sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O dia da crucificação: foi uma sexta-feira?


O problema

Há quem diga que a noção tradicional de que Jesus foi julgado e crucificado numa sexta-feira se baseia na declaração de Marcos 15:42, "Quando a noite chegou, porque era a preparação, isto é, a véspera do sábado, José de Arimateia … pediu o corpo de Jesus". Consideram esta noção errada, e arraigada na ignorância de que o primeiro dia depois da Páscoa é um dia festivo, ou Sábado solene, porque nele começa a festa dos ázimos ou pães sem fermento, que era um Sábado sem importar em que dia da semana caísse (David R. Reagan, Daniel's 70 Weeks Of Years. Lamb and Lion Ministries, http://www.lamblion.com/articles/articles_tribulation6.php).

Um problema relacionado, que no entanto não tratarei em detalhe, é o tempo que Jesus passou no túmulo. Segundo a noção tradicional, Jesus teria permanecido no túmulo uma parte de sexta-feira, todo o sábado e parte do domingo, isto é, menos de três dias completos. Segundo a noção revista, Jesus teria estado sepultado desde quinta-feira até domingo, ou seja três dias completos.

Mateus 12:39-40 diz: "Ele respondeu, e lhes disse: - A geração má e adúltera pede um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal de Jonas. Pois, como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim estará o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra". À primeira vista esta profecia de Jesus parece exigir três dias completos ou 72 horas. No entanto, a expressão "dias e noites" é uma forma hebraica de referir um dia, que pode compreender apenas parte dele. Assim, por exemplo, em Ester 4:16, é dito que os hebreus jejuaram três dias e três noites antes que Ester comparecesse diante de Assuero, e no entanto em 5:1 se relata que ela se apresentou "ao terceiro dia".

Além disso, os próprios dados dos Evangelhos são consistentes com a noção de que a expressão "três dias e três noites" pode significar menos de 72 horas. De facto, os anúncios de Jesus sobre a Sua ressurreição "ao terceiro dia" na realidade exigem entender assim a expressão (Mateus 16:21; 17: 23; 20:19; ver 27:64; Marcos 9:31; 10:34; Lucas 9:22; 18: 33; 24:33, cf. 24:7,21).

Portanto, os anúncios da ressurreição não estão em contradição entre si, nem permitem decidir pela cronologia tradicional ou pela revista da última semana.

O ano civil e o ano religioso

Nos tempos de Jesus, os judeus usavam dois calendários: o civil que era solar e começava em outubro ou novembro, com a festa de Rosh Ha-shana, e o religioso, que era lunar e começava com o mês de Nissan (março ou abril). Um mês lunar é um pouco mais de 29 dias, de modo que no calendário lunar havia meses de 29 e de 30 dias. Quando se percebia que a Páscoa cairia antes do equinócio da Primavera (21 de março segundo o calendário atual), era acrescentado entre o último mês do ano religioso e o mês de Nissan um mês intercalado ou embolísmico, que se chamava Ve-Adar. Segundo Números 28, a Páscoa celebrava-se em 14 de Nissan, e era imediatamente seguida pela festa dos ázimos (15 a 21 de Nissan). Como os dias da semana se determinavam de acordo com o ano solar civil, a Páscoa podia cair em qualquer dia da semana, já que a sua ocorrência era determinada segundo o calendário religioso (lunar), que estava desfasado do solar.

Existe evidência de que algumas seitas judaicas usavam um calendário perpétuo, segundo o qual as festas sempre caíam no mesmo dia da semana, mas não é absolutamente claro se Jesus ou os primeiros cristãos seguiriam esta disposição sectária. Esta hipótese carece, portanto, de fundamento firme; veja-se a discussão a respeito, na International Standard Bible Encyclopedia 3:953-954, artigo "Preparation, Day of".

O "dia da preparação"

Em relação à expressão grega "hëmera paraskeuës" ou "dia da preparação", o erudito bíblico Gleason L. Archer (1982, p. 375-376) assinala: "Primeiro, a palavra paraskeuës já se havia tornado, no primeiro século da Era Cristã, num termo técnico para designar a sexta-feira, já que sexta-feira era o dia da preparação para o Sábado. Em grego moderno, paraskeuës significa "sexta-feira". Segundo, a expressão grega tou pascha (literalmente "da Páscoa") é considerado como equivalente da semana da Páscoa". De modo que, em primeira instância, parece que o julgamento e a crucificação do Senhor ocorreram numa sexta-feira.

Os que sustentam que há um erro na interpretação tradicional assinalam como evidência que Marcos 16:1 diz que um grupo de mulheres compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus depois de ter terminado o Sábado, mas que Lucas 23:56 diz que compraram os perfumes antes do Sábado e, em seguida, descansaram durante este antes de ir ao túmulo.

Os textos bíblicos

O argumento recém-mencionado requer alguma elaboração. Mas antes disso, transcreverei os textos relevantes:

Mateus 26:1-2. "Quando Jesus acabou todas estas palavras, disse aos seus discípulos: «Sabeis que dentro de dois dias se celebra a Páscoa, e que o Filho do homem será entregue para ser crucificado»"

Mateus 26:17. "No primeiro dia dos pães ázimos, vieram os discípulos a Jesus, e perguntaram: Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?"

Mateus 27:62-64. "No dia seguinte, que é depois da preparação, se reuniram os principais sacerdotes e os fariseus perante Pilatos e lhe disseram: - Senhor, lembramo-nos que aquele mentiroso, quando ainda vivo, afirmou: «Depois de três dias ressuscitarei». Manda, pois, que o sepulcro seja guardado com segurança até o terceiro dia; para não suceder que, vindo os seus discípulos de noite, o furtem e digam ao povo: «Ressuscitou dentre os mortos». E o último engano será pior do que o primeiro."

Marcos 14:1-2. "Dois dias depois era a Páscoa e a festa dos Pães ázimos. Os principais sacerdotes e os escribas buscavam como prendê-lo com engano e matá-lo. E diziam: «Não durante a festa, para que não haja tumulto entre o povo»."

Marcos 14:12 "No primeiro dia dos Pães ázimos, quando sacrificavam o cordeiro da Páscoa, disseram-lhe os seus discípulos: Aonde queres que vamos fazer os preparativos para comeres a Páscoa?" (ver também v.14,16)

Marcos 15:42 – 43 "Quando chegou a noite, porque era a preparação, isto é, a véspera do sábado, chegou José de Arimateia, … e ousadamente foi a Pilatos, e pediu o corpo de Jesus."

Lucas 22:1,7-8. "Aproximava-se a festa dos Pães ázimos, que se chama a Páscoa... Chegou o dia dos Pães ázimos, em que era necessário sacrificar o cordeiro da Páscoa. Então Jesus enviou Pedro e João, dizendo: Ide, preparai-nos a Páscoa, para que a comamos."

