12 de julho de 2013

Sola Scriptura e a Igreja Primitiva


A Reforma foi responsável por restaurar na Igreja o princípio de sola Scriptura, um princípio que tinha estado em vigor dentro da Igreja desde o início da era pós-apostólica. Inicialmente os apóstolos ensinaram oralmente mas com o fim da era apostólica toda a revelação especial que Deus quis preservada para o homem foi registada nas Escrituras. Sola Scriptura é o ensino e a crença de que há apenas uma revelação especial de Deus que o homem hoje possui, as Escrituras ou a Bíblia, e que, por conseguinte, as Escrituras são materialmente suficientes e são pela sua própria natureza de inspiradas por Deus a autoridade final para a Igreja. Isto significa que não há nenhuma parte da revelação que tenha sido preservada na forma de tradição oral independente da Escritura. O Concílio de Trento no século XVI, por outro lado, declarou que a revelação de Deus não estava contida somente nas Escrituras. Ela estava contida em parte nas Escrituras e em parte na tradição oral e, portanto, as Escrituras não eram materialmente suficientes. Este tem sido o ponto de vista universal dos teólogos católicos romanos por séculos após o Concílio de Trento e é o ponto de vista predominante hoje. É interessante notar, porém, que em círculos Católicos Romanos hoje há um debate em curso entre teólogos sobre a natureza da Tradição. Não há um entendimento claro do que é a Tradição no Catolicismo Romano. Alguns concordam com Trento e outros não. Mas o ponto de vista defendido por Trento contradiz e rejeita a crença e a prática da Igreja da época patrística. A Igreja primitiva sustentava o princípio de sola Scriptura uma vez que acreditava que toda a doutrina devia ser provada a partir da Escritura e se tal prova não pudesse ser produzida a doutrina deveria ser rejeitada.
 
Desde o início da era pós-apostólica com os escritos dos que conhecemos como Padres Apostólicos encontramos um apelo exclusivo às Escrituras para o ensino positivo da doutrina e para a sua defesa contra a heresia. Os escritos dos Padres Apostólicos literalmente respiram com o espírito do Antigo e Novo Testamentos. Com os escritos dos Apologistas tais como Justino Mártir e Atenágoras na primeira metade do segundo século encontramos a mesma coisa. Não há apelo em qualquer destes escritos para a autoridade da Tradição como um corpo separado e independente de revelação. É com os escritos de Ireneu e Tertuliano na segunda metade do segundo século que pela primeira vez encontramos o conceito de Tradição Apostólica que é preservada na Igreja de forma oral. A palavra Tradição significa simplesmente ensino. Mas o que estes padres querem dizer quando afirmam que este Ensino Apostólico ou Tradição é preservado oralmente? Tudo o que eles querem dizer é que os Bispos da Igreja pregam a verdade oralmente e qualquer pessoa interessada em aprender a verdadeira Tradição Apostólica poderá aprender simplesmente ouvindo o ensino oral dos Bispos de qualquer Igreja ortodoxa da época. Ireneu e Tertuliano declaram enfaticamente que todo o ensino dos Bispos que era dado oralmente estava enraizado na Escritura e podia ser provado a partir das Escrituras. Ambos os padres nos dão o conteúdo doutrinal real da Tradição Apostólica que era oralmente pregada nas Igrejas e todas as doutrinas são derivadas da Escritura. Não há doutrina nesta Tradição Apostólica que não seja encontrada na Escritura. E não há apelo nos escritos destes padres a uma Tradição que seja de natureza oral para uma defesa do que eles chamam de Tradição Apostólica. A Tradição Apostólica para Ireneu e Tertuliano é simplesmente a Escritura. Foi Ireneu quem afirmou que embora os apóstolos primeiramente tenham pregado oralmente, o seu ensino foi mais tarde colocado por escrito nas Escrituras e as Escrituras desde esse dia tornaram-se a coluna e o fundamento da nossa fé. A sua afirmação exata é a seguinte: "Não aprendemos de nenhuns outros o plano da nossa salvação, senão daqueles por quem o evangelho nos chegou, o qual eles num tempo proclamaram em público e, num período posterior, pela vontade de Deus, o transmitiram a nós nas Escrituras, para ser o fundamento e a coluna da nossa fé" (Alexander Roberts & W.H. Rambaugh Translators, The Writings of Irenaeus, Against Heresies (Edinburgh: T & T Clark, 1874), 3.1.1). A Tradição, quando se refere à proclamação oral tal como pregação ou ensino, era vista essencialmente como a apresentação oral da verdade Escritural, ou a codificação da verdade bíblica na expressão de credo.
 
Ireneu e Tertuliano tiveram de enfrentar os Gnósticos que foram os primeiros a sugerir e ensinar que possuíam uma Tradição Apostólica oral que era independente da Escritura. Estes padres primitivos rejeitaram tal noção e apelaram somente à Escritura para a proclamação e defesa da doutrina. A historiadora da Igreja, Ellen Flesseman-Van Leer confirma este facto:
 
Para Tertuliano a Escritura é o único meio para refutar ou validar uma doutrina quanto ao seu conteúdo ... Para Ireneu, a doutrina da Igreja certamente nunca é puramente tradicional; pelo contrário, o pensamento de que poderia haver alguma verdade, transmitida exclusivamente de viva voz (oralmente), é uma linha Gnóstica de pensamento ... Se Ireneu quer provar a verdade de uma doutrina materialmente, ele vira-se para a escritura, porque é aí que o ensino dos apóstolos é objetivamente acessível. A prova da tradição e da escritura serve um e o mesmo fim: identificar o ensino da Igreja como o ensino apostólico original. A primeira estabelece que o ensino da Igreja é este ensino apostólico, e a segunda, o que este ensino apostólico é (Ellen Flesseman-van Leer, Tradition and Scripture in the Early Church (Van Gorcum, 1953, pp. 184, 133, 144).
 
