19 de outubro de 2025

A IGREJA QUE “PRESIDE NA CARIDADE”: INÁCIO DE ANTIOQUIA E A INEXISTÊNCIA DO BISPO MONÁRQUICO ROMANO NA IGREJA PRIMITIVA

 

Resumo:

Este artigo analisa o célebre elogio de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma como “a que preside na caridade” (tê prokathemenê tês agapês) e demonstra, à luz das fontes do século I-II e da crítica histórica moderna, que tal expressão não implica primado jurídico, mas apenas primazia moral e exemplar. Examina-se também a estrutura eclesial da época, na qual não existia ainda o modelo monárquico-episcopal romano, e a Igreja era entendida como uma comunhão de comunidades locais autónomas.



1. O texto de Inácio de Antioquia

Na Epístola aos Romanos (prólogo), escrita por volta do ano 107 d.C., o bispo mártir de Antioquia dirige-se à Igreja de Roma nestes termos:

“À Igreja que foi objeto de misericórdia na grandeza do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único, amada e iluminada pela vontade daquele que quis todas as coisas, à que preside na caridade, segundo a lei de Jesus Cristo nosso Senhor.”

(Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, prólogo (ed. Funk, Patres Apostolici, I, p. 252)

A expressão grega tê prokathemenê tês agapês é única em toda a literatura cristã primitiva. O verbo prokathemai (“sentar-se à frente”) pode indicar precedência ou honra, mas o complemento “na caridade” (en agapê) confere ao texto um sentido moral e espiritual, não jurisdicional. Inácio elogia a fé e a caridade de Roma, não a coloca como sede de governo sobre as demais Igrejas.

“Nada nas palavras de Inácio sugere soberania. Trata-se de uma primazia de amor, não de domínio.” (J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers (1885), p. 217)

Refira-se que Inácio elogia outras comunidades de modo semelhante: a Igreja de Éfeso “abundante em fé e amor”, a de Magnésia “em harmonia com Deus”, etc. (Efésios 1; Magnésios 1)


2. Estrutura eclesial no tempo de Inácio

A eclesiologia do início do século II estava em transição. Inácio foi um dos primeiros a formular a ideia do bispo monárquico local, como garante da unidade da comunidade. Todavia, essa estrutura ainda não existia em todas as Igrejas — e Roma é o caso mais notório.

A Carta de Clemente de Roma aos Coríntios (c. 96 d.C.), documento anterior a Inácio, nunca menciona um bispo romano individual; é escrita em nome da Igreja de Roma como corpo colegial:

 “Os apóstolos… estabeleceram os primeiros frutos de sua missão, provando-os pelo Espírito, e colocaram bispos e diáconos.” (1 Clemente 42:4-5)

“Os presbíteros foram instituídos pelos apóstolos e, depois deles, outros homens aprovados sucederam-lhes.” (1 Clemente 44)

A ausência de qualquer menção a um único bispo romano e o uso do plural (“bispos”) confirmam que Roma era então governada por um colégio de presbíteros, não por um pontífice individual.

Assim, quando Inácio escreve sua carta (c. 107 d.C.), não havia ainda um “Papa” no sentido posterior. Ele se dirige à Igreja romana, não a um bispo romano.


3. A comunhão de Igrejas: modelo horizontal, não imperial

A teologia eclesial dos séculos I–II concebia a Igreja universal como uma comunhão de Igrejas locais, cada uma plena em si mesma, unida às demais pela fé e pela caridade.

As sete cartas autênticas de Inácio refletem uma eclesiologia de comunhão horizontal.

Cada Igreja local é presidida pelo seu bispo, símbolo da unidade local, mas todas são irmãs entre si. Inácio nunca fala de “o bispo dos bispos”.

Inácio exorta os fiéis:

“Onde estiver o bispo, aí esteja o povo, assim como onde estiver Cristo, aí está a Igreja. Onde está o bispo, aí deve estar a comunidade, assim como onde está Cristo Jesus, aí está a Igreja Católica.” (Epístola aos Esmirnenses 8,1-2)

Aqui, Igreja Católica significa universalidade da fé, não uma instituição centralizada sob Roma.

Jean Daniélou resume:

“A Igreja primitiva é uma comunhão de Igrejas locais unidas por vínculos de fé e caridade. Não há ainda um centro de comando jurídico.” (Histoire des Doctrines Chrétiennes avant Nicée (1952), p. 75)


4. A interpretação de Ireneu de Lyon

O primeiro autor a citar Roma como referência de ortodoxia foi Ireneu de Lyon, em Adversus Haereses III,3,2 (c. 180 d.C.):

“Com esta Igreja [de Roma], por causa de sua origem mais excelente, deve necessariamente concordar toda Igreja, isto é, os fiéis de toda parte, porque nela sempre se conservou a tradição dos apóstolos.”

Mesmo aqui, a expressão convenire oportet significa “concordar na fé”, não “submeter-se juridicamente”.

Ireneu argumenta a partir da fidelidade doutrinária de Roma, não de um poder papal.

Yves Congar observa:

“O primado romano, no início, é de honra e de caridade, não de jurisdição. Ele nasce do testemunho apostólico de Roma, não de um poder sobre as demais Igrejas.” (L’Église, de Saint Augustin à l’époque moderne (1970), p. 34)


5. Conflitos do século III: Cipriano e o “bispo dos bispos”

No século III, o papa Estêvão I tentou impor sua decisão sobre a validade do batismo dos hereges.

Cipriano de Cartago respondeu de modo firme:

“Nenhum de nós se proclama bispo dos bispos, nem obriga os seus colegas à obediência pela tirania do medo.” (Epístola 59, 14)

Esse testemunho mostra que a autoridade universal de Roma era contestada e considerada inovação.


6. Conclusão

O elogio de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma como “a que preside na caridade” não afirma supremacia jurídica, mas reconhece exemplaridade espiritual.

Nos séculos I-II, a Igreja era uma comunhão de comunidades locais autónomas, unidas pela fé comum e pela caridade fraterna, não uma hierarquia monárquica.

O modelo papal centralizado é um desenvolvimento histórico posterior, sobretudo a partir do século IV, e não parte da estrutura original da Igreja apostólica.

 

Referências bibliográficas essenciais

  • Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos, em Patres Apostolici, ed. Funk, I, 1901.
  • 1 Clemente, ed. Lightfoot & Harmer, The Apostolic Fathers, 1891.
  • Ireneu de Lyon, Adversus Haereses, III, 3, 2.
  • Cipriano de Cartago, Epistulae 59, 14.
  • J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers, Londres 1885.
  • Henry Chadwick, The Early Church, Londres 1967.
  • Yves Congar, L’Église, de Saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970.
  • Jean Daniélou, Histoire des Doctrines Chrétiennes avant Nicée, Paris 1952.
  • Raymond E. Brown, The Churches the Apostles Left Behind, Nova Iorque 1984.