Lucas 23:53-54 "Tirando-o da cruz, envolveu-o num lençol, e pô-lo num sepulcro escavado numa penha, onde ninguém ainda havia sido posto. Era o dia da preparação, e amanhecia o sábado."

João 13:1-2 "Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim. E quando ceavam…"

João 18:28 "Levaram Jesus da casa de Caifás para o pretório. Era de manhã cedo, e eles não entraram no pretório para não se contaminarem e assim poderem comer a Páscoa."

João 19:14 "Era a preparação da Páscoa, e quase à hora sexta; e disse aos judeus: Eis aqui o vosso Rei!"

João 19:31 "Então os judeus, porquanto era a preparação da Páscoa, para que no sábado os corpos não ficassem na cruz (pois aquele sábado era de grande solenidade), rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas, e fossem tirados dali"

João 19:42 "Ali, pois, por causa da preparação da Páscoa dos judeus, e por estar perto aquele sepulcro, puseram a Jesus."

Costumes e nomenclatura na época de Jesus

Na realidade, segundo o Antigo Testamento, os cordeiros deviam sacrificar-se no dia anterior ao primeiro dia da festa dos Pães ázimos, veja-se o livro de Roland de Vaux (p. 610-620) para a história antiga destas celebrações. No entanto, como já assinalei, no tempo de Jesus, no 14 de Nissan se costumava tirar pela manhã o fermento das casas para ser queimado, e de tarde se sacrificavam os cordeiros pascais que cada família reservava no 10 de Nissan. Este costume é referido por Marcos 14:12 e Lucas 22:07 (ver acima). A ceia pascal celebrava-se depois do pôr do sol, o que na prática significava logo após o aparecimento das primeiras três estrelas no céu.

Entre os judeus tornou-se prática comum designar tanto esta celebração pascal como a festa dos Pães ázimos que a seguia sob o termo comum de "pães ázimos" ou indistintamente "Páscoa" como se fossem uma só celebração contínua. Isto é atestado pelo historiador judeu Flávio Josefo (Antiguidades dos Judeus, 14, 2:1 e 17,9:3). Mateus, que provavelmente se dirigia primariamente a cristãos judeus, parece dar por adquirido que os seus leitores conheciam esta prática ao chamá-la o primeiro dia dos pães ázimos, o que seria um sem-sentido se não fosse pelo costume assinalado, pois em tal caso já teria passado o tempo da Páscoa (Mateus 26:2,17).

Por outro lado, tanto Marcos como Lucas, que aparentemente se dirigiam a cristãos procedentes da gentilidade (não judeus), estabelecem a distinção entre as duas celebrações (Marcos 14:1,12, Lucas 22:7). Ambos deixam muito claro que a ceia se celebrava no mesmo dia - segundo o modo atual de contá-los, de 0 am a 12 pm - em que se sacrificavam os cordeiros. Mateus também estabelece o 14 de Nissan em 26:17, ou seja, o dia em que se costumava tirar o fermento das casas. Aqui há um defeito de tradução em algumas versões da Bíblia já que dizem "No primeiro dia da festa dos Pães ázimos". No texto grego lê-se: prötei tön azumön, "no primeiro dos ázimos". Aqui a palavra "dia" está subentendida e é correto acrescentá-la: "no primeiro dia dos ázimos". No entanto, a palavra "festa" é uma adição injustificada que altera o sentido: quando se fala da "festa", como em João 13:1, não se incluía a ceia pascal.

Embora João chame ao dia do julgamento de Jesus "a preparação para a Páscoa", isto deve entender-se, como o deixa muito claro a Nova Versão Internacional (em inglês), como "o dia da preparação da semana da Páscoa". Isto não é apenas indicado pelo costume conhecido, nem é um recurso para se fazer encaixar João no esquema dos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), mas é claramente demonstrado pelo que João diz em 18:28. No dia do julgamento de Jesus os judeus recusaram entrar no pretório ou corte de Pilatos, âmbito gentio, para evitar se contaminarem e assim poderem "comer a Páscoa". Ora, a comida a que aqui se faz referência deve ter sido a das ofertas da festa dos Pães ázimos (ver Deuteronómio 16:2-3). A razão é que, se o dia do julgamento de Jesus tivesse sido o 14 de Nissan, se contaminarem por entrar no pretório não impediria os judeus de comer a ceia pascal, uma vez que esta ceia se celebrava após o pôr do sol, quando a contaminação ritual já tinha terminado (Levítico 22:7).

Quando ocorreu a crucificação?

A Páscoa devia teoricamente cair na noite de lua cheia do décimo quarto dia depois do começo da fase crescente. No entanto, isto não era necessariamente preciso do ponto de vista astronómico, já que o começo da fase da lua era determinado por decreto de um tribunal ou Beth Din, com base no testemunho de três pessoas. Isto pode ter causado algumas vezes um atraso de 24 horas (já que os meses lunares não podiam durar menos de 29, nem mais de 30 dias) entre o começo real e o começo declarado do novo mês lunar.

Segundo o esquema proposto por Reagan, no ano 31 a Páscoa caiu numa quarta-feira. Jesus foi crucificado na mesma manhã, agonizava enquanto se estavam sacrificando os cordeiros pascais, e foi sepultado no mesmo dia ao entardecer. No dia seguinte, uma quinta-feira, era um Sábado solene. Na sexta-feira, depois do Sábado solene, as mulheres teriam comprado os perfumes, e depois descansaram durante o sábado normal (semanal) antes de ir ao túmulo na manhã de domingo.

Ora, na realidade desconhece-se o ano preciso da crucificação, embora se saiba que deve ter sido entre o ano 30 e o 34 (aqui deve-se recordar que Jesus nasceu entre o ano 4 e 7 a.C., antes da morte de Herodes; a data tradicional de nascimento se fixou erroneamente na Idade Média). Para as datas envolvidas, os anos 32 e 34 podem descartar-se, ficando como possíveis candidatos os anos 30, 31 e 33. Tendo em conta que a Páscoa devia necessariamente cair depois do equinócio da primavera, e a incerteza na determinação da lua nova, Joachim Jeremias (p. 38-39) mostra que, segundo cálculos astronómicos, os dias correspondentes para os anos 30, 31 e 33 foram como se segue.

30 d.C.: 14 e 15 de Nissan corresponderiam à sexta-feira 7 e ao sábado 8 de abril (menos provavelmente à quinta-feira 6 e à sexta-feira 7 de abril).

31 d.C.; 14 e 15 de Nissan corresponderiam ou à quarta-feira 25 e à quinta-feira 26 de abril, ou alternativamente à quinta-feira 26 e à sexta-feira 27 de abril.

33 d.C.: 14 e 15 de Nissan corresponderiam ou à sexta-feira 3, e ao sábado 4 de abril, ou alternativamente ao sábado 4 e ao domingo 5 de abril.