A Bíblia era a autoridade final para os padres da época patrística. Era materialmente suficiente e o árbitro final em todas as matérias de verdade doutrinal. Como JND Kelly apontou:
 
A mais clara demonstração do prestígio desfrutado pela (Escritura) é o facto de que quase todo o esforço teológico dos Padres, quer os seus objetivos fossem polémicos ou construtivos, foi despendido no que equivalia à exposição da Bíblia. Além disso, estava em toda parte dado como certo que, para qualquer doutrina ganhar aceitação, tinha primeiro que estabelecer-se a sua base Escritural (Early Christian Doctrines (San Francisco: Harper & Row, 1978), pp. 42, 46).
 
Heiko Oberman faz estes comentários sobre a relação entre Escritura e Tradição na Igreja primitiva:
 
Escritura e Tradição para a Igreja primitiva em nenhum sentido eram mutuamente exclusivas: kerygma (a mensagem do evangelho), Escritura e Tradição coincidiam inteiramente. A Igreja pregava o kerygma que se encontra na totalidade na forma escrita nos livros canónicos. A Tradição não era entendida como uma adição ao kerygma contido na Escritura mas como transmissão desse mesmo kerygma em forma viva: em outras palavras, tudo se encontrava na Escritura e ao mesmo tempo tudo estava na Tradição viva (The Harvest of Medieval Theology (Cambridge: Harvard University, 1963), p. 366).
 
Que os padres eram crentes firmes no princípio de sola Scriptura é claramente visto a partir dos escritos de Cirilo de Jerusalém, o bispo de Jerusalém em meados do século IV. Ele é o autor do que é conhecido como Leituras Catequéticas. Este trabalho é uma extensa série de leituras dadas aos catecúmenos expondo as principais doutrinas da fé. É uma explanação completa da fé da Igreja da sua época. E o seu ensino é exaustivamente fundamentado na Escritura. Não , de facto, um apelo na totalidade das Leituras a uma Tradição Apostólica oral que seja independente da Escritura. Ele afirma em termos inequívocos que se ele apresentasse qualquer ensino a estes catecúmenos que não pudesse ser validado a partir da Escritura, eles deveriam rejeitá-lo. Isto diz-nos que a sua autoridade como Bispo estava sujeita à sua conformidade com as Escrituras em seu ensino. A seguir estão algumas das suas afirmações extraídas das Leituras sobre a autoridade final da Escritura:
 
Este selo tem sempre na tua mente; o qual já em jeito de resumo foi abordado nos seus pontos principais, e se o Senhor permitir, será daqui em diante estabelecido segundo o nosso poder, com provas Escriturais. Porque a respeito dos divinos e sagrados mistérios da Fé, nem mesmo uma observação ocasional devemos proporcionar sem as Sagradas Escrituras; nem devemos ser desviados por meras probabilidades e artifícios de argumentos. Não acreditem pois em mim porque eu vos digo estas coisas, a menos que recebam das Sagradas Escrituras a prova do que é apresentado: porque esta salvação, que é da nossa fé, não é por raciocínios engenhosos, mas por prova das Sagradas Escrituras (A Library of the Fathers of the Holy Catholic Church (Oxford: Parker, 1845), The Catechetical Lectures of S. Cyril 4.17).
 
Mas toma e sustenta essa fé somente como um aprendiz e em profissão, que é pela Igreja entregue a ti, e é estabelecida a partir de toda a Escritura. Por nem todos poderem ler a Escritura, alguns por serem indoutos, outros por afazeres, são impedidos de ter conhecimento dela; a fim de que a alma não pereça por falta de instrução, nos Artigos que são poucos incluímos toda a doutrina da Fé... E no presente, confia à memória a Fé, apenas ouvindo as palavras; e espera na época oportuna a prova de cada uma das suas partes das Escrituras Divinas. Pois os artigos da Fé não foram compostos ao agrado dos homens: mas os pontos mais importantes escolhidos a partir de todas as Escrituras, formando o único ensino da . E, como a semente de mostarda num pequeno grão contém muitos ramos, assim também esta Fé, em poucas palavras, abrange no seu seio todo o conhecimento da piedade contido no Antigo e Novo Testamentos. Observai, pois, irmãos e conservai as tradições que agora recebeis, e escrevei-as sobre a tábua dos vossos corações (Ibid., Lecture 5.12).
 
Note-se aqui que Cirilo afirma que estes catecúmenos estão a receber Tradição e exorta-os a manter as tradições que eles estão agora a receber. Donde é que esta Tradição deriva? Ela obviamente deriva das Escrituras. O Ensino ou Tradição ou Revelação de Deus que foi confiado aos Apóstolos e repassado à Igreja está agora acessível na Escritura SOMENTE. É significativo que Cirilo de Jerusalém, que está comunicando a totalidade da fé a estes catecúmenos, não fez um único apelo a uma Tradição oral para apoiar os seus ensinamentos. A totalidade da fé está fundamentada nas Escrituras e nas Escrituras somente. Este princípio também é enunciado por Gregório de Nissa:
 
A generalidade dos homens ainda flutua nas suas opiniões acerca disto, as quais são tão erradas como são numerosas. Quanto a nós, se a filosofia gentílica, que trata metodicamente todos estes pontos, fosse realmente adequada para uma demonstração, seria com certeza supérfluo adicionar uma discussão acerca da alma a tais especulações, mas enquanto as últimas prosseguiram, sobre o assunto da alma, na direção das supostas consequências como ao pensador aprouve, nós não estamos autorizados a tal permissão, quero dizer que não nos está permitido afirmar o que nos aprouver; nós fazemos das Sagradas Escrituras a regra e a medida de cada doutrina (dogma); nós necessariamente fixamos os nossos olhos sobre isto, e aprovamos somente aquilo que se harmoniza com a intenção destes escritos. (Philip Schaff and Henry Wace, Nicene and Post-Nicene Fathers (Peabody: Hendrikson, 1995), Second Series: Volume V, Philosophical Works, On the Soul And the Resurrection, p. 439).
 
