Justino Mártir (ca. 100-165)
Habitualmente quando
menciona as Escrituras refere-se ao Antigo Testamento. Justino conhece o AT
através fundamentalmente da antiga versão Septuaginta. Um aspecto interessante
é que na atualidade os romanistas apelam ao facto de os manuscritos da Septuaginta
incluírem os livros que desde o século XVI chamam "deuterocanónicos"
(e nós apócrifos) como prova da existência de um imaginário "cânon
alexandrino" similar senão idêntico ao estabelecido dogmaticamente no
Concílio de Trento. Ora bem, o mestre e mártir Justino usa a Septuaginta, da
qual cita profusamente o Pentateuco, os profetas e os salmos. No entanto, o
exame dos seus escritos mostra que jamais
cita textos dos apócrifos/deuterocanónicos.
Justino conhece também e
cita os Evangelhos sinópticos, aos quais chama "memórias dos
Apóstolos", e menciona que eram lidos nos cultos cristãos. A maior parte das
citações evangélicas provêm de Mateus, mas também apela a Lucas e
ocasionalmente a Marcos. Rara vez apela ao Evangelho de João, embora deva tê-lo
conhecido.
Além disso, há nas suas
obras, particularmente no Diálogo com
Trifão, alusões a algumas cartas paulinas, em concreto Efésios, Romanos e 1
Coríntios; também uma alusão no capítulo 81 do citado Diálogo..., mostra que conhecia o Apocalipse e lhe atribuía autoridade
apostólica.
Ireneu de Lyon (ca. 130-200)
Este
bispo das Gálias, de origem asiática, defendeu contra os gnósticos a unidade
das Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Na verdade, embora cite ambos, o
número de textos do Novo Testamento supera nele os do Antigo. Na sua Refutação
e derrota do falsamente chamado conhecimento (= Contra as Heresias), cita
mais de mil textos de quase todos os livros do Novo Testamento, especialmente
dos quatro Evangelhos (626) e das cartas de Paulo (280), exceto Filemom. Também
Atos (54), as epístolas católicas (15) exceto 2 Pedro, 3 João e Judas, e
Apocalipse (29).
Para
Ireneu era axiomático que existiam somente quatro Evangelhos canónicos, que na
realidade chamava “o Evangelho tetramorfo”, ou seja, um único Evangelho em quatro
formas. No entanto, não afirma a mesma coisa quanto à coleção de epístolas,
embora claramente considere canónicas aquelas que conhece, assim como os Atos
(Contra as Heresias III, 12:9, 12). Chama no entanto “Escritura” a O Pastor
de Hermas numa única ocasião (Contra as Heresias IV,20:2).
Com
esta exceção, é claro que para Ireneu existe uma coleção de escritos
apostólicos que possuem igual autoridade como Escrituras que os livros do Antigo
Testamento.
Hipólito de Roma (ca. 170-236)
Crê-se
que foi discípulo de Ireneu. Foi provavelmente o primeiro a escrever um
comentário sobre o livro de Daniel (o qual curiosamente tem estado debaixo do
fogo da crítica desde o século passado). Escreveu também uma defesa do
Evangelho de João e do Apocalipse (contra Caio ou Gaio, presbítero romano que
aparentemente negava a autoria apostólica do Apocalipse). Reconhecia os quatro
Evangelhos como Escritura, como também Atos, treze cartas de Paulo (sem
incluir Hebreus, a qual no entanto cita frequentemente no seu Comentário
sobre Daniel), 1 Pedro, 1 e 2 João. Provavelmente conheceu 2 Pedro, Tiago e
Judas.
Hipólito
atribuía a mesma autoridade ao Antigo e ao Novo Testamento. Introduzia as
citações deste último ora com o nome do autor, ora com as expressões “o Senhor
diz” ou “o Apóstolo diz”. No referido Comentário 4:49 apela ao
testemunho de toda a Escritura, composta pelos Profetas, pelo Senhor e pelos
Apóstolos.
Conhecia
muitos outros escritos cristãos ortodoxos e apócrifos, mas nunca lhes atribui
igual autoridade que aos acima mencionados.
Novaciano (ca.
200 - 258)
Como
Hipólito de Roma, Novaciano foi também um “antipapa”. Pouco antes de 250,
escreveu um tratado Sobre a Trindade, na verdade o mais antigo tratado
cristão escrito em latim que se conhece. Todos os textos de prova cristológicos
provêm do Antigo Testamento. Por outro lado, apela ao que chama “a regra da
verdade” (regula veritatis), que é o conjunto do ensino bíblico. Utiliza
muito os evangelhos, em particular o de João, assim como as cartas de Paulo, em
apoio dos seus ensinos.