Os dados anteriores implicam ainda que não é absolutamente seguro que o 14 de Nissan tenha caído numa quarta-feira no ano 31, embora exista a possibilidade. No entanto, se este foi o dia da crucificação, isso significa que a Última Ceia teve lugar no dia anterior ao da ceia pascal, ou seja, segundo o reconhecimento hebraico dos dias desde um pôr do sol até ao seguinte, no início do 14 de Nissan; mas os Evangelhos (Mateus 26:17 e paralelos) dizem explicitamente o contrário. Esta é uma importante dificuldade desta hipótese já que, como Jeremias e outros demonstraram, a Última Ceia foi realmente uma refeição Pascal.

Um ou dois Sábados na última semana?

Outra importante dificuldade é que a hipótese revista pressupõe dois Sábados, conforme detalhado a seguir:

A Última Ceia na terça-feira à noite (início do 14 de Nissan)

O julgamento, a crucificação e o sepultamento na quarta-feira antes do pôr do sol (14 de Nissan)

Um sábado solene na quinta-feira (15 de Nissan)

Um dia de preparação na sexta-feira (16 de Nissan)

Repouso durante o Sábado semanal (17 de Nissan)

A ressurreição no domingo (18 de Nissan)

Tirando a observação de que a Páscoa podia cair em qualquer dia da semana - um facto, seguramente conhecido por estudiosos favoráveis à cronologia tradicional do gabarito de Archer e Jeremias - o principal argumento a favor de dois sábados parece ser este: "Os Evangelhos deixam claro que a semana da crucificação teve dois Sábados. Marcos 16:1 diz que um grupo de mulheres comprou perfumes para ungir o corpo de Jesus depois de terminado o Sábado. Mas em Lucas 23:56 é dito que compraram os perfumes antes do Sábado e depois descansaram no Sábado antes de ir ao túmulo." (Reagan, obra citada).

Ora, estas declarações são imprecisas. Primeiro examinemos os textos gregos com uma tradução literal:

Marcos diz, Kai diagenomenou tou sabbatou, Maria he magdalënë kai Maria he tou Iakobou kai Salömë ëgorasan arömata ina elthousai aleipsösin auton. Kai lian proi tes mias sabbatön erchontai epi ton mnëmeion...

"E passando o sábado, Maria a Madalena e Maria a [mãe de] Tiago, e Salomé compraram perfumes [de modo] que vindo pudessem ungi-lo. E muito cedo no primeiro [dia] da semana vieram ao túmulo ... "

Lucas diz, de ëtoimasan arömata kai mura. Kai to men sabbaton ësichasan kata tën entolën. Të de mia tön sabbaton ... ëlthon epi to mnema

"E prepararam perfumes e unguento. E no sábado, descansaram segundo o mandamento. Mas no primeiro [dia] da semana... vieram ao túmulo."

Duas coisas são dignas de atenção aqui. Em primeiro lugar, nem Marcos nem Lucas mencionam dois Sábados. Cada autor refere-se a um único Sábado. Marcos diz que as mulheres compraram perfumes (arömata) mas Lucas não diz tal coisa; simplesmente relata que as mulheres "prepararam" (ëtoimasan) perfumes e unguento. Como observou Walter W. Wessel, o relato de Marcos sugere que elas compraram os perfumes logo que terminou o Sábado, ou seja depois das 6 da tarde. É possível que os tenham comprado para adicioná-los aos já preparados – que menciona Lucas - se lhes pareceu que estes últimos não seriam suficientes (Mark, em Expositor's Bible Commentary; 8:786).

Em segundo lugar, a hipótese de dois Sábados dá por adquirido que o grupo de mulheres que prepararam os perfumes segundo Lucas era exatamente o mesmo que comprou os perfumes segundo Marcos. Esta é uma suposição que carece de fundamento sólido. Deve-se recordar que havia muitas mulheres que seguiam Jesus (Lucas 8:3). Marcos menciona Maria Madalena, Maria a mãe de Tiago e Salomé, enquanto Lucas não nos diz os seus nomes neste texto (Lucas 23:56), que simplesmente fala das "mulheres". Mas mais tarde (24:10) Lucas menciona as mesmas Marias, Joana - muito provavelmente a mulher de Cuza, o mordomo de Herodes Antipas - e "o resto das mulheres [que estavam com] elas" (kai ai loipai sun autais). O plural indica que havia outras para além de Salomé, e Marcos não menciona Joana. De modo que é perfeitamente possível que as "mulheres" anónimas de Lucas preparassem perfumes e unguento na tarde de sexta-feira e que as Marias e Salomé comprassem mais por sua conta depois de terminado o sábado, antes de todas se reunirem para dirigirem-se ao túmulo de Jesus.

Portanto, é impossível demonstrar que os Evangelhos referem explícita ou implicitamente dois Sábados. Um argumento que corrobora contra esta hipótese é o facto de que no clima palestino os cadáveres se decompunham rapidamente. Porque é que as mulheres haveriam de esperar desde a tarde de quarta-feira até a manhã de domingo para ungir o corpo de Jesus, quando poderiam ter realizado esta urgente tarefa na sexta-feira, a ser correta a hipótese dos dois sábados?

Conclusão

Considerando todos os factos e os dados bíblicos, creio que um estudo cuidadoso demonstra que não há contradição entre a cronologia dos Sinópticos e a de João. Por conseguinte, reafirmo a doutrina tradicional segundo a qual Jesus celebrou a Última Ceia como uma refeição pascal na noite de quinta-feira, foi julgado, crucificado e morto durante a sexta-feira, e ressuscitou ao terceiro dia, domingo.

Como o expressa Gleason L. Archer Jr., "Desta forma, resulta que houve um simples mal-entendido da frase paraskeuë tou pascha [preparação para a Páscoa] ... As várias explicações engenhosas oferecidas por outros, como a que Cristo celebrou a Sua Páscoa pessoal uma noite antes, sabendo que seria crucificado antes do pôr do sol de 14, ou a que Cristo e o Seu movimento aderiam a um calendário diferente, que reconhecia o 14 um dia antes de o calendário do sacerdócio oficial de Jerusalém; ou a que Ele seguia o calendário revisto que observavam os essénios de Qumran - todas estas teorias são bastante improváveis e completamente desnecessárias. Não há contradição alguma entre João e os Sinópticos em relação ao dia em que Jesus morreu - foi uma sexta-feira." (p. 376).

Fernando D. Saraví

Bibliografia

Archer, Gleason L., Jr. Encyclopedia of Biblical Difficulties. Grand Rapids: Zondervan, 1982.

Bromiley, Geoffrey W. (Dir.). International Standard Bible Encyclopedia, 2nd Ed. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1979-1988 [4 vol.].

Flavio Josefo. Antigüedades de los judíos. Terrassa: CLIE, 1988 [3 vol.].

Gaebelein, Frank E. (Dir.). Expositor's Bible Commentary; Grand Rapids: Zondervan, 1975-1992 [12 vol.].

