Kallistos
Ware, um dos mais conhecidos teólogos ortodoxos orientais contemporâneos,
confirma que o culto aos ícones é uma tradição pós-constantiniana, de origem
pagã.
«Foi
somente em passos lentos que o uso de ícones tornou-se estabelecido na Igreja.
Reagindo contra o seu ambiente pagão, os primeiros cristãos estavam ansiosos
por enfatizar acima de tudo o caráter exclusivamente espiritual do seu culto, e procuraram evitar qualquer coisa que
pudesse ter sabor de idolatria: "Deus é Espírito, e aqueles que O adoram
devem adorá-Lo em espírito e verdade" (João 4:24). A arte cristã primitiva
- como encontrada, por exemplo, nas catacumbas romanas - mostra uma certa
relutância em retratar Cristo diretamente, e Ele era na maioria das vezes representado
de forma simbólica, como o Bom Pastor, ou como Orfeu com a sua lira, ou afins.
Com a conversão de Constantino e o progressivo desaparecimento do paganismo, a
Igreja tornou-se menos hesitante no uso da arte, e por volta do ano 400 dC
tornou-se uma prática aceite representar nosso Senhor não somente através de
símbolos mas diretamente. Nesta data, no entanto, ainda não existe nenhuma
evidência que sugira que as imagens na igreja eram veneradas ou honradas com
quaisquer expressões exteriores de devoção. Elas não eram neste período objetos
de culto, mas o seu propósito era decorativo e instrutivo.
Mesmo
nesta forma restrita, no entanto, o uso de ícones despertou protestos por parte
de alguns escritores do século IV, em particular Eusébio de Cesareia (†339),
cujas objeções podem ser encontradas na sua carta a Constantia Augusta, a irmã
de Imperador Constantino. Eusébio defendeu que um ícone deve representar
necessariamente a imagem "histórica" de Cristo, a
"forma" da Sua humilhação; esta, no entanto, foi suplantada, uma vez
que a humanidade de Cristo foi assumida na glória divina e agora existe num
estado que não pode ser representada em pinturas e cores. Um ícone pintado de
Cristo, concluiu, é tanto desnecessário como enganador. …
O
primeiro tipo de ícone que recebeu veneração não era religioso, mas secular - o
retrato do imperador. Este era considerado como uma extensão da presença
imperial, e as honras que eram mostradas ao imperador em pessoa eram prestadas
também ao seu ícone. Incenso e velas eram queimados diante dele, e como um
sinal de respeito os homens inclinavam-se até ao chão perante ele, tal
prostração era normalmente descrita pelo termo proskynesis [1]. Este culto da imagem imperial remonta aos tempos
pagãos: com a conversão do imperador ao Cristianismo ele foi prontamente aceite
pelos cristãos, e não houve qualquer objeção levantada por parte das
autoridades eclesiásticas.
Se
os homens dispensam tal respeito à imagem do governante terreno, não devem
mostrar igual reverência à imagem de Cristo o Rei celestial? Foi uma inferência
óbvia e natural, mas não foi uma inferência que foi feita de uma só vez. Na
verdade, proskynesis foi mostrado
para com as relíquias dos santos e da Cruz antes de começar a ser mostrado para
com o ícone de Cristo. Foi só no período seguinte a Justiniano - durante os
anos 550-650 - que a veneração dos ícones em igrejas e casas particulares
tornou-se aceite na vida devocional dos cristãos orientais. Pelos anos 650-700
foram feitas as primeiras tentativas por escritores cristãos de fornecer uma
base doutrinal para este crescente culto de ícones e de formular uma teologia
cristã da arte. De particular interesse é a obra, que sobrevive apenas em
fragmentos, de Leôncio de Neápolis (em Chipre), rebatendo críticas judaicas.
A
veneração dos ícones não foi aceite em todos os lugares sem oposição. No final
do século VI foram feitos protestos em extremos geográficos distantes, em ambos
os casos fora dos limites do Império Bizantino - a Ocidente, em Marselha, e a
Oriente, na Arménia».
(Extraído de “Christian
Theology in the East,” in A History of
Christian Doctrine, editado por Hubert Cunliffe-Jones [Philadelphia: Fortress
Press, 1980], pp. 191-92)
Poderia
pensar-se que o rio da tradição apostólica, se existisse, seria mais límpido e transparente perto da origem. No entanto, em relação à veneração de imagens observa-se
exatamente o contrário: rejeição unânime nos padres sub-apostólicos e durante
os primeiros séculos; controvérsias a partir do século V e, por fim, o que era
uma abominação transforma-se na "ortodoxia" em finais do século VIII.
Cada
um deve pois decidir se opta pelas Escrituras e pela tradição unânime dos
quatro primeiros séculos ou pelos costumes pagãos e pelas elucubrações dos
filósofos às quais se costuma recorrer neste assunto para demonstrar o
indemonstrável e justificar o injustificável.
Nota do tradutor
[1]
O Concílio II de Niceia (787), enquanto reserva para Deus a latria, usa este
termo proskynesis para o culto aos
ícones. Em contraste, a maioria das 60 vezes que o verbo proskyneô aparece no Novo Testamento, corresponde à honra devida a
Deus. Igualmente o termo “adorador” (grego proskynêtês)
foi usado pelo Senhor para referir-se ao culto devido só a Deus: João 4:23.