Basílio, o Grande, o bispo de Cesareia de 370 a 379 dC, atesta a sua crença na natureza toda-suficiente das Escrituras nestas palavras tiradas de uma carta que ele escreveu a uma viúva:
 
Desfrutando como você faz da consolação das Sagradas Escrituras, você não precisa nem da minha assistência, nem da de ninguém para ajudá-la a compreender o seu dever. Você tem o conselho todo-suficiente e a orientação do Espírito Santo para levá-la ao que é certo (Philip Schaff and Henry Wace, Nicene and Post-Nicene Fathers (Peabody: Hendrikson, 1995), Second Series: Volume VIII, Basil: Letters and Select Works, Letter CCLXXXIII, p. 312). 
 
Estes padres são simplesmente representativos dos padres como um todo. Cipriano, Orígenes, Hipólito, Atanásio, Firmiliano, Agostinho são apenas alguns dos padres que poderiam ser citados como proponentes do princípio de sola Scriptura, em adição a Tertuliano, Ireneu, Cirilo e Gregório de Nissa. A Igreja primitiva operou com base no princípio de sola scriptura e foi este princípio histórico que os Reformadores procuraram restaurar na Igreja.
 
O uso extensivo da Escritura pelos padres da Igreja primitiva desde o início é visto nos seguintes factos:
 
Ireneu: Conheceu Policarpo que foi discípulo do apóstolo João. Viveu entre 130-202 dC. Ele cita 24 dos 27 livros do Novo Testamento. Ele faz mais de 1800 citações do Novo Testamento somente.
 
Clemente de Alexandria: Viveu entre 150 e 215 dC. Citou todos os livros do Novo Testamento, exceto Filemom, Tiago e 2 Pedro. Ele dá 2400 citações do Novo Testamento.
 
Tertuliano: Viveu entre 160 e 220 ​​dC. Ele faz mais de 7200 citações do Novo Testamento.
 
Orígenes: Viveu entre 185-254 dC. Sucedeu a Clemente de Alexandria na escola Catequética de Alexandria. Ele faz cerca de 18000 citações do Novo Testamento.
 
Pelo fim do século III praticamente todo o Novo Testamento poderia ser reconstruído a partir dos escritos dos Padres da Igreja. Norman Geisler e William Nix resumem a posição das Escrituras do Novo Testamento na Igreja primitiva nestas palavras: "Em resumo, os primeiros cem anos da existência dos vinte e sete livros do Novo Testamento revelam que praticamente cada um deles foi citado como autoritário e reconhecido como canônico por homens que eram eles próprios os contemporâneos mais jovens da época apostólica (Norman Geisler and William Nix, A General Introduction to the Bible (Chicago: Moody, 1980), p. 190).
 
B.F. Wescott chega a uma conclusão semelhante: "Com exceção da Epístola aos Hebreus, das duas Epístolas mais curtas de São João, da segunda Epístola de São Pedro, das Epístolas de São Tiago e São Judas, e do Apocalipse, todos os outros livros do Novo Testamento são reconhecidos como Apostólicos e autorizados em toda a Igreja em finais do século II. A evidência dos grandes Padres pelos quais a Igreja é representada varia em relação a estes livros disputados, mas o Cânon dos livros reconhecidos é estabelecido pelo seu consentimento comum. Portanto o testemunho em que assenta não é recolhido a partir de uma fração mas de muitos, e dos mais largamente separados pela posição e caráter. Ele é dado, não como uma opinião particular, mas como um facto inquestionável: não como uma descoberta tardia, mas como uma tradição original (B.F. Westcott, A General Survey of the History of the Canon of the New Testament (Cambridge: Macmillan, 1889), pp. 337-338).
 
É verdade que a Igreja primitiva sustentou o conceito de Tradição referindo-se a costumes e práticas eclesiásticas e que muitas vezes acreditava-se que tais práticas foram realmente transmitidas pelos Apóstolos mesmo que elas não pudessem ser necessariamente validadas a partir das Escrituras. Mas estas práticas não envolvem as doutrinas da fé e eram muitas vezes contraditórias entre diferentes segmentos da Igreja. Um exemplo disto é encontrado no início do segundo século, na controvérsia sobre quando celebrar a Páscoa. Certas Igrejas Orientais celebravam-na num determinado dia, enquanto o Ocidente celebrava-a num dia diferente, mas ambos os lados alegavam que a sua prática particular tinha sido transmitida a eles diretamente dos Apóstolos. Na verdade, isto levou a um conflito com o Bispo de Roma, o qual exigia que os bispos do Oriente se submetessem à prática do Ocidente. Mas eles recusaram-se a fazê-lo, por crerem firmemente que estavam aderindo à Tradição Apostólica. Quem estava correto? Não há maneira de determinar isto, se é que alguma dessas práticas tinha, verdadeiramente, origem Apostólica. É interessante, porém, notar que um dos proponentes da visão do Oriente foi Policarpo, que foi um discípulo do apóstolo João. E há outros exemplos deste tipo de alegação na história da Igreja. Só porque um particular padre da Igreja afirma que uma determinada prática é de origem Apostólica não significa necessariamente que seja. Tudo o que isso significa é que ele acreditava que era. Mas não há nenhuma maneira de verificar se de facto ela realmente era uma tradição dos apóstolos. Há numerosas práticas em que a Igreja primitiva estava envolvida as quais se acreditava serem de origem Apostólica que são enumeradas para nós por Basílio, o Grande, que ninguém pratica hoje na Igreja. De modo que, claramente, tais apelos para a Tradição Apostólica oral não têm sentido.
 