Geisler, Norman; Howe, Thomas. When critics ask. A popular handbook on Bible difficulties. Wheaton: Victor Books, 1992.

Henry, Matthew. Commentary on the whole Bible. Peabody: Hendrickson, 1991 [edição completa num volume].

Jeremias, Joachim. La última cena: Palabras de Jesús. Madrid: Cristiandad, 1980 (especialmente p. 13- 88).

León-Dufour, Xavier. Los Evangelios y la historia de Jesús. Madrid: Cristiandad, 1982. (especialmente p. 349-358).

Saraví, Fernando D. La profecía de las setenta semanas. Terrassa: CLIE, 1992.

Vaux, Roland de. Instituciones del Antiguo Testamento. Barcelona, Herder, 1985.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Opiniões antigas e medievais sobre a autoridade papal dentro da igreja


"Dos textos petrinos, Mateus 16:18s é claramente central e tem a distinção de ser o primeiro texto escritural invocado para apoiar as pretensões de primazia dos bispos romanos. Antes de meados do século III, porém, e mesmo depois de tal data, alguns exegetas patrísticos ocidentais, como também orientais (antigos Padres da Igreja que na sua interpretação da Bíblia usaram técnicas críticas) entenderam que por "pedra" Cristo não se referia a Pedro mas a si mesmo ou à fé que Pedro professou. Não obstante, em finais do século IV e V houve uma crescente tendência por parte dos bispos romanos de justificar escrituralmente e de formular em termos teóricos a mal definida preeminência na igreja universal que havia por longo tempo sido adscrita à Igreja Romana e ao seu bispo. Assim, Dámaso I, apesar da existência de outras igrejas de fundação apostólica, começou a chamar a Roma "A sede apostólica". Pela mesma época as categorias da Lei Romana foram tomadas emprestadas para explicar e formular as prerrogativas do bispo romano. O processo de elaboração teórica alcançou o culminar nas opiniões de Leão I e Gelásio I, o primeiro entendendo-se a si mesmo não simplesmente como o sucessor de Pedro mas também o seu representante ou vigário. Ele era o 'indigno herdeiro' de Pedro, possuindo por analogia com a lei romana da herança os poderes plenos que o próprio Pedro tinha tido, que ele [Leão] interpretava como monárquicos, já que Pedro tinha sido investido com o 'principatus' sobre a igreja.

Num nível puramente teórico, não é grande a distância entre as pretensões apresentadas por Leão I e a posição incorporada no decreto de primazia do Vaticano I. Os papas medievais, tais como Gregório VII, Inocêncio III e Inocêncio IV, deixaram claro pela sua prática, bem como pelas suas declarações teóricas o significado preciso de tal plenitude de poder ('plenitudo potestatis') sobre a igreja à qual, segundo alguns eruditos, havia aspirado o próprio Leão I. Nisto foram auxiliados não somente pelos esforços de publicitários como o teólogo e filósofo italiano Aegidius Romanus (m. 1316), que magnificou os poderes monárquicos do papa em termos irrestritos e seculares, mas também pelo desenvolvimento massivo desde finais do século XI, XII e XIII de uma lei canónica altamente romanizada. O 'Decretum' de Graciano (c. 1140), a coleção não oficial de cânones que se tornou o livro de texto fundamental para o estudante medieval de direito canónico, punha grande ênfase na primazia da sede romana, aceitando como genuínos certos cânones que eram obra de falsificadores dos séculos VIII e IX – como dois princípios que o Código de Direito Canónico de 1917 reafirma: «que não pode haver um concílio ecuménico que não seja convocado pelo Romano Pontífice» e que «ninguém pode julgar a Primeira Sede».

A prevalência de tais ideias e a ausência de um desafio formidável às pretensões papais de primazia durante a alta Idade Média explica a ausência de alguma definição conciliar da primazia romana nos grandes concílios gerais 'papais' desse período. Daí que se requereu a (frustrada) tentativa de reunião com a Igreja Ortodoxa no Concílio de Florença em 1439 para induzir a primeira definição conciliar solene da primazia romana. Esta definição foi incluída no decreto de união com os gregos (Laetentur Coeli), e dizia quanto se segue:

«Definimos que a Santa Sede Apostólica e o Romano Pontífice têm a primazia sobre todo o mundo, que o próprio Romano Pontífice é o sucessor de Pedro, príncipe dos Apóstolos, que ele é o verdadeiro vigário de Cristo, cabeça de toda a igreja, pai e mestre de todos os cristãos, e [definimos] que a ele na pessoa de Pedro foi dado por nosso Senhor Jesus Cristo o poder pleno de nutrir, reger e governar a igreja universal; como também está contido nas atas dos concílios ecuménicos e nos santos cânones.»"

Encyclopaedia Britannica, s.v. The Papacy

Acrescenta o autor que este decreto formou a base para a definição promulgada pelo Concílio Vaticano I de 1870 na Constituição Dogmática "Pastor Aeternus".

Em suma, a primazia papal baseou-se em interpretações duvidosas, na ânsia de poder dos bispos romanos, na lei romana pré-cristã (pagã), na ação de propagandistas e em documentos forjados.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Nós não adoramos mas veneramos? A diferença entre dulia e latria


Quando se faz notar a um católico que só se deve prestar culto a Deus, é frequente ouvi-lo repetir que eles não adoram os santos e os anjos mas apenas os veneram (culto de Dulia, não Latria) e que a Maria dão uma superior veneração (culto de Hiperdulia).

Esta é uma distinção artificial carente de fundamento bíblico que muitos católicos, instruídos pelo seu Magistério, costumam fazer para justificar o culto a diversas entidades diferentes de Deus.

No Novo Testamento, para a adoração usa-se o verbo grego proskyneö ou o substantivo proskynëtës (adoradores, João 4:23).

A palavra "latria" deriva do verbo grego latreuo, servir (do qual deriva latreia, culto ou serviço, João 16:2). A palavra "dulia", por sua vez, provém do grego doulos, servo ou escravo. Assim, a latria consiste em prestar culto e a dulia em escravizar-se a alguém. No entanto, em nenhuma parte da Bíblia é ensinado que devemos escravizar-nos aos santos defuntos, aos anjos ou a alguma outra criatura. Paulo, Tiago, Pedro e Judas se declararam "servos de Jesus Cristo", não de algum santo defunto (clarifico isto porque o chamado a ser servos uns dos outros aqui na terra é um ensino neotestamentário; mas não se trata aqui de culto).

Portanto crendo na Igreja de Roma, os seus fiéis "servem" a Deus e são "escravos" dos santos e "superescravos" de Maria (já que ela recebe "hiperdulia"). Se realmente existe diferença, eu diria que é em favor de Maria e dos santos.


