a idolatria mariana

“Maria não quer que façamos dela um ídolo, ela não quer que a adoremos. Ela aponta para Deus.”

LUTERO, Martin. Das Magnificat (1521). WA 7, p. 572.

Lutero considera o culto a Maria como desvio idolátrico.


2. JOÃO CALVINO (1509–1564)

Tema

Citação (tradução)

Referência

Observação crítica

Maria como Mãe de Deus (Theotokos)

“Não hesito em dizer que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus, porque ela gerou aquele que é Deus e homem.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur l’Évangile selon saint Luc (1555). In: Ioannis Calvini Opera Selecta (CO) 45, p. 39. Brunswick: Schwetschke, 1863.

Calvino usa Theotokos apenas cristologicamente: para confirmar que o Filho de Maria é o Verbo encarnado.

Contra o culto mariano

“É uma blasfêmia atribuir a Maria o que pertence somente a Deus e a Cristo. [...] A superstição papista transformou-a em uma deusa.”

CALVINO, Jean. Institutes of the Christian Religion, I.11.10. In: Opera Selecta (CO) 2, p. 83–84.

Condena a “idolatria papista” e o culto a Maria como usurpação da glória divina.

Cristo como único mediador

“Maria não é uma mediadora. Cristo é o único mediador entre Deus e os homens.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur l’Évangile selon saint Jean (1553). CO 47, p. 57.

Recusa qualquer mediação de Maria. Cita 1Tm 2,5 como regra absoluta.

Imaculada Conceição

“Chamar Maria de imaculada é dizer que ela não precisou da redenção de Cristo, o que é absurdo. Ela foi redimida como todos os demais.”

CALVINO, Jean. Sermon sur Luc 1:28. CO 46, p. 37–38.

Rejeita explicitamente o conceito de Imaculada Conceição (séculos antes do dogma de 1854).

Assunção Corporal de Maria

“Não encontramos nas Escrituras que Maria tenha sido isenta da condição comum dos mortais, ou que tenha sido elevada ao céu em corpo e alma. Isto é pura invenção dos papistas, sem fundamento algum na Palavra de Deus.”

CALVINO, Commentaire sur l’Évangile selon saint Luc (1555), CO 45, p. 44..

Rejeita explicitamente a ideia de Assunção física como “invenção papista” e “fábula sem Escritura”. Para ele, a morte de Maria foi como a de qualquer crente: dormiu no Senhor, esperando a ressurreição final.

Honra devida a Maria

“Devemos honrar Maria, não adorando-a, mas imitando sua fé e humildade.”

CALVINO, Jean. Commentaire sur le Magnificat. CO 45, p. 41.

Maria é “exemplo”, não “objeto” de fé.


3. IGREJA CATÓLICA ROMANA (VISÃO DOGMÁTICA)

Dogma / Doutrina

Definição oficial

Fonte magisterial

Maternidade divina (Theotokos)

Maria é verdadeiramente Mãe de Deus, pois gerou o Verbo encarnado.

Concílio de Éfeso (431). Denzinger-Hünermann (DH) 252.

Imaculada Conceição

Maria foi preservada do pecado original desde o primeiro instante de sua concepção.

Pio IX, Ineffabilis Deus (1854). DH 2803.

Assunção corporal

Maria, ao fim de sua vida terrena, foi levada em corpo e alma ao céu.

Pio XII, Munificentissimus Deus (1950). DH 3903.

Mediação universal e culto hiperdúlico

Maria é medianeira de todas as graças e digna de culto especial (hiperdulia).

Concílio Vaticano II, Lumen Gentium §62; DH 4420.


4. ANÁLISE COMPARATIVA FINAL

Questão

Lutero

Calvino

Catolicismo Romano

Maternidade divina

Aceita, sem culto

Aceita, sentido cristológico

Dogma (Éfeso 431)

Imaculada Conceição

Rejeita (fase tardia)

Rejeita

Dogma (1854)

Assunção corporal

Silêncio, não defende

Rejeita

Dogma (1950)

Intercessão / mediação

Rejeita

Rejeita

Afirma

Culto / invocação

Rejeita

Rejeita

Afirma (hiperdulia)

Valor espiritual

Exemplo de fé

Exemplo de fé

Exemplo + intercessora


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (ABNT)

  • CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2008.
  • CALVIN, Jean. Ioannis Calvini Opera quae supersunt omnia. Ed. Baum, Cunitz, Reuss. Brunswick: Schwetschke, 1863–1900. (CO 45–47).
  • DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Peter (org.). Enchiridion Symbolorum: Compendium of Creeds, Definitions, and Declarations on Matters of Faith and Morals. 45. ed. Freiburg: Herder, 2017.
  • LUTERO, Martinho. D. Martin Luthers Werke: Kritische Gesamtausgabe (Weimarer Ausgabe – WA). Weimar: Böhlau, 1883–2009.
  • LUTERO, Martinho. O Magnificat de Maria: Comentário. Trad. Werner Fuchs. São Leopoldo: Sinodal, 1983.
  • PIO IX. Ineffabilis Deus. Roma, 8 dez. 1854.
  • PIO XII. Munificentissimus Deus. Roma, 1 nov. 1950.
  • CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. Vaticano, 1964.