A Igreja Católica Romana afirma que possui uma Tradição Apostólica oral que é independente da Escritura e que é obrigatória para os homens. Ela apela à declaração de Paulo em 2 Tessalonicenses 2:15 para a justificação de tal alegação, onde Paulo afirma que ele transmitiu tradições ou ensinamentos a esta Igreja na forma oral e escrita. Roma afirma que, com base no ensino de Paulo nesta passagem, o ensino de sola Scriptura é falso, já que ele transmitiu ensinamentos aos Tessalonicenses na forma oral e escrita. Mas o que é interessante neste apelo é que os apologistas romanos nunca documentam as doutrinas específicas a que Paulo se está a referir as quais eles alegam possuir e as quais são obrigatórias para os homens. Em todos os escritos dos apologistas desde a Reforma até aos dias de hoje ninguém foi capaz de listar as doutrinas que compõem esta suposta Tradição Oral Apostólica. Desde Francisco de Sales até aos escritos de Karl Keating e Robert Sungenis há esta conspícua ausência. Sungenis é editor de uma obra recentemente lançada em defesa da doutrina católica romana da Tradição intitulada Not By Scripture Alone. Ela é apresentada como a refutação definitiva do ensino protestante de Sola Scriptura. Contém 627 páginas. Mas nem uma vez em todas as 627 páginas o autor define o conteúdo doutrinal desta suposta Tradição Apostólica que é obrigatória para todos os homens. Tudo o que é dito é que ela existe, que a Igreja Católica Romana a possui, e que estamos obrigados, portanto, a nos submetermos a esta Igreja a qual possui em exclusivo a plenitude da revelação de Deus a partir dos Apóstolos. Mas eles não podem nos dizer o que ela é. E a razão é porque ela não existe. Se estas doutrinas são de tal importância por que Cirilo de Jerusalém não as mencionou nas suas Leituras Catequéticas? Eu desafio qualquer um a listar as doutrinas a que Paulo se está a referir em 2 Tessalonicenses 2:15 as quais ele diz que transmitiu oralmente aos Tessalonicenses.
 
A autoridade Católica Romana sobre Tradição, Yves Congar, faz esta observação interessante sobre a natureza da revelação da dispensação do Antigo Testamento:
 
A Revelação é uma divulgação do seu mistério que Deus faz aos homens ... uma divulgação através de sinais criados, garantida por Deus para não nos enganar, embora eles possam ser muito imperfeitos. Estes sinais são eventos, realidades, ações e palavras; mas em última análise, pelo menos no que diz respeito à Antiga Aliança, os eventos e as ações são conhecidos por nós apenas em palavras, e palavras escritas, a saber: os escritos da Sagrada Escritura (Yves Congar, Tradition and Traditions (New York: Macmillan, 1966), p. 238).  
 
Yves Congar admite prontamente o princípio de sola Scriptura em relação ao Antigo Testamento. A única revelação que possuímos dessa dispensação são as Escrituras, apesar dos profetas desde o início terem pregado e ensinado oralmente. Os protestantes simplesmente dizem que o mesmo princípio se aplica à dispensação do Novo Testamento. Para parafrasear Congar: a revelação de Deus na dispensação do Novo Testamento é conhecida por nós apenas em palavras, e palavras escritas, a saber: os escritos da Sagrada Escritura. A única revelação especial que o homem hoje possui de Deus que foi transmitida aos Apóstolos são as Escrituras do Novo Testamento. Esta foi a crença e a prática da Igreja da época patrística e foi o princípio respeitado pelos reformadores o qual tentaram restaurar na Igreja após a corrupção doutrinal ter entrado pela porta da Tradição. O ensino de um corpo separado de revelação Apostólica conhecido como Tradição que é de natureza oral originou-se, não com a Igreja Cristã, mas com o Gnosticismo. Este foi uma tentativa dos gnósticos de reforçar a sua autoridade afirmando que as Escrituras não eram suficientes. Eles afirmaram que possuíam a plenitude da revelação apostólica porque eles não só tinham a revelação escrita dos apóstolos nas Escrituras mas também a sua tradição oral, e a chave para interpretar e compreender essa revelação. Assim como os padres primitivos repudiaram este ensino e reivindicaram uma dependência exclusiva das Escrituras e apelaram para as Escrituras, assim também devemos fazer.
 
William Webster

4 de julho de 2013

Ireneu de Lyon não conhecia o Purgatório


Enquanto alguns católicos citam Lucas 16:19-31 como prova do purgatório, Ireneu pensava que o homem rico nesta passagem estava no Inferno (Contra as Heresias, 2:24:4, 4:2:4-5). Sabemos que Jesus foi para o Paraíso no dia da sua crucificação (Lucas 23:43), e Ireneu refere que todos os crentes vão para o mesmo lugar até ao momento da ressurreição. Ele também identifica este lugar como o lugar onde Paulo esteve em 2 Coríntios 12:2-4. Ireneu refere que todos os crentes vão para o Paraíso até ao momento da ressurreição (Contra as Heresias, 5:5:1, 5:31:2). O Purgatório não está apenas ausente da sua visão da vida após a morte. É contradito.