Adenda: Católico abre os olhos e reconhece idolatria na Igreja Romana. Ver Aqui. 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Sobre o Sacramento da Confissão


"Na Sagrada Escritura não se expressa directamente a instituição divina da confissão particular dos pecados e a sua necessidade para conseguir a salvação, mas estas verdades se deduzem do facto de Cristo ter instituído o poder para perdoar pecados dando-lhe forma judicial...

As passagens de 1 Ioh (Jo) 1,9; Iac (Tg) 5,16; Act 19,18, que nos falam da confissão de pecados, não deixam ver com clareza se se trata efectivamente de uma confissão sacramental; há razões poderosas que parecem advogar contra".

(Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática. Edición Rev. Barcelona: Herder, 1969, p. 633, negrito acrescentado)

A confissão auricular foi normatizada pelo IV Concílio de Latrão, tido por XII ecuménico pela Igreja de Roma, onde foi estabelecido a obrigatoriedade de confessar-se e comungar pelo menos uma vez ao ano, com a seguinte sanção para os transgressores:

do contrário, durante a vida, deve se lhe proibir o acesso à Igreja e, ao morrer, privá-lo de cristã sepultura.

Denzinger # 437

Como tantas outras falsas doutrinas, a confissão sacramental é de origem medieval. Antes desta época era recomendado com frequência, pelo menos desde Orígenes, a confissão privada, mas não como sacramento de observância obrigatória nem para que o sacerdote declarasse a absolvição.

O que a Igreja antiga ensinou é a prática usual de muitas igrejas evangélicas. É parte normal da tarefa de um pastor ouvir irmãos que sentem a necessidade de confessar privadamente faltas graves (na verdade, para evitar escândalos pode admitir-se uma confissão pública apenas se previamente se tiver a autorização do presbitério). Isto permite, além de uma catarse, a adequada orientação pastoral.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Resposta a “A Bíblia ou a Tradição?” de Catholic Answers [1]


Por Catholic Answers

Os reformadores protestantes diziam que a Bíblia era a única fonte das verdades da fé e que, para entender sua mensagem, dever-se-ia tão somente ler as palavras do texto. É o que se chama de "teoria protestante da sola scriptura" ou, em português, "somente a Bíblia". Segundo esta teoria, nenhuma autoridade fora da Bíblia pode impor uma interpretação e nenhuma instituição extrabíblica - por exemplo, a Igreja - foi estabelecida por Jesus Cristo para fazer as vezes de árbitra em caso de conflitos de interpretação.

Os apologistas católicos, por ignorância culposa ou dolosa, costumam caricaturar a doutrina de Sola Scriptura ao seu gosto. Eis aqui algumas amostras do que os Reformadores verdadeiramente afirmaram; podem ver-se muitas mais em Philip Schaff, The Creeds of Christendom. With a history and critical notes. Vol. 3: The Evangelical Protestant Creeds, 6th Ed. Grand Rapids: Baker Books, 1983 (original 1931).

Citação:

Cremos, confessamos e ensinamos que a única regra e norma, de acordo com a qual todos os dogmas e todos os doutores devem ser estimados e julgados, não é outra senão os escritos proféticos e apostólicos tanto do Antigo como do Novo Testamento ...

Mas outros escritos, seja dos padres ou dos modernos, com qualquer que seja o nome que se apresentem, não devem ser de modo algum igualados às Sagradas Escrituras, mas devem ser estimados como inferiores a elas, de forma que não sejam recebidos de outro modo senão na categoria de testemunhas, para mostrar que doutrina se ensinou também depois do tempo dos Apóstolos, e em que partes do mundo a mais íntegra doutrina dos Profetas e Apóstolos foi preservada.

II. E na medida em que imediatamente depois do tempo dos Apóstolos, inclusive até enquanto eles ainda estavam vivos, surgiram falsos mestres e hereges, contra os quais na Igreja primitiva se compuseram símbolos, ou seja, confissões breves e explícitas, que continham o consentimento unânime da fé Católica Cristã, e a confissão da ortodoxa e verdadeira Igreja (como o são os Credos dos Apóstolos, Niceno e de Atanásio): publicamente professamos que os abraçamos, e rejeitamos todas as heresias e todos os dogmas que alguma vez se trouxeram à Igreja que sejam contrários às suas decisões.

Fórmula da Concórdia, 1576, 1584

A Sagrada Escritura contém todas as coisas necessárias para a salvação: assim que qualquer coisa que aí não se leia, nem possa provar-se por ela, não deve ser exigido a nenhum homem que seja crido como um artigo de fé, ou considerado um requisito ou necessidade para a salvação.

A Igreja tem poder para decretar ritos ou cerimónias, e autoridade nas controvérsias de fé; e não obstante não é lícito que a Igreja ordene alguma coisa que seja contrário à Palavra escrita de Deus, nem pode expor uma parte da Escritura de tal forma que seja contrária a outra. Portanto, ainda que a Igreja seja uma testemunha e uma guardadora da sagrada Escritura, ainda assim, do mesmo modo em que não deve decretar nada contra esta, também não deve fora dela impor nada para ser crido como necessário para a salvação.

Artigos VI e XX dos 39 Artigos Anglicanos

Os Reformadores cunharam o lema sola Scriptura, só a Escritura. Que significa isto? Não significa que não devamos usar nada mais do que a Bíblia – que não há lugar para dicionários de teologia e coisas semelhantes. Não significa que devamos aprender a doutrina cristã somente de maneira directa da Bíblia, o que tornaria redundantes os sermões e outros livros. Não significa sequer que não devamos reconhecer outra autoridade senão a Bíblia no nosso cristianismo. A tradição e a igreja inevitavelmente funcionam como autoridades em algum sentido. Porém, a Bíblia permanece como a autoridade decisiva e final, a norma pela qual todo o ensino da tradição e da igreja deve ser julgado.

New Dictionary of Theology, Ed. Sinclair B. Ferguson, David F. Wright, James I. Packer. Grand Rapids: Zondervan, 1988, p. 633.

Por herança e convicção eu mesmo sou um biblicista; teológica tanto como academicamente sou homo unius libri. Uma das funções de normas subordinadas reconhecidas, como a Confissão de Fé de Westminster e os Catecismos Maior e Menor na tradição presbiteriana, é a de fornecer orientações para a interpretação e aplicação da Escritura. Onde as normas subordinadas não são reconhecidas, não significa que não existam tais orientações: é muito provável que se estabeleçam orientações e mesmo cânones mais precisos, mas porque tomam a forma de tradição não escrita, a sua verdadeira natureza pode passar despercebida.

