quarta-feira, 24 de abril de 2013

Lutero exortou os cristãos a "pecar fortemente"?


É muito comum ver católicos falando que Lutero teria dito: “Seja um pecador e peque fortemente, mas creia e se alegre em Cristo mais fortemente ainda”. Sempre que eu ouço coisas como essas, eu fico com um pé atrás, embora conceda o benefício da dúvida. Após fazer uma pesquisa descobri que Lutero realmente disse isso, mas que a sua declaração não era uma licença para pecar, como supõem os seus detratores. Eu vou abordar essa questão aqui muito brevemente. Vocês podem conferir um extenso tratamento dessa citação nesse link:
 
 
O parágrafo onde se localiza a citação diz o seguinte:
 
Se você é um pregador da misericórdia, não pregue uma misericórdia imaginária, mas uma misericórdia real. Se a misericórdia é real, então você deve arcar com o pecado real e não com um imaginário. Deus não salva aqueles que são apenas pecadores imaginários. Seja um pecador, e peque fortemente*, mas creia e se alegre em Cristo mais fortemente, porque ele é vitorioso sobre o pecado, sobre a morte e sobre o mundo. Enquanto nós estivermos aqui [neste mundo] nós pecaremos. Essa vida não é um lugar onde a justiça reside. É suficiente que pelas riquezas da glória de Deus nós tenhamos conhecido o Cordeiro que tira o pecado do mundo”
 
*Nota: Algumas versões dizem “Seja um pecador e deixe que seu pecado seja forte”
 
A primeira coisa a ser dita sobre isso é que Lutero não era antinomiano. Existem vários textos do reformador onde ele defende a necessidade do crente obedecer a Deus e buscar a santificação. Um exemplo de que as obras devem necessariamente seguir a fé no crente pode ser visto abaixo:
 
“Porque é impossível para aquele que crê em Cristo, como um justo Salvador, não amar e fazer o bem. Se, no entanto, ele não faz o bem e não ama, é certo que a fé não está presente. Portanto o homem conhece pelos frutos que tipo de árvore ela é, e é provado pelo amor e ações se Cristo está nele e se ele crê em Cristo. Como diz São Pedro em 2 Pedro 1:10 'Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis', isto é, se vocês bravamente praticarem boas obras vocês estarão certos e não poderão duvidar que Deus tem chamado e escolhido vocês”. [Sermons of Martin Luther 1:40]
 
Além disso, é preciso ressaltar que não se trata de algo que Lutero disse no púlpito ou que tenha escrito num livro. Muito pelo contrário. Esse texto foi retirado de um carta pessoal enviada para seu amigo Melanchthon. Para ser mais específico, o texto foi retirado de um fragmento da carta, pois só existe parte dela, o qual pode ser lido nesse link:
 
 
Não foi uma declaração pública, mas uma conversa particular, privada. Não foi endereçada para alguém que não conhecesse a teologia de Lutero, mas para alguém extremamente familiar com ela.
 
Tendo feito essas duas observações preliminares, eu preciso falar de uma coisa antes de explicar o sentido da citação. É extremamente interessante que embora os detratores de Lutero tentem usar essa citação como uma vergonha para os protestantes em geral e para os luteranos mais especificamente, estes últimos, pelo que pude perceber em vários de seus sites disponíveis na língua inglesa, não tem o mínimo de vergonha do que Lutero disse. A reação deles é exatamente contrária: orgulho. Eles ostentam a declaração do reformador como um emblema, como uma bandeira.
 
Vocês podem ver uma amostra disso aqui:

http://sinboldly.tumblr.com/sinboldly
 
E aqui:
 
 
Vendo isso eu me lembrei imediatamente da diferença do que a Cruz de Cristo significava para um romano não convertido na época dos apóstolos e o que significava para um cristão. O primeiro olhava para a imagem de um judeu morto numa cruz e via nisso uma vergonha para os que se diziam cristãos, pois a morte na cruz era o destino dos assassinos, dos criminosos. Significava para ele que o líder da nova “seita” que surgia teve um fim desonroso. Já para um cristão a Cruz de Cristo era motivo de orgulho. Significava para ele, e significa para nós, o Filho de Deus entregando-se a Si mesmo para morrer em nosso lugar num ato de amor e o triunfo de Cristo sobre o pecado, sobre a morte e sobre o mundo. A cruz é para nós Christus Victor.
 
A situação dos luteranos em relação a essa citação de Lutero é muito parecida com a dos primeiros cristãos em relação à Cruz. Estes pegaram aquilo que os outros pensavam ser uma vergonha para eles e fizeram disso seu emblema. Fizeram isso porque entendiam o sentido da Cruz, enquanto os seus detratores não a compreendiam. Da mesma forma os luteranos ostentam o que Lutero disse como um símbolo porque eles compreendem o que ele disse. Eles compreendem a graça de Deus.
 
E o que Lutero queria dizer afinal?
 
Lutero nessa citação nos exorta a confiarmos mais fortemente em Cristo e essa confiança na misericórdia de Deus sendo tão forte como deve ser, deve nos levar a aceitar a força do pecado em nossas vidas. Isso não é um encorajamento para o pecado, mas, pelo contrário, uma declaração do poder da graça de Deus em Cristo. O pecado é poderoso. Tentar se enganar só leva ao desastre. Quando falhamos em admitir o pecado, de olhar para ele de frente, sem subterfúgios, nós perdemos a necessidade de um Cristo vitorioso e da misericórdia divina. É claro que não podemos nos conformar. Devemos buscar a santidade constantemente, mas no processo não podemos nos fingir de cegos para os nossos próprios pecados, para nós mesmos. Só precisa de médico quem está doente, e só confia no Médico quem admite a sua doença.
 
Peque fortemente, mas creia mais fortemente!
 
Emerson Campos

2 comentários:

  1. À luz de Romanos 6, poderíamos traduzir a expressão de Lutero "Peque fortemente, mas creia mais fortemente" por:

    "Você não precisa ter medo por o pecado ainda assolar você - ao invés alegre-se que, pela graça de Deus, você está numa viagem rumo à vida eterna e o pecado desaparecerá finalmente no passado distante"

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