23 de junho de 2013

AS FALSAS PREMISSAS EM QUE SE BASEIA O PAPADO


A pretensa base bíblica de todas as doutrinas papais da primazia de jurisdição e da infalibilidade, fundamento da hierarquia vaticana, se baseia em três textos:

Mateus 16:18ss
Lucas 22:31-32
João 21:15-17
e numa série de pressuposições:
1. Que em virtude destas palavras do Senhor, Pedro foi colocado acima dos demais apóstolos, quando na realidade também em seu momento foi colocado abaixo (Mateus 16:23; Lucas 22:33-34). [1]
2. Que Pedro foi o primeiro bispo de Roma (falso). [2]
3. Que pessoalmente designou o seu sucessor (falso como consequência do anterior). [3]
4. Que tal sucessor recebeu todas as prerrogativas de autoridade que Pedro teve (infundado). [4]
5. Que tais prerrogativas constituem o bispo de Roma em chefe da Igreja universal (falso e por completo desconhecido nos três primeiros séculos do cristianismo). [5]

6. Que tal prerrogativa inclui o dom da infalibilidade sob determinadas condições (ideia totalmente desconhecida pela Igreja durante muitos séculos, mesmo no Ocidente).
7. Que não somente o bispo que supostamente sucedeu a Pedro, mas também os seus próprios sucessores na sede episcopal romana, tinham idênticos privilégios sem importar a sua santidade de vida (ideia alheia às Escrituras). [6]
8. Que a chamada «sucessão apostólica» não tem a ver com a forma da sua eleição (já que diferentes bispos de Roma deveram o seu cargo a voto popular, nomeação "a dedo" pelo imperador, usurpação, nomeação por um concílio ou eleição cardinalícia).
Não é, pois, uma premissa falsa, mas um conjunto de falsidades, cada uma das quais seria por si mesma suficiente para negar ao Sr. bispo de Roma a autoridade que reclama para si.
Notas

[1] A condição de Pedro aos olhos do Senhor sofreu altos e baixos em relação direta com a sua resposta à missão encomendada.

[2] Como já mostrado, embora a evidência de que Pedro morreu em Roma seja razoavelmente convincente, não ocorre a mesma coisa com a sua condição de bispo monárquico dessa cidade. Por um lado, porque não há evidência de episcopado monárquico na Igreja senão em finais do primeiro século ou começos do segundo, e em Roma em particular antes de meados do século II, e por outro porque todos os dados disponíveis indicam que a Igreja romana tinha já um tempo mais que considerável de existência na época em que Pedro pode tê-la visitado. Ora, se não existe certeza, nem sequer uma razoável probabilidade, de que Pedro foi bispo de Roma, qualquer suposto privilégio que os bispos de tal cidade pudessem ter como "sucessores de Pedro" carece de fundamento sólido.

[3] Além disso, ainda está por demonstrar que o ofício apostólico tal como foi dado aos Doze e a Paulo, era transferível.

[4] No Novo Testamento, embora nada impedisse que um Apóstolo fosse também um presbítero, o ofício apostólico e o de ancião (presbítero) ou bispo (epíscopo) são claramente diferenciados. Isso também o diz Inácio que, sendo bispo de Antioquia da Síria, diferencia claramente a sua própria autoridade da de Pedro e Paulo (mesmo quando ambos os Apóstolos tinham ministrado naquela congregação). Também o diz Clemente de Roma, quando também diferencia entre os Apóstolos e os "inspetores e ministros" que eles estabeleceram.

[5] Durante os três primeiros séculos de existência da Igreja cristã nenhum escritor atribuiu a autoridade de Pedro de maneira pessoal e unívoca ao bispo de Roma. O catolicismo é conhecido por apelar à Tradição quando não lhe chegam as Escrituras, mas ocorre que neste tema, mais valia nem sequer nomear a palavra “tradição” porque certamente ela não ajudará; antes pelo contrário. A tradição antiga (pré-nicena) reconhece repetidamente a autoridade de Pedro, mas de modo algum tem o bispo de Roma como o único autêntico e legítimo sucessor do Apóstolo.

[6] Por exemplo, Sérgio III, João XII ou Alexandre VI, foram moralmente dissolutos, no entanto os romanistas os exibem com orgulho nas suas listas de “sucessores de Pedro”.

11 de junho de 2013

A PRIMAZIA «PETRINA» NO SÉCULO VI


A primazia «petrina» tal como a entende a Igreja Católica é uma doutrina falsa que só conseguiu impor-se depois do Cisma entre Oriente e Ocidente. Roma definiu ela própria tal primazia, e claro está, somente ela crê nela.
Quando no ano de 553 se reuniu o Concílio II Constantinopla, considerado o V Concílio Ecuménico, Vigílio era o bispo de Roma, e tal Concílio reuniu-se “sem a sua presença, e inclusive, apesar do seu protesto”, nas palavras do Professor Hubert Jedin.
Tal era a primazia «petrina» no século VI.