Sola Scriptura, na frase luterana, denota a Escritura como o principium cognoscendi, a fonte primária do conhecimento teológico. A apelação de Lutero só à Escritura como a norma pela qual os concílios, a lei canónica e todas as outras formas de tradição eclesiástica devem ser provadas foi determinado como resultado da sua confrontação com Johann Meier von Eck na disputa de Leipzig de 1519 e achou expressão histórica na Dieta de Worms dois anos mais tarde... "A marca distintiva da Reforma e dos seus discípulos", diz um teólogo luterano moderno, "é a partícula exclusiva, a palavra «sola» ... Concretamente expresso, a relação entre a comunidade e a Palavra de Deus não é reversível; não há um processo dialéctico pelo qual a comunidade criada pela Palavra se torne ao mesmo tempo uma autoridade disposta sobre a Palavra para interpretá-la, para administrá-la, para possuí-la... Pois a comunidade permanece como serva da Palavra." (E. Kasëmann, New Testament Questions for Today, ET, London, 1969, p.. 261s).

F.F. Bruce, Tradition Old and New. The Paternoster Press, 1970, p. 13-14.

Como bons herdeiros dos reformadores, as seitas fundamentalistas trabalham sobre a base desta teoria e não perdem oportunidade para demonstrar seu princípio que, por outro lado, pareceria ser sua arma mais poderosa, algo que eles aceitam como o fundamento indiscutível dos seus pontos de vista.

Contudo, não existe coisa mais difícil no diálogo com os fundamentalistas que fazê-los provar o porquê crêem no princípio do "somente a Bíblia", separada de qualquer outra fonte de autoridade, e que esta (a Bíblia) seja suficiente nas questões de fé. A questão se resume em saber qual o motivo que faz um fundamentalista crer que a Bíblia seja um livro inspirado, já que é óbvio que ela pode tornar-se regra de fé apenas no caso de se comprovar sua inspiração e, também, sua inerrância.

Sem dúvida que há pessoas que, ignorantes da história, não tomaram em consideração o problema que aqui se expõe. Mas é mentiroso e descarado caracterizá-los como "bons herdeiros dos reformadores".

Claro que essa questão não preocupa por demais a maioria dos cristãos e, certamente, são poucos os que tenham se atentado para isto alguma vez. Em geral, se crê na Bíblia porque é o livro aceito por todos os cristãos, cuja autoridade não se discute, eis que ainda vivemos em tempos em que os princípios cristãos têm influência na cultura e no modo de vida da maioria das pessoas.

Certamente isso pouco importa à maioria dos católicos, coisa que os autores não parecem valorizar adequadamente; parece que lhes encaixa na perfeição a parábola acerca do cisco no olho alheio...

Um cristão humilde, que não daria a mínima credibilidade para o Alcorão, pensaria duas vezes antes de falar mal da Bíblia, já que esta goza de certo prestígio, mesmo quando não pudesse explicá-la ou entendê-la bem. Poderia dizer-se que essa pessoa aceita a Bíblia como inspirada - qualquer que seja seu entendimento quanto à inspiração - por razões de tipo cultural, razões que, sem dúvida, são de escasso ou nenhum valor, já que pelas mesmas razões o Alcorão é tido por inspirado em países de cultura muçulmana.

Com certeza que assim é tido o Alcorão nos citados países, e com força de lei. Quanto à Bíblia, é lamentável que muitos cristãos creiam na inspiração da Bíblia (no caso de entenderem o que é inspiração em sentido teológico em primeiro lugar) somente por razões culturais; como por outro lado outras pessoas rejeitam a Bíblia sem tê-la examinado apropriadamente por razões igualmente culturais.

"PARA MIM, É MOTIVO SUFICIENTE"

Diga-se o mesmo perante quem sustenta que a família pela qual veio ao mundo sempre considerou a Bíblia como livro inspirado e "para mim, isso basta". Seria um bom motivo somente para aquele que não pode fazer um trabalho de reflexão sério (e não devemos nunca desprezar uma fé simples, sustentada sobre fundamentos bem mais débeis). Porém, seja como for, o mero costume familiar ou local não pode estabelecer-se como base para a crença na inspiração divina da Sagrada Escritura.

Bom, de acordo; do mesmo modo em que o "mero costume familiar ou local" também não pode estabelecer-se como base para a crença que uma determinada instituição é a autêntica e legítima Igreja de Jesus Cristo. No entanto, isto é precisamente o que faz a esmagadora maioria dos católicos.

Alguns sectários dizem que a Bíblia é um livro inspirado porque "é um livro que inspira". Porém, a palavra "inspiração" é precisamente o que se quer provar e observemos que há muitos escritos religiosos antigos que certamente são muito mais "inspirativos" ou "emotivos" do que muitos textos e até livros inteiros do Antigo Testamento. Não é falta de respeito afirmar que certas passagens dos escritos sagrados são tão secos quanto as estatísticas militares... e algumas partes da Bíblia (Antigo Testamento) são compostas realmente por isso: estatísticas militares!

Uma coisa chocante deste escrito é a vaguidade de muitas das suas afirmações. "Alguns sectários"? Não poderia precisar um pouco mais? Eu nunca me encontrei com os tais.

Por isso, concluímos que não é suficiente crer na Sagrada Escritura por motivos culturais ou de costume, nem tampouco por seus textos emotivos ou sua beleza espiritual: há outros livros, alguns totalmente mundanos, que ultrapassam em beleza poética muitas passagens da Escritura.

A menos que estas declarações se baseiem em declarações do Magistério romano que desconheço, parece-me simplesmente fruto do sentido estético do autor, o que é completamente irrelevante na presente discussão.

QUE DIZ A BÍBLIA DE SI MESMA?

E que dizer do que a própria Bíblia ensina sobre sua inspiração? Notemos que são muito poucas as passagens onde a própria Bíblia ensina sua inspiração - mesmo que de modo indireto - e a maioria dos livros do Antigo e do Novo Testamento não dizem absolutamente nada sobre sua particular inspiração. De fato, nenhum autor dos livros do Novo Testamento diz estar escrevendo sob o impulso do Espírito Santo, exceto São João, ao escrever o Apocalipse.

Ao precisar "do Novo Testamento" o autor pretende salvaguardar a sua veracidade, mas mente por omissão, já que deve saber que no Antigo Testamento são inumeráveis as vezes, sobretudo nos profetas, em que o autor humano tem consciência de estar a falar da parte de Deus. No Novo Testamento este facto é ensinado claramente em 1 Pedro 1:10-12 (ver também Actos 1:16; Hebreus 1:1-3; 2 Pedro 1:21).

Mas, para sua desgraça, também falha por comissão. Vejamos as seguintes passagens:

Romanos 9:1-2
Digo a verdade em Cristo, não minto, dando-me testemunho a minha consciência no Espírito Santo, de que tenho grande tristeza e contínua dor no meu coração.