Orígenes (ca. 185-254)
Foi
o biblista mais importante da antiguidade. Preparou uma edição do Antigo
Testamento em seis colunas paralelas com o texto hebraico, uma transliteração
grega e várias versões (a Hexapla), uma monumental contribuição para a
crítica textual. Embora a maior parte da sua vasta produção se tenha perdido, diz-se
que comentou todos ou quase todos os livros da Bíblia. Orígenes chamou “o Novo
Testamento” aos Evangelhos, Atos e Epístolas. Afirma inequivocamente que
procediam do mesmo Deus e foram inspiradas pelo mesmo Espírito que os livros do
Antigo Testamento, e chama à coleção apostólica “Escrituras divinas”.
Embora
ocasionalmente cite de obras apócrifas (o que não é de estranhar dada a
vastidão da sua erudição e das suas especulações) por outro lado estabelece com
toda a clareza que não há senão quatro Evangelhos autênticos. De igual modo
testemunha dos Atos e das Epístolas. Cita Hebreus mais de duzentas vezes,
ainda que reconheça que o seu autor não deve ter sido Paulo.
Orígenes
claramente aceita todos os livros do Novo Testamento, com as possíveis
exceções de Tiago (que no entanto conhece), 2 Pedro e 2 e 3 João. No entanto,
a propósito de uma das suas Homilias sobre Josué (7:1) dá, como de
passagem, uma lista das obras que compõem o Novo Testamento:
“Assim também nosso Senhor Jesus Cristo ...
enviou os seus apóstolos como sacerdotes levando trombetas bem trabalhadas.
Primeiro Mateus fez soar a sua trombeta sacerdotal no seu evangelho. Marcos
também, e Lucas, e João, cada um fez soar a sua trombeta sacerdotal. Igualmente
Pedro brada com as duas trombetas das suas epístolas; também Tiago e Judas. Adicionalmente,
João também soa a trombeta através das suas epístolas (e Apocalipse [texto
duvidoso]); e Lucas ao descrever os Atos dos Apóstolos. E em último de todos,
vem aquele que disse «penso que Deus me pôs como o último dos apóstolos» (1 Cor
4:9), e trovejando as catorze trombetas das suas epístolas derribou até aos alicerces
as paredes de Jericó, isto é, todos os instrumentos de idolatria e os dogmas dos
filósofos.”
Assim,
já no século III existia na verdade um cânon reconhecido e os escritos apostólicos
eram tidos por não menos inspirados e divinos que os do Antigo Testamento, se
bem que alguns poucos eram ainda disputados. Certamente pela época de Jerónimo
e de Agostinho, tal consenso correspondia com o do nosso Novo Testamento.
O
seguinte comentário de Bruce M. Metzger resume a realidade histórica:
“Estes três critérios (ortodoxia,
apostolicidade e consenso entre as Igrejas) para determinar quais livros deviam
ser considerados como autoridades para a Igreja tornaram-se geralmente aceites
durante o curso do segundo século e já nunca se modificaram. Ao mesmo tempo,
porém, encontramos muita variação na forma em que os critérios foram aplicados
... a determinação do cânon apoiou-se numa combinação dialética de critérios
históricos e teológicos. Não é portanto de admirar que por várias gerações o
status preciso de alguns livros permanecesse duvidoso. O que é realmente notável
... é que, embora as fronteiras do cânon do Novo Testamento permanecessem
indefinidas por séculos, alcançou-se um alto grau de unanimidade em relação à
maior parte do Novo Testamento dentro dos dois primeiros séculos entre as muito
diversas e dispersas congregações não somente em todo o mundo mediterrâneo mas
inclusive numa área que se estendia desde a Bretanha até à Mesopotâmia...
Brevemente, segundo os Padres primitivos as Escrituras
são inspiradas, mas essa não é a razão pela qual possuem autoridade. Possuem
autoridade, e portanto são canónicas, porque são o depósito escrito existente
do testemunho apostólico direto e indireto do qual depende o posterior testemunho da Igreja.”
(The Canon of the New Testament: Its origen, development, and
significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 254, 256).
Em linha: http://www.ixoyc.net/data/Fathers/134.pdf
Em linha: http://www.ixoyc.net/data/Fathers/134.pdf
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.