17 de maio de 2013

Lutero: "O livro de Ester, eu lanço no Elba"


Esta citação de Lutero é encontrada frequentemente em inúmeras páginas web anti-Reforma:
O livro de Ester, eu lanço no Elba. Eu sou como um inimigo para o livro de Ester, que eu gostaria que não existisse, pois Judaíza demais e tem em si uma grande dose de loucura pagã.”
A citação deriva de uma das versões de Johann Aurifaber das “Conversas à Mesa”.
A primeira edição das “Conversas à Mesa” foi publicada por Johann Aurifaber, em 1566, vinte anos após a morte de Lutero. A obra é um conjunto de gatafunhos escritos por alunos e colegas de Lutero, onde contam em segunda mão supostas histórias vividas com o reformador alemão. Não é portanto uma boa fonte, e muito menos ainda quando os textos são recebidos sem qualquer análise crítica, para formular uma opinião sobre o pensamento de Martinho Lutero.
Um exemplo disto é a citação das “Conversas à Mesa” de Lutero "O livro de Ester, eu lanço no Elba", que na verdade é uma citação errada, que foi feita trocando Esdras por Ester. O erro está em todas as edições de Aurifaber das “Conversas à Mesa”.  
O que é interessante sobre esta citação de Lutero é que foi corrigida há algum tempo, pelo menos já desde o século XIX, no entanto, ainda aparece a circular “em bruto” na Internet. Eis aqui uma visão da citação do século XIX, em que Julius Charles Hare corrigiu Sir William Hamilton:
“Por exemplo, quando nossos olhos percorrem a antologia do Revisor, uma das frases mais surpreendentes é a seguinte: "O livro de Ester, eu lanço no Elba". Se uma pessoa familiarizada com o estilo de Lutero se depara com esta frase, reconhecerá a marca inconfundível do grande reformador nas palavras, / lanço no Elba; e será uma aflição para ela encontrar Lutero aplicando tais rudes palavras a qualquer livro, mesmo o menos importante, das Sagradas Escrituras. Mas Lutero não fez isso. O Revisor afirma que dá-nos de Lutero as "suas próprias palavras literalmente traduzidas". O Sr. Ward afirma que o nome do Revisor é "um comprovativo suficiente para a precisão das suas citações". E, no entanto, Lutero nunca disse nada do género sobre o livro de Ester. O original desta "tradução literal" é claramente a seguinte frase nas Conversas à Mesa de Lutero, Das dritte Such Esther werfe ich in die Elbe: O terceiro livro de Ester eu lanço no Elba. Por que motivo o Revisor omitiu a palavra terceiro na sua "tradução literal", é o que ele tem de explicar… Estaria confuso com o que poderia significar o terceiro livro de Ester? Pretendeu tacitamente corrigir o texto? Quando as palavras se tornam a base de uma acusação, devem ser examinadas com cuidado escrupuloso; e se parecer necessário alterá-las, isto deve ser expressamente indicado. Ora, a frase seguinte mostra claramente que uma correção totalmente diferente é necessária. "No quarto livro, em que Ester sonhou, há bonitos, e também alguns bons ditos, como, o Vinho é forte, o rei mais forte, a mulher ainda mais forte, mas a verdade é mais forte que todos" cito da edição de Walch, Vol . xxn. 2079, e não há meios de examinar cópias mais antigas das Tischredren; mas a antiga Tradução Inglesa fala do terceiro livro de Ester. De modo que esse erro grosseiro parece ter pertencido ao texto original. Pois não há dúvida de que Lutero falava, não de um terceiro e quarto livro inexistentes de Ester, mas do livro de Ezra ou Esdras: embora ainda haja muita confusão no relato das suas palavras; já que o discurso sobre quem é mais forte não está no quarto livro, mas no terceiro, o primeiro dos Apócrifos; os de Esdras e Neemias são numerados como os dois primeiros. Assim, as palavras de Lutero não são senão um modo Luterano de dizer o que Jerónimo na realidade fez, quando descartou estes livros apócrifos da sua Versão, como ele diz no seu Prefácio ao livro de Esdras:Nec quemquam moveat quod unus a nobis editus liber est; nec apocryphorum tertii et quarti somniis delectetur; quia et apud Hebraeos Ezrae Neemiaeque sermones in unum volumen coarctantur, et quae non habentur apud illos, nec de viginti quatuor senibus sunt, procul abjicienda." Também nada pode ultrapassar as expressões depreciativas de Jerónimo sobre os mesmos livros no seu panfleto contra Vigilantius (BI). Seguramente também a próxima frase citada pelo Revisor, "Eu sou tão grande inimigo do livro de Ester que eu gostaria que ele não existisse; pois ele judaíza demais, e tem nele uma grande quantidade de maldade pagã,"— embora aqui novamente a Tradução Inglesa concorde com Walch em aplicar as palavras de Lutero ao Livro de Ester, era na verdade dito dos livros Apócrifos de Esdras. Pois toda a passagem nas Conversas à Mesa é a seguinte: "Quando o Doutor estava corrigindo a tradução do segundo livro dos Macabeus, disse ele, eu não gosto deste livro e daquele de Ester, tanto que eu gostaria que não existissem, pois eles judaízam demais, e têm muita extravagância pagã. Então o Prof. Forster disse: Os Judeus estimam o livro de Ester mais do que qualquer um dos profetas". A combinação do livro com o dos Macabeus, - que o Revisor não deveria ter omitido -, assim como a observação de Forster, não deixa dúvidas de que Lutero falou do livro de Esdras (bj). Estes erros mostram como é inseguro construir quaisquer conclusões sobre a autoridade das Conversas à Mesa.”

Na nossa opinião, na última frase "Quando o Doutor estava corrigindo a tradução do segundo livro dos Macabeus, disse ele, eu não gosto deste livro e daquele de Ester, tanto que eu gostaria que não existissem, pois eles judaízam demais, e têm muita extravagância pagã", também é possível que Lutero se estivesse a referir ao livro apócrifo de Ester (os acréscimos a Ester), visto que há  semelhanças linguísticas entre os acréscimos e o segundo livro dos Macabeus (cfr. "Esther, apocryphal book of", in Jewish Encyclopedia), e "os acréscimos se referem constantemente à divindade, à prece, e às tradições e práticas sagradas do judaísmo" (Bruce M. Metzger, Dicionário da Bíblia: as pessoas e os lugares, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, Vol. I, p. 79),  o que é consistente com a acusação do livro judaizar demais.

Para sustentar com seriedade a ideia de que Lutero rejeitou a canonicidade de Ester é preciso muito mais do que a inferência de uma obscura conversa à mesa. Roger Beckwith (autor de The Old Testament Canon of the New Testament Church), disse: "Por vezes diz-se que Lutero, seguindo alguns dos Padres, negou a canonicidade de Ester, mas Hans Bardtke questionou isto, como não levando em conta toda a evidência (Luther und das Buch Esther, Tubingen Mohr, 1964)". Basta ir à Bíblia de Lutero e observar onde o livro de Ester está colocado. Lutero não o coloca na secção de apócrifos. Ele inclui-o com os livros canónicos do Antigo Testamento. De facto, nos seus prefácios da Bíblia, Lutero distingue as partes 
particulares não-canónicas de Ester, e as coloca com os outros escritos apócrifos.

4 de maio de 2013

A autenticidade de Mateus 28:19


Há quem diga, principalmente antitrinitários, que o texto de Mateus 28:19 com a fórmula trinitária, é uma adição posterior, feita por algum escriba no século IV, ao texto original do Evangelho de Mateus.

No entanto, os factos são os seguintes:

1) Os milhares de manuscritos gregos, alguns deles mais antigos que o século IV, contêm a fórmula trinitária em Mateus 28:19.

2) Em todos os manuscritos gregos existentes que têm este texto, o seu conteúdo é substancialmente igual ao da 4ª edição do Novo Testamento grego das Sociedades Bíblicas e ao Nestle-Aland 27ª ed.:

Poreuthentes oun matheteusate panta ta ethne, baptizontes autous eis to onoma tou patros kai tou huiou kai tou hagiou pneumatos.

Que pode literalmente traduzir-se como:

“Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, batizando eles em nome do Pai e do Filho e do Santo Espírito”

Nem o aparato crítico das edições mencionadas, nem o professor Metzger nas suas reconhecidas obras sobre o texto do Novo Testamento e o comentário crítico textual do Novo Testamento indica alguma variante. Todos os manuscritos gregos, assim como as versões antigas, dizem o mesmo.

3) Mas se isto não bastasse, na Didaquê ou Doutrina dos Doze Apóstolos, um documento do século I, lê-se acerca do batismo que deve realizar-se “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (eis onoma patros kai huiou kai hagiou pneumatos, Didaquê 7:3).

Portanto não há a mínima evidência de que este versículo tenha sido alterado; pelo contrário, tudo indica que a referência trinitária pertence ao texto do Evangelho segundo Mateus.

1 de maio de 2013

O RECONHECIMENTO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO POR PARTE DE ALGUNS PADRES PRIMITIVOS


Justino Mártir (ca. 100-165)
Habitualmente quando menciona as Escrituras refere-se ao Antigo Testamento. Justino conhece o AT através fundamentalmente da antiga versão Septuaginta. Um aspecto interessante é que na atualidade os romanistas apelam ao facto de os manuscritos da Septuaginta incluírem os livros que desde o século XVI chamam "deuterocanónicos" (e nós apócrifos) como prova da existência de um imaginário "cânon alexandrino" similar senão idêntico ao estabelecido dogmaticamente no Concílio de Trento. Ora bem, o mestre e mártir Justino usa a Septuaginta, da qual cita profusamente o Pentateuco, os profetas e os salmos. No entanto, o exame dos seus escritos mostra que jamais cita textos dos apócrifos/deuterocanónicos.
Justino conhece também e cita os Evangelhos sinópticos, aos quais chama "memórias dos Apóstolos", e menciona que eram lidos nos cultos cristãos. A maior parte das citações evangélicas provêm de Mateus, mas também apela a Lucas e ocasionalmente a Marcos. Rara vez apela ao Evangelho de João, embora deva tê-lo conhecido.
Além disso, há nas suas obras, particularmente no Diálogo com Trifão, alusões a algumas cartas paulinas, em concreto Efésios, Romanos e 1 Coríntios; também uma alusão no capítulo 81 do citado Diálogo..., mostra que conhecia o Apocalipse e lhe atribuía autoridade apostólica.
Ireneu de Lyon (ca. 130-200)
Este bispo das Gálias, de origem asiática, defendeu contra os gnósticos a unidade das Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Na verdade, embora cite ambos, o número de textos do Novo Testamento supera nele os do Antigo. Na sua Refutação e derrota do falsamente chamado conhecimento (= Contra as Heresias), cita mais de mil textos de quase todos os livros do Novo Testamento, especialmente dos quatro Evangelhos (626) e das cartas de Paulo (280), exceto Filemom. Também Atos (54), as epístolas católicas (15) exceto 2 Pedro, 3 João e Judas, e Apocalipse (29).
Para Ireneu era axiomático que existiam somente quatro Evangelhos canónicos, que na realidade chamava “o Evangelho tetramorfo”, ou seja, um único Evangelho em quatro formas. No entanto, não afirma a mesma coisa quanto à coleção de epístolas, embora claramente considere canónicas aquelas que conhece, assim como os Atos (Contra as Heresias III, 12:9, 12). Chama no entanto “Escritura” a O Pastor de Hermas numa única ocasião (Contra as Heresias IV,20:2).
Com esta exceção, é claro que para Ireneu existe uma coleção de escritos apostólicos que possuem igual autoridade como Escrituras que os livros do Antigo Testamento.
Hipólito de Roma (ca. 170-236)
Crê-se que foi discípulo de Ireneu. Foi provavelmente o primeiro a escrever um comentário sobre o livro de Daniel (o qual curiosamente tem estado debaixo do fogo da crítica desde o século passado). Escreveu também uma defesa do Evangelho de João e do Apocalipse (contra Caio ou Gaio, presbítero romano que aparentemente negava a autoria apostólica do Apocalipse). Reconhecia os quatro Evangelhos como Escritura, como também Atos, treze cartas de Paulo (sem incluir Hebreus, a qual no entanto cita frequentemente no seu Comentário sobre Daniel), 1 Pedro, 1 e 2 João. Provavelmente conheceu 2 Pedro, Tiago e Judas.
Hipólito atribuía a mesma autoridade ao Antigo e ao Novo Testamento. Introduzia as citações deste último ora com o nome do autor, ora com as expressões “o Senhor diz” ou “o Apóstolo diz”. No referido Comentário 4:49 apela ao testemunho de toda a Escritura, composta pelos Profetas, pelo Senhor e pelos Apóstolos.
Conhecia muitos outros escritos cristãos ortodoxos e apócrifos, mas nunca lhes atribui igual autoridade que aos acima mencionados.
Novaciano (ca. 200 - 258)
Como Hipólito de Roma, Novaciano foi também um “antipapa”. Pouco antes de 250, escreveu um tratado Sobre a Trindade, na verdade o mais antigo tratado cristão escrito em latim que se conhece. Todos os textos de prova cristológicos provêm do Antigo Testamento. Por outro lado, apela ao que chama “a regra da verdade” (regula veritatis), que é o conjunto do ensino bíblico. Utiliza muito os evangelhos, em particular o de João, assim como as cartas de Paulo, em apoio dos seus ensinos.
Orígenes (ca. 185-254)
Foi o biblista mais importante da antiguidade. Preparou uma edição do Antigo Testamento em seis colunas paralelas com o texto hebraico, uma transliteração grega e várias versões (a Hexapla), uma monumental contribuição para a crítica textual. Embora a maior parte da sua vasta produção se tenha perdido, diz-se que comentou todos ou quase todos os livros da Bíblia. Orígenes chamou “o Novo Testamento” aos Evangelhos, Atos e Epístolas. Afirma inequivocamente que procediam do mesmo Deus e foram inspiradas pelo mesmo Espírito que os livros do Antigo Testamento, e chama à coleção apostólica “Escrituras divinas”.
Embora ocasionalmente cite de obras apócrifas (o que não é de estranhar dada a vastidão da sua erudição e das suas especulações) por outro lado estabelece com toda a clareza que não há senão quatro Evangelhos autênticos. De igual modo testemunha dos Atos e das Epístolas. Cita Hebreus mais de duzentas vezes, ainda que reconheça que o seu autor não deve ter sido Paulo.
Orígenes claramente aceita todos os livros do Novo Testamento, com as possíveis exceções de Tiago (que no entanto conhece), 2 Pedro e 2 e 3 João. No entanto, a propósito de uma das suas Homilias sobre Josué (7:1) dá, como de passagem, uma lista das obras que compõem o Novo Testamento:
Assim também nosso Senhor Jesus Cristo ... enviou os seus apóstolos como sacerdotes levando trombetas bem trabalhadas. Primeiro Mateus fez soar a sua trombeta sacerdotal no seu evangelho. Marcos também, e Lucas, e João, cada um fez soar a sua trombeta sacerdotal. Igualmente Pedro brada com as duas trombetas das suas epístolas; também Tiago e Judas. Adicionalmente, João também soa a trombeta através das suas epístolas (e Apocalipse [texto duvidoso]); e Lucas ao descrever os Atos dos Apóstolos. E em último de todos, vem aquele que disse «penso que Deus me pôs como o último dos apóstolos» (1 Cor 4:9), e trovejando as catorze trombetas das suas epístolas derribou até aos alicerces as paredes de Jericó, isto é, todos os instrumentos de idolatria e os dogmas dos filósofos.
Assim, já no século III existia na verdade um cânon reconhecido e os escritos apostólicos eram tidos por não menos inspirados e divinos que os do Antigo Testamento, se bem que alguns poucos eram ainda disputados. Certamente pela época de Jerónimo e de Agostinho, tal consenso correspondia com o do nosso Novo Testamento.
O seguinte comentário de Bruce M. Metzger resume a realidade histórica:
Estes três critérios (ortodoxia, apostolicidade e consenso entre as Igrejas) para determinar quais livros deviam ser considerados como autoridades para a Igreja tornaram-se geralmente aceites durante o curso do segundo século e já nunca se modificaram. Ao mesmo tempo, porém, encontramos muita variação na forma em que os critérios foram aplicados ... a determinação do cânon apoiou-se numa combinação dialética de critérios históricos e teológicos. Não é portanto de admirar que por várias gerações o status preciso de alguns livros permanecesse duvidoso. O que é realmente notável ... é que, embora as fronteiras do cânon do Novo Testamento permanecessem indefinidas por séculos, alcançou-se um alto grau de unanimidade em relação à maior parte do Novo Testamento dentro dos dois primeiros séculos entre as muito diversas e dispersas congregações não somente em todo o mundo mediterrâneo mas inclusive numa área que se estendia desde a Bretanha até à Mesopotâmia...
Brevemente, segundo os Padres primitivos as Escrituras são inspiradas, mas essa não é a razão pela qual possuem autoridade. Possuem autoridade, e portanto são canónicas, porque são o depósito escrito existente do testemunho apostólico direto e indireto do qual depende o posterior testemunho da Igreja.
(The Canon of the New Testament: Its origen, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 254, 256).

Em linha: http://www.ixoyc.net/data/Fathers/134.pdf