1 Coríntios 2:10-16
No entanto, falamos sabedoria entre os que alcançaram maturidade; mas uma sabedoria não deste século, nem dos governantes deste século, que vão desaparecendo, mas falamos sabedoria de Deus em mistério, a sabedoria oculta que, desde antes dos séculos, Deus predestinou para nossa glória; a sabedoria que nenhum dos governantes deste século entendeu, porque se a tivessem entendido não teriam crucificado o Senhor da glória; mas como está escrito:
COISAS QUE OLHO NÃO VIU, NEM OUVIDO OUVIU,
NEM ENTRARAM NO CORAÇÃO DO HOMEM,
SÃO AS COISAS QUE DEUS PREPAROU PARA OS QUE O AMAM.
Mas Deus no-las revelou por meio do Espírito, porque o Espírito esquadrinha todas as coisas, mesmo as profundezas de Deus. Porque entre os homens, quem conhece os pensamentos de um homem, senão o espírito do homem que está nele? Assim também, ninguém conhece os pensamentos de Deus, senão o Espírito de Deus. E nós recebemos, não o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que Deus nos deu gratuitamente, do qual também falamos, não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com as ensinadas pelo Espírito, combinando pensamentos espirituais com palavras espirituais. Mas o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não as pode entender, porque se discernem espiritualmente. Porém, o que é espiritual julga todas as coisas; mas ele não é julgado por ninguém. Porque QUEM CONHECEU A MENTE DO SENHOR, PARA QUE O INSTRUA? Mas nós temos a mente de Cristo.

1 Pedro 1:12
A eles foi revelado que não se serviam a si mesmos, mas a vós, nestas coisas que agora vos foram anunciadas mediante os que vos pregaram o evangelho pelo Espírito Santo enviado do céu; coisas para as quais os anjos desejam atentar.

Os autores do Novo Testamento não tinham menos consciência de estar a falar da parte de Deus e mediante o seu Espírito que os do Antigo. Pensar o contrário é conceber a Revelação funcionando "em marcha atrás".

Ademais, ainda que cada livro da Bíblia começasse com a frase: "Este livro é inspirado por Deus", semelhante frase não provaria nada: o Alcorão diz ser inspirado, assim como o Livro do Mórmon e vários livros de algumas religiões orientais. Mais: os livros de Mary Baker Eddy (a fundadora da Ciência Cristã) e de Ellen G. White (fundadora do Adventismo do Sétimo Dia) se auto-proclamam inspirados. Pode-se concluir - com grande senso comum - que o fato de um escrito atribuir a si qualidades de inspiração divina não quer dizer que assim o seja na realidade.

Como terá podido perceber o leitor, que os autores sagrados tinham consciência de falar da parte de Deus não é uma suposição.

De resto, admito livremente como coisa óbvia e verdade de La Palice que nem todo o escrito que se declare a si mesmo inspirado o é na realidade.

Ao dizer estes argumentos, muitos fundamentalistas recuam e nos afirmam que "o Espírito Santo me diz claramente que a Bíblia é inspirada", uma noção bastante subjetiva - para se dizer o mínimo - muito semelhante com aquela outra, tão comum entre os sectários, de que "o Espírito Santo os guia para interpretar as Escrituras". É, assim, que o autor anônimo do artigo "Como posso compreender a Bíblia?", um folheto distribuído pela organização evangélica "Radio Bible Class", apresenta doze regras para o estudo da Bíblia. A primeira é: "Busca a ajuda do Espírito Santo. O Espírito Santo foi dado para iluminar as Escrituras e fazê-las reviver para ti quando a estudas; deixa Ele te guiar".

Até que enfim uma citação mais ou menos precisa! É uma pena que o nosso entusiasta apologista tenha omitido as outras onze regras para compreender a Bíblia.

Por outro lado, a primeira é a mais importante e é altamente estranho que considere digno de discussão. O próprio Senhor ensinou que o Espírito nos guiaria a toda a verdade, e a mesma coisa foi reiterada por Paulo (ver o texto de 1 Coríntios 2 reproduzido acima), por João (1 João 2:20-28; 4:1-3, etc), por Judas (19-21).

Além disso, a própria doutrina católica ensina exactamente o mesmo, embora o restrinja particularmente ao seu Magistério, o qual "por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente" (Catecismo da Igreja Católica # 86, citando a Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II; e poderiam aduzir-se muitos outros documentos).

Se com esta regra se entende que qualquer pessoa que pedir a Deus para o guiar na interpretação da Bíblia receberá essa condução do alto - e neste sentido entendem a maioria dos fundamentalistas - então o imenso número de interpretações contrárias e contraditórias, mesmo entre os próprios fundamentalistas, nos apresentaria a preocupante sensação de que o Espírito Santo não tem trabalhado direito...

De novo o recurso à vaguidade! Se os protestantes em conjunto cressem na caricatura que aqui é apresentada, os livros protestantes de hermenêutica (Terry, Fairbairn, Berkhof, Ramm, Martínez e outros), como os Léxicos, Dicionários e Enciclopédias Bíblicas protestantes não teriam razão de existir. Mas existem e em grande número.

Além disso, até o folheto que cita de passagem este católico tem outras onze regras básicas que ele omite para poder sustentar a sua mal amanhada retórica.

NÃO COM SILOGISMOS

Grande parte dos fundamentalistas não dizem diretamente que o Espírito Santo lhes falou, assegurando-lhes que a Bíblia é um livro inspirado. Ao menos, não falam desse modo. Melhor, agem assim: ao ler a Bíblia, o Espírito "os convence" que essa é a Palavra de Deus, recebem certa sensação interior de que é uma palavra divina e ponto.

De qualquer modo que se veja, a postura fundamentalista não resiste a um raciocínio sério. Conta-se nos dedos de uma mão os fundamentalistas que num primeiro momento se aproximaram da Bíblia como um livro "neutro" e, após sua leitura,  a reconheceram como inspirado, segundo um raciocínio lógico. De fato, os fundamentalistas começam pressupondo o fato da inspiração - tal como recebem outras doutrinas das suas seitas - sem raciocinar sobre elas e, então, encontram partes da Sagrada Escritura que parecem fundamentar a inspiração, caindo assim num círculo vicioso, confirmando com a Bíblia o que eles já acreditavam de antemão.

Sinceramente, não sei de ninguém (pelo menos nos tempos modernos) que possa presumir estar livre de preconceitos ao aproximar-se da Bíblia. Certamente não os supostos "Fundamentalistas" nem os católicos (em caso de lhes dar para ler a Bíblia, coisa relativamente pouco frequente), e nem sequer os agnósticos.

O facto é que os cristãos de todos os tempos reconheceram algo que no seu zelo por desprestigiar os seus fantasmagóricos "fundamentalistas", o nosso autor esquece. E este algo é que a Revelação é sobrenatural e, embora não seja contrária à razão, a ultrapassa amplamente. Em outras palavras, sem o testemunho do Espírito Santo ao nosso espírito, ninguém pode chamar cabalmente a Jesus "Senhor" nem reconhecer quem inspirou as Escrituras.

A pessoa que quer refletir seriamente sobre o tema se defraudará com a posição fundamentalista da inspiração bíblica, percebendo que esta não possui uma base sólida para manter tal teoria.

Se parte de uma base meramente racionalista, com muita probabilidade não encontrará base suficiente. É o que ocorre quando se quer medir o sobrenatural com um instrumento natural. Contra isto se expressou com bastante clareza o mesmo Magistério ao qual supostamente o nosso autor adere; e no entanto é capaz de contradizer os ensinamentos históricos da sua própria Igreja num esforço inútil para provar supostos erros alheios.

A posição católica é a única que, no final, pode dar uma resposta intelectualmente satisfatória.

Isto ameaça pôr-se interessante.

A maneira católica de raciocinar, para demonstrar que a Bíblia é inspirada, é a seguinte: em um primeiro passo, consideramos a Bíblia como qualquer outro livro histórico, sem presumir que seja inspirado. Estudando o texto bíblico com os instrumentos da ciência moderna, chegamos à conclusão de que se trata de uma obra confiável, de grande precisão histórica, sendo que referida precisão ultrapassa em muito a de qualquer outro texto histórico.

Não é verdade do ponto de vista histórico que esta seja "a maneira católica de raciocinar". O Concílio de Trento estabeleceu claramente que a Igreja reconhece a inspiração do Espírito Santo nas Escrituras canónicas. O fundamento histórico deste reconhecimento é a autoridade que a própria Igreja de Roma se arroga como custódia e intérprete das Escrituras.

Por outro lado, embora alguns apologistas católicos adoptem o enfoque que aqui é proclamado, na verdade não possuem a exclusividade, uma vez que os evangélicos realizaram um trabalho notável ao compilar evidências históricas que não demonstram de maneira concludente a verdade da fé cristã mas demonstram que existem sólidas evidências da fidelidade histórica das Escrituras; ver mais abaixo.

UM TEXTO PRECISO

Frederic Kenyon, em "A História da Bíblia", faz notar o seguinte: "Para todas as obras da antigüidade clássica, nos vemos obrigados a nos socorrer de manuscritos redigidos muito depois do original. O autor que leva vantagem neste sentido é Virgílio, visto que o manuscrito mais antigo que dele possuímos foi escrito 350 anos depois da sua morte. Para todas as demais obras clássicas, o intervalo que existe entre a data do escrito original e a do manuscrito mais antigo que dele se conserva é muito maior: para Lívio, é de uns 500 anos; para Horácio, 900; para a maioria das obras de Platão, 1300; para Eurípedes, 1600". Mesmo assim, ninguém pode seriamente duvidar de que realmente possuímos cópias fiéis das obras desses autores.

Não somente possuímos manuscritos bíblicos mais próximos aos originais que os da antigüidade clássica, como também possuímos um número muito maior que aqueles. Alguns destes manuscritos são livros inteiros; outros são fragmentos; outros, tão somente algumas palavras; mas todos eles juntos somam milhares de manuscritos em hebraico, grego, latim, copta, siríaco e outras línguas. Tudo isso significa que possuímos um texto rigorosamente fiel, que pode ser usado com toda confiança.

Que alguém me corrija se estiver enganado, mas parece-me que Sir Frederic Kenyon (1863-1952), Director desde 1909 do Museu Britânico, pertencia à Igreja Anglicana.

Outros autores não católicos que compilaram evidência são, por exemplo:

F.F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento?
George E. Wright, Arqueologia Bíblica
E.W. Yamauchi, The Stones and The Scriptures
G. Báez-Camargo, Comentario arqueológico de la Biblia
Josh McDowell, Evidência que exige um veredicto e A ready defense
Paul Little, Know why you believe
J. Vardaman, Archaeology and the Living Word
Philip W. Comfort (Ed.), The origin of the Bible
William Lane Craig, Reasonable faith

Portanto, difícilmente podem os católicos arrogar-se a liderança neste assunto.

TOMADO HISTORICAMENTE

Em um segundo momento, dirigimos nossa atenção para o que a Bíblia - considerada somente como um livro histórico - nos ensina, particularmente no Novo Testamento e nos Evangelhos. Examinemos o relato da vida de Jesus, sua morte e sua ressurreição.

Usando o que nos transmitem os Evangelhos, o que lemos em outros escritos extrabíblicos dos primeiros séculos e o que nos ensina nossa própria natureza - e o que de Deus podemos conhecer pela luz da razão - concluímos que Jesus ou era o que dizia ser (Deus) ou era louco. (Sabemos que não pode ter sido apenas um bom homem e ao mesmo tempo não ser Deus,  já que nenhum bom homem poderia atribuir para si a divindade se realmente não fosse Deus).

Também podemos negar que era um louco, não apenas pelo que disse e ensinou - nenhum louco jamais falou como ele, da mesma forma que nenhum homem sábio tampouco já tenha falado assim... - mas ainda pelo que seus discípulos fizeram após a sua morte. Uma fraude (o túmulo supostamente vazio) poderia ter ocorrido, mas ninguém daria a vida por uma fraude, ao menos por uma fraude sem perspectiva de proveito. Logo, devemos afirmar que Jesus verdadeiramente ressuscitou e, portanto, era Deus como dizia ser e cumpriu o que prometeu fazer.

É curioso que se use um argumento que se a memória não me falha provém de C.S. Lewis, outro anglicano. Também é desenvolvido por Josh McDowell em Evidência que exige um veredicto. De novo, estes argumentos não são "a posição católica", pelo menos não historicamente nem em exclusivo.

Outros autores que tratam acerca da natureza histórica de Jesus são:

I.Howard Marshall, I believe in the historical Jesus
Lee Strobel, The case for Christ
Gary R. Habermas, The historical Jesus

Outra coisa que Ele disse que faria seria fundar a sua Igreja; e tanto a Bíblia (ainda que tomada como simples livro histórico e não como livro inspirado por Deus) como outras fontes históricas antigas nos fazem saber que Cristo estabeleceu uma Igreja com as características que vemos hoje na Igreja Católica: papado, hierarquia, sacerdócio, sacramentos, autoridade para ensinar e, como conseqüência desta última, infalibilidade. A Igreja de Cristo deveria gozar da infalibilidade de ensinamento se fosse cumprir aquilo para o qual Cristo a fundou.

ah! ah! ah!

Ou seja, a Igreja de Roma em pleno... assim tal e qual de uma assentada. Por favor!

Que a Igreja "deveria gozar da infalibilidade" é uma petição de princípio que supõe demonstrado precisamente o que se discute. É intelectualmente desonesto saltar da evidência histórica da fé cristã para a instituição vaticana sem escalas.

Tomando material meramente histórico, concluímos que existe uma Igreja - a Igreja Católica - protegida pelo Espírito Santo para que possa ensinar, sem erro, até o fim dos tempos. Vejamos agora a última parte do argumento.

Essa Igreja nos diz que a Bíblia é inspirada e podemos confