Resumo:
Este artigo analisa o célebre elogio de Inácio de Antioquia à Igreja de Roma
como “a que preside na caridade” (tê prokathemenê tês agapês) e
demonstra, à luz das fontes do século I-II e da crítica histórica moderna, que
tal expressão não implica primado jurídico, mas apenas primazia moral e
exemplar. Examina-se também a estrutura eclesial da época, na qual não existia
ainda o modelo monárquico-episcopal romano, e a Igreja era entendida como uma
comunhão de comunidades locais autónomas.
1. O texto de Inácio de Antioquia
Na Epístola
aos Romanos (prólogo), escrita por volta do ano 107 d.C., o bispo mártir de
Antioquia dirige-se à Igreja de Roma nestes termos:
“À Igreja que
foi objeto de misericórdia na grandeza do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu
Filho único, amada e iluminada pela vontade daquele que quis todas as coisas, à
que preside na caridade, segundo a lei de Jesus Cristo nosso Senhor.”
(Inácio de
Antioquia, Carta aos Romanos, prólogo (ed. Funk, Patres Apostolici,
I, p. 252).
A expressão
grega tê prokathemenê tês agapês é única em toda a literatura cristã
primitiva. O verbo prokathemai (“sentar-se à frente”) pode indicar
precedência ou honra, mas o complemento “na caridade” (en agapê) confere
ao texto um sentido moral e espiritual, não jurisdicional. Inácio
elogia a fé e a caridade de Roma, não a coloca como sede de governo sobre as
demais Igrejas.
“Nada nas palavras de Inácio sugere soberania. Trata-se de uma primazia de amor, não de domínio.” (J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers (1885), p. 217).
Refira-se que Inácio elogia outras comunidades de modo semelhante: a Igreja de Éfeso “abundante em fé e amor”, a de Magnésia “em harmonia com Deus”, etc. (Efésios 1; Magnésios 1).
2. Estrutura eclesial no tempo de Inácio
A eclesiologia do início do século
II estava em transição. Inácio foi um dos primeiros a formular a ideia do bispo
monárquico local, como garante da unidade da comunidade.
Todavia, essa estrutura ainda não existia em todas as Igrejas
— e Roma é o caso mais notório.
A Carta de Clemente de Roma aos Coríntios (c. 96 d.C.), documento
anterior a Inácio, nunca menciona um bispo romano individual; é escrita em
nome da Igreja de Roma como corpo colegial:
“Os apóstolos… estabeleceram os primeiros
frutos de sua missão, provando-os pelo Espírito, e colocaram bispos
e diáconos.” (1 Clemente 42:4-5)
“Os presbíteros
foram instituídos pelos apóstolos e, depois deles, outros homens aprovados
sucederam-lhes.” (1 Clemente 44)
A
ausência de qualquer menção a um único bispo romano e o uso do plural
(“bispos”) confirmam que Roma era então governada por um
colégio de presbíteros, não por um pontífice individual.
Assim, quando Inácio escreve a sua carta (c. 107 d.C.), não havia ainda um “Papa” no sentido posterior. Ele se dirige à Igreja romana, não a um bispo romano.
3. A comunhão de Igrejas: modelo horizontal, não imperial
A teologia eclesial dos séculos I–II
concebia a Igreja universal como uma comunhão de Igrejas locais,
cada uma plena em si mesma, unida às demais pela fé e pela caridade.
As
sete cartas autênticas de Inácio refletem uma eclesiologia de comunhão
horizontal.
Cada
Igreja local é presidida pelo seu bispo, símbolo
da unidade local, mas todas são irmãs entre si. Inácio
nunca fala de “o bispo dos bispos”.
Inácio
exorta os fiéis:
“Onde
estiver o bispo, aí esteja o povo, assim como onde estiver Cristo, aí está a
Igreja. Onde está o bispo, aí deve estar a comunidade, assim como onde está
Cristo Jesus, aí está a Igreja Católica.” (Epístola aos Esmirnenses 8,1-2).
Aqui, Igreja
Católica significa universalidade da fé, não uma instituição
centralizada sob Roma.
Jean Daniélou
resume:
“A Igreja
primitiva é uma comunhão de Igrejas locais unidas por vínculos de fé e
caridade. Não há ainda um centro de comando jurídico.” (Histoire des
Doctrines Chrétiennes avant Nicée (1952), p. 75).
4. A interpretação de Ireneu de Lyon
O primeiro
autor a citar Roma como referência de ortodoxia foi Ireneu de Lyon, em Adversus
Haereses III, 3, 2 (c. 180 d.C.):
“Com esta Igreja [de Roma], por causa de sua origem mais excelente, deve necessariamente concordar toda Igreja, isto é, os fiéis de toda parte, porque nela sempre se conservou a tradição dos apóstolos.”
Todas as Igrejas devem necessariamente “concordar” com Roma porque partilham a mesma tradição apostólica, não porque lhe devem obediência.
Aqui, a expressão convenire oportet significa “concordar na fé”, não “submeter-se juridicamente”.
Ireneu argumenta a partir da fidelidade doutrinária de Roma, não de um poder papal.
Yves Congar
observa:
“O primado
romano, no início, é de honra e de caridade, não de jurisdição. Ele nasce do
testemunho apostólico de Roma, não de um poder sobre as demais Igrejas.” (L’Église,
de Saint Augustin à l’époque moderne (1970), p. 34).
5. Conflitos do século III: Cipriano e o “bispo dos bispos”
No século III,
o papa Estêvão I tentou impor a sua decisão sobre a validade do batismo
dos hereges.
Cipriano de
Cartago respondeu de modo firme:
“Nenhum de nós
se proclama bispo dos bispos, nem obriga os seus colegas à obediência pela
tirania do medo.” (Epístola 59, 14)
Esse testemunho mostra que a autoridade universal de Roma era contestada e considerada inovação.
6. Conclusão
O elogio de
Inácio de Antioquia à Igreja de Roma como “a que preside na caridade” não
afirma supremacia jurídica, mas reconhece exemplaridade espiritual.
Nos séculos
I-II, a Igreja era uma comunhão de comunidades locais autónomas, unidas
pela fé comum e pela caridade fraterna, não uma hierarquia monárquica.
O modelo papal
centralizado é um desenvolvimento histórico posterior, sobretudo a
partir do século IV, e não parte da estrutura original da Igreja apostólica.
Referências bibliográficas essenciais
- Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos, em Patres Apostolici, ed. Funk,
I, 1901.
- 1 Clemente, ed. Lightfoot &
Harmer, The Apostolic Fathers, 1891.
- Ireneu de Lyon, Adversus
Haereses, III, 3, 2.
- Cipriano de Cartago, Epistulae 59, 14.
- J. B. Lightfoot, The Apostolic
Fathers, Londres 1885.
- Henry Chadwick, The Early Church,
Londres 1967.
- Yves Congar, L’Église,
de Saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970.
- Jean Daniélou, Histoire
des Doctrines Chrétiennes avant Nicée, Paris 1952.
- Raymond E. Brown, The Churches the
Apostles Left Behind, Nova Iorque 1984.
