Foi ontem noticiado que o “Papa proclamou um novo santo português”.
Supostamente, no Brasil a 3 de outubro de 1645, o sacerdote
português Ambrósio Francisco Ferro, foi morto durante perseguições
anticatólicas, por tropas holandesas.
“perseguições
anticatólicas, por tropas holandesas”??? A sério?
e que “a chegada dos
holandeses, de religião calvinista, provocou “a restrição da liberdade de culto
para os católicos”, contexto em que se verifica o martírio dos futuros santos.” A sério? Não havia no contexto da época conflitos político-sociais?
Que poder tinham os
holandeses para restringir a liberdade de culto em território sob jurisdição
portuguesa?
Imediatamente salta à vista que nesta história há algo muito mal contado.
É bastante estúpido
apresentar os holandeses como autores de tais atos. Nada podia ser pior naquela altura para os holandeses do que um evento que acicataria ainda mais os ânimos dos colonos portugueses contra o governo holandês. Além disso, os holandeses eram
conhecidos pela sua tolerância religiosa rara para a época.
Vejamos o que diz alguma historiografia séria sobre os holandeses da época dos acontecimentos:
“Durante essa época, a
Igreja Reformada holandesa formou-se e se tornou proeminente. Conhecida por sua
tolerância com outros grupos religiosos, inclusive católicos...” (COLLINS,
Michael; PRICE, Matthew A. História do Cristianismo: 2000 anos de fé. São
Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 141)
“Já nesse tempo [c. 1660],
Nova York ou Nova Amsterdam como era então chamada, era uma cidade cosmopolita.
Além de holandeses havia na cidade povos de muitas nações que tinham as mais
diferentes organizações religiosas, pois o governo holandês permitiu ampla
liberdade de culto. Havia huguenotes, puritanos da Nova Inglaterra,
presbiterianos escoceses, luteranos suecos e alemães, católicos romanos e
judeus” (NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1960, p. 264)
“Guilherme de Orange havia
resistido à transformação da revolta contra a Espanha numa cruzada religiosa e
esforçou-se para criar um ambiente tolerante na República Holandesa. Em
consequência, luteranos, menonitas, várias seitas e até católicos conseguiram estabelecer
seus próprios serviços religiosos” (LINDBERG, Carter. Reformas na Europa. São
Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 366)
“[Os holandeses] não
perseguiam pessoa alguma por opiniões religiosas”(CANTÚ, Cesare. História
Universal – Vigésimo Segundo Volume. São Paulo: Editora das Américas, 1954, p.
21)
“Depois da sua
independência total da Espanha, reconhecida em 1648, reina nos Países Baixos
uma grande tolerância religiosa e filosófica. Numerosos teólogos e filósofos,
perseguidos noutros países, aqui procuram refúgio, entre os quais Descartes e
Espinosa, contribuindo bastante para o brilho intelectual e cultural deste
país” (HERMAN, Jacques. Guia de história universal. Lisboa: Edições 70, 1981,
p. 145)
“A Holanda acabava de
reconhecer Guilherme por estatúder, proclamando a liberdade de culto igual para
protestantes e para católicos (15 de julho de 1572)” (BLEYE, Pedro Aguado.
Manual de Historia de España, Tomo II: Reyes católicos – Casa de Austria (1474 –
1700). 7ª ed. Madrid: ESPASA-CALPE, S. A., 1954, p. 633-634)
Cabe na cabeça de alguém
que os holandeses, que no seu próprio país distinguiam-se pela sua tolerância
religiosa, de repente tornam-se em terra
estrangeira, e onde estão em minoria, intolerantes religiosos da pior
espécie capazes de cometer as maiores atrocidades?
Além de que “tropas
holandesas” não é sinónimo de “protestantes holandeses”. Nem todos os
holandeses eram protestantes calvinistas. Também havia holandeses de outras
religiões inclusive católicos.
A razão de nesta história
aparecerem as “tropas holandesas” misturadas com os índios (sem qualquer evidência documental), é para que possa ser
possível atribuir ao massacre uma motivação religiosa e esconder o verdadeiro
motivo da chacina. De facto, apresentar os índios sozinhos como autores de um massacre
motivado por um sentimento anticatólico seria completamente inverosímil. E, por
isso, junta-se os holandeses à narrativa.
Contudo, o verdadeiro motivo do massacre foi a
vingança e o medo dos índios pela escravatura e maus-tratos sofridos dos
colonos portugueses, que nas palavras do padre António Vieira, não percebiam que
um índio não é um negro. Nada tem a ver com perseguições anticatólicas. Aqueles
colonos foram mortos porque eram hostis às tribos indígenas praticando a escravatura dos índios (e dos negros) e
não porque eram católicos.
É compreensível que a
Igreja católica prefira ser vítima de “holandeses calvinistas” do que de índios
primitivos em território sob jurisdição de portugueses “católicos” (segundo a notícia). Assim
esconde a verdadeira motivação do massacre e denigre os seus adversários de uma
assentada. Mas não é a opção mais honesta.
Canonizem os santos e
mártires que quiserem mas não denigram terceiros nem branqueiem a História. Não
dignifica a instituição de que fazem parte nem honra quem pretendem “elevar aos
altares”.
P.S. Um agradecimento ao Lucas Banzoli pela pesquisa bibliográfica :)
P.S. Um agradecimento ao Lucas Banzoli pela pesquisa bibliográfica :)
http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/Fides_Reformata/TextoEspecial_AsLagrimasDeCunhau.pdf
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