Diz o Catecismo da Igreja Católica:
"Jesus é o filho único de Maria. Mas a maternidade espiritual de Maria (cf. Jo 19, 26-27; Ap 12, 17)
estende-se a todos os homens que Ele veio salvar:
«Ela deu à luz um Filho que Deus estabeleceu como "primogénito de muitos
irmãos" (Rm 8, 29), isto é,
dos fiéis para cuja geração e educação Ela coopera com amor de mãe» (LG 63)." (Catecismo N° 501)
Como se pode ver, a Igreja de
Roma considera que Maria é a mãe espiritual de todos os crentes. É por isso que não
raramente vê-se católicos a tratar Maria por mãe, como se ela fosse mãe
deles.
O texto bíblico que o Magistério
romano toma para sustentar esta doutrina é o seguinte:
Jo 19,26. Jesus, vendo a sua mãe e junto a ela o discípulo a
quem amava, disse à sua mãe: «Mulher, aí tens o teu filho».
27. Depois disse ao discípulo: «Aí tens a tua mãe». E
desde aquela hora o discípulo a acolheu em sua casa.
Análise
do texto bíblico
O que
vemos no texto do evangelho de João é a amorosa provisão que Jesus teve para a sua
mãe: A consequência de designar o discípulo amado como o filho de Maria, e
Maria como a mãe do discípulo encontra-se no mesmo texto: desde aquele dia o
discípulo amado recebeu Maria em sua casa.
O Novo Testamento não tem absolutamente nada mais a comentar ou ensinar sobre este
encargo do Senhor. Por certo que, além de Paulo e Pedro, o próprio João perdeu a
oportunidade de ensinar a "maternidade universal" de Maria nas suas
epístolas.
Dos dados escriturais sabemos de ciência certa que o discípulo amado recebeu
Maria como mãe.
No
entanto, a instituição vaticana, que se arroga a autoridade de ser a única
intérprete autêntica das Escrituras, pretende que este texto tão simples e terno
se leia assim, mais palavra menos palavra:
Jo 19,26. Jesus, vendo a sua mãe e junto a ela o discípulo a quem amava, disse
à sua mãe: «Mulher, aí tens o teu filho, o qual é um representante de todos
os crentes, os quais por este ato coloco sob o teu maternal cuidado».
27. Depois disse ao discípulo que representava os crentes de todos os tempos:
«Aí tens a tua mãe». E desde aquela hora o discípulo a acolheu em sua casa. como
devem fazê-lo todos os discípulos de Cristo já que naquela designação
particular estavam incluídos implicitamente todos os membros da Igreja.
Deste modo Roma transformou um encargo particular e íntimo numa lei de
aplicação geral, sem nenhum apoio no ensino do resto do Novo Testamento.
Pois bem, é claro que a doutrina da maternidade universal de Maria, longe de
ser bíblica, é uma inferência injustificada que a instituição vaticana fez a
partir de um texto isolado.
Os Padres da
Igreja não interpretam estes versículos como uma revelação da maternidade
espiritual de Maria.
Transcrevo a seguir um par de textos
patrísticos:
... e desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa”. Esta, sem dúvida,
era a hora da qual Jesus, quando estava prestes a converter a água em vinho,
havia dito à sua mãe, “Mulher, que tenho eu contigo? A minha hora ainda não
chegou”. Esta hora cujo tempo ainda não tinha chegado, portanto, Ele a tinha
predito, quando deveria reconhecê-la no momento da morte, e em relação à qual
Ele tinha nascido como um homem mortal. Naquele tempo, então, quando estava prestes
a ocupar-se em atos divinos, Ele repeliu, como alguém desconhecido, aquela que
era a mãe não da sua divindade mas da sua fraqueza [humana]; mas agora, enquanto
estava no meio de humanos sofrimentos, ele encomendou com afeto humano [a mãe]
por quem ele se tinha tornado homem. Pois antes, Aquele que tinha criado Maria tornou-se
conhecido no seu poder; mas agora, o que nasceu de Maria estava pregado na cruz.
Introduz-se aqui, portanto, uma passagem de caráter moral. O bom Mestre faz
aquilo que nos lembra que deve fazer-se, e pelo próprio exemplo instruiu os
discípulos que o cuidado dos seus pais devia ser um assunto de preocupação para
os filhos piedosos; ... Desta plena doutrina foi que o Apóstolo Paulo aprendeu
o que por sua vez ensinou quando disse: “Mas, se alguém não provê para os seus, e especialmente
para os da sua própria casa, então negou a fé, e é pior que um infiel.” [1 Timóteo
5:8]. Deste importantíssimo preceito, portanto, o Mestre dos santos deu o
exemplo por si mesmo quando, não como Deus para a donzela que Ele tinha criado
e governado, mas como um homem para a mãe, de quem havia sido gerado, e a quem
agora devia abandonar.
... não devemos tomar as palavras “Desde aquela hora o discípulo a recebeu” no
sentido de que tudo o que era necessário para ela foi encomendado ao cuidado
dele? Ele a recebeu, portanto, ... para dar-lhe os seus próprios serviços, o
cumprimento dos quais, por uma dispensação especial, foi confiado a ele.
Eis outro texto:
Mas Ele na cruz confiou a sua mãe ao discípulo, ensinando-nos a mostrar todo o
tipo de cuidado pelos nossos pais até ao último alento. Quando certamente ela
inoportunamente o perturbou, Ele disse “Mulher, que tenho eu contigo?” e “Quem
é a minha mãe?”. Mas aqui mostrou muito amoroso afeto, e a confiou ao
discípulo a quem Ele amava.
... E Ele, tendo encomendado a sua mãe a João, disse “Eis aí o teu filho”. Que
honra! Com que honra honrou o discípulo quando Ele estava partindo. Confiou-a
ao discípulo para que cuidasse dela. Pois já que era provável que, sendo sua
mãe, ela sofreria e necessitaria de proteção, com razão a confiou ao amado. A
este disse, “Eis aí a tua mãe”. Isto disse, enlaçando-os juntos em amor; e o
discípulo, entendendo-o, a levou para sua casa. “Mas por que não fez menção de
outras mulheres que estavam ali?” Para ensinar-nos a prestar maior respeito que
o habitual às nossas mães.
A primeira citação é de Agostinho de Hipona, Tratados sobre o Evangelho de São João, 119:1-3. A segunda é de
João Crisóstomo, Homilias sobre São João,
85:2-3. Ambos os autores, que se destacaram entre outras coisas pelos seus
comentários sobre o quarto Evangelho, entendem as palavras de Cristo como um
encargo a João para prover as necessidades temporais da mãe do Senhor, e não
insinuam nada parecido à maternidade espiritual tal como é ensinada hoje na
instituição vaticana com base nesta passagem. Deste modo vê-se que tanto no
Ocidente (Agostinho) como no Oriente (Crisóstomo) a doutrina era simplesmente
desconhecida.
Na verdade, a Igreja cumpriu o seu primeiro milénio de vida antes de alguém
sugerir a moderna doutrina romanista. A interpretação no sentido de maternidade
espiritual não existe até ao século XI, e começa a impor-se sobre o sentido
natural e íntimo no século XV com Dionísio o Cartucho (1402-1471) na sua Vida de Cristo [1]. O primeiro papa que
a ensina com clareza é Bento XIV (1740-1758), e isto não ocorreu senão no século
XVIII.
Conclusão
1) Não existe em nenhum lado da
Sagrada Escritura o menor indício ou a menor referência de que Maria tivesse
sido designada divinamente como mãe da Igreja ou mãe dos crentes ou mãe de
todos os cristãos.
2) Também não existe, a menor referência
ou reconhecimento dos Padres da Igreja a esta prerrogativa universal da
maternidade de Maria.
3) A doutrina da maternidade espiritual
de Maria passou despercebida por mais de um milénio e “apareceu” no século XI com
o auge do culto mariano. É, portanto, mais uma doutrina espúria e tardia que a
Igreja de Roma adotou ao longo dos séculos.
E
da mesma forma que responderia Jesus
Cristo, nosso amado Mestre, Senhor e Salvador, nós cremos e declaramos que:
"A nossa mãe e os nossos irmãos são
aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a observam.." (Lucas 8:21)
Notas
[1]
Dionísio o Cartucho, o principal artífice, no século XV, da doutrina da
“maternidade espiritual” foi um dos que manifestamente se opôs, como antes dele
Bernardo de Claraval e Tomás de Aquino, à doutrina da Imaculada Conceição.
Passado um ano desde a publicação deste post, aqui fica um argumento mais contra a maternidade universal de Maria.
ResponderEliminarNa mesma passagem, no versículo imediatamente anterior a João 19:26, diz:
"Estavam junto à cruz sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria (mulher) de Cléofas, e Maria Madalena".
(João 19:25).
Em outras palavras, havia mais de um crente ali, além de Maria e o discípulo. No entanto, Jesus não disse «Eis aí a vossa mãe», nem «Eis aí os teus filhos». Isto sugere, como já indicado, que se tratava de uma provisão particular para o cuidado da sua mãe, não de uma declaração da maternidade espiritual de Maria (que por outro lado brilha pela sua ausência no resto do NT).
Pensei que só eu tivesse chegado a esta conclusão mesmo participando da igreja católica. Muito bom
EliminarTodo castelo de areia doutrinária e dogmática, levantada em cima da Humilde Maria é pós Apostólico.
ResponderEliminarPaulo o teólogo de 1° Século quando foi falar de Maria, não pronunciou nenhuma palavar de exaltação e não registrou nehum gesto de Hiper Dúlia a mesma (algo que nos nossos dias qualquer padre o faria, apenas disse; "Nascido de mulher".
Vale tbm regsitrar o que Paulo disse aqui, resgistrado por Lucas;
Como NADA, que ÚLTIL seja, DEIXEI DE VOS ANUNCIAR, e ensinar publicamente e pelas casas,
Atos 20:20
Porque nunca deixei de vos anunciar TODO o conselho de Deus.
Atos 20:27
Sem sombras de dúvidas, Paulo não era Mariano, esse movimento não fazia parte da tônica da pregação desse Apóstolo, nem via oral e nem via escrita.
Pensei que só eu tivesse chegado a esta conclusão de que aos pés da cruz de Jesus estavam outros seguidores Dele além de João, evidenciando que não foi sua intenção proclamar a maternidade espiritual de Maria sobre todos os cristãos pois do contrário teria dito "filhos eis ai a tua mãe. Bom saber que outros pensam como eu que participei de forma assídua durante 22 anos da igreja católica silenciando questões como estas dentro do meu coração.
ResponderEliminarOlá, um amigo luterano me fez o seguinte silogismo que eu não soube como responder:
ResponderEliminar1) Jesus não poderia obrigar alguém mais do que a Lei o obrigava.
2) A Lei não obrigava ninguém a tomar como mãe uma senhora que não fosse de sua família.
3) Jesus deu uma obrigação a João para que tomasse como mãe uma senhora que não fosse de sua família.
Conclusão: Ao dar a obrigação a João de tomar como mãe a Maria, uma senhora que não era de sua família, Jesus está testificando que a maternidade de Maria transcende dos próprios filhos.
Você poderia me ajudar?
Olá
EliminarNão percebo este desespero para tentar encontrar apoio por mais fraco que seja para uma doutrina completamente alheia às Escrituras e perfeitamente desconhecida no cristianismo durante pelo menos os primeiros mil anos.
Em primeiro lugar, isso que apresenta não é um silogismo. Um silogismo é constituído apenas por duas premissas (chamadas maior e menor) e uma conclusão, enquanto o argumento do seu amigo pretende ter três premissas.
Ora, analisando rigorosamente apenas a lógica interna do argumento dedutivo, a premissa 3) contradiz as premissas 1) e 2), apresentando assim o argumento uma contradição interna insolúvel.
Mesmo que 2) fosse verdade, o fato de a lei não obrigar não quer dizer que proibisse. A conclusão “Jesus está testificando que a maternidade de Maria transcende dos próprios filhos.” não se segue logicamente das premissas, logo é um Non sequitur
Além disso, as premissas não são verdadeiras o que torna qualquer conclusão inválida. Jesus podia obrigar alguém mais do que a Lei o obrigava, e fê-lo várias vezes (ouvistes o que vos foi dito… eu porém vos digo…), na verdade Jesus instituiu uma nova Lei.
Mas a Lei nem sequer é para aqui chamada. No contexto da passagem, Jesus não deu uma obrigação “legal”, em sentido jurídico, a João para tomar conta da sua mãe. Ou seja, João não foi obrigado “por lei” a tomar conta de Maria. Tratou-se simplesmente de um pedido/indicação estritamente pessoal que Jesus, preocupado com a sua mãe, deu a João e este aceitou. Se Jesus quisesse testificar que a maternidade em sentido biológico e adotivo de Maria transcende os próprios filhos e João, poderia tê-la encomendado a todos os seus seguidores presentes (além de João e Maria estavam as outras mulheres); como também poderia ter dito a Maria que era mãe de todos, em vez de apenas considerar João como seu filho.
Resumindo e concluindo o argumento do seu amigo não tem ponta por onde se lhe pegue! :)
Poxa, você é sensacional. Obrigado pela resposta
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