quarta-feira, 9 de abril de 2014

Kallistos Ware sobre o desenvolvimento histórico do culto aos ícones


Kallistos Ware, um dos mais conhecidos teólogos ortodoxos orientais contemporâneos, confirma que o culto aos ícones é uma tradição pós-constantiniana, de origem pagã.

«Foi somente em passos lentos que o uso de ícones tornou-se estabelecido na Igreja. Reagindo contra o seu ambiente pagão, os primeiros cristãos estavam ansiosos por enfatizar acima de tudo o caráter exclusivamente espiritual do seu culto, e procuraram evitar qualquer coisa que pudesse ter sabor de idolatria: "Deus é Espírito, e aqueles que O adoram devem adorá-Lo em espírito e verdade" (João 4:24). A arte cristã primitiva - como encontrada, por exemplo, nas catacumbas romanas - mostra uma certa relutância em retratar Cristo diretamente, e Ele era na maioria das vezes representado de forma simbólica, como o Bom Pastor, ou como Orfeu com a sua lira, ou afins. Com a conversão de Constantino e o progressivo desaparecimento do paganismo, a Igreja tornou-se menos hesitante no uso da arte, e por volta do ano 400 dC tornou-se uma prática aceite representar nosso Senhor não somente através de símbolos mas diretamente. Nesta data, no entanto, ainda não existe nenhuma evidência que sugira que as imagens na igreja eram veneradas ou honradas com quaisquer expressões exteriores de devoção. Elas não eram neste período objetos de culto, mas o seu propósito era decorativo e instrutivo.

Mesmo nesta forma restrita, no entanto, o uso de ícones despertou protestos por parte de alguns escritores do século IV, em particular Eusébio de Cesareia (†339), cujas objeções podem ser encontradas na sua carta a Constantia Augusta, a irmã de Imperador Constantino. Eusébio defendeu que um ícone deve representar necessariamente a imagem "histórica" ​​de Cristo, a "forma" da Sua humilhação; esta, no entanto, foi suplantada, uma vez que a humanidade de Cristo foi assumida na glória divina e agora existe num estado que não pode ser representada em pinturas e cores. Um ícone pintado de Cristo, concluiu, é tanto desnecessário como enganador. …

O primeiro tipo de ícone que recebeu veneração não era religioso, mas secular - o retrato do imperador. Este era considerado como uma extensão da presença imperial, e as honras que eram mostradas ao imperador em pessoa eram prestadas também ao seu ícone. Incenso e velas eram queimados diante dele, e como um sinal de respeito os homens inclinavam-se até ao chão perante ele, tal prostração era normalmente descrita pelo termo proskynesis [1]. Este culto da imagem imperial remonta aos tempos pagãos: com a conversão do imperador ao Cristianismo ele foi prontamente aceite pelos cristãos, e não houve qualquer objeção levantada por parte das autoridades eclesiásticas.

Se os homens dispensam tal respeito à imagem do governante terreno, não devem mostrar igual reverência à imagem de Cristo o Rei celestial? Foi uma inferência óbvia e natural, mas não foi uma inferência que foi feita de uma só vez. Na verdade, proskynesis foi mostrado para com as relíquias dos santos e da Cruz antes de começar a ser mostrado para com o ícone de Cristo. Foi só no período seguinte a Justiniano - durante os anos 550-650 - que a veneração dos ícones em igrejas e casas particulares tornou-se aceite na vida devocional dos cristãos orientais. Pelos anos 650-700 foram feitas as primeiras tentativas por escritores cristãos de fornecer uma base doutrinal para este crescente culto de ícones e de formular uma teologia cristã da arte. De particular interesse é a obra, que sobrevive apenas em fragmentos, de Leôncio de Neápolis (em Chipre), rebatendo críticas judaicas.

A veneração dos ícones não foi aceite em todos os lugares sem oposição. No final do século VI foram feitos protestos em extremos geográficos distantes, em ambos os casos fora dos limites do Império Bizantino - a Ocidente, em Marselha, e a Oriente, na Arménia».

(Extraído de “Christian Theology in the East,” in A History of Christian Doctrine, editado por Hubert Cunliffe-Jones [Philadelphia: Fortress Press, 1980], pp. 191-92)

Poderia pensar-se que o rio da tradição apostólica, se existisse, seria mais límpido e transparente perto da origem. No entanto, em relação à veneração de imagens observa-se exatamente o contrário: rejeição unânime nos padres sub-apostólicos e durante os primeiros séculos; controvérsias a partir do século V e, por fim, o que era uma abominação transforma-se na "ortodoxia" em finais do século VIII.

Cada um deve pois decidir se opta pelas Escrituras e pela tradição unânime dos quatro primeiros séculos ou pelos costumes pagãos e pelas elucubrações dos filósofos às quais se costuma recorrer neste assunto para demonstrar o indemonstrável e justificar o injustificável.


Nota do tradutor

[1] O Concílio II de Niceia (787), enquanto reserva para Deus a latria, usa este termo proskynesis para o culto aos ícones. Em contraste, a maioria das 60 vezes que o verbo proskyneô aparece no Novo Testamento, corresponde à honra devida a Deus. Igualmente o termo “adorador” (grego proskynêtês) foi usado pelo Senhor para referir-se ao culto devido só a Deus: João 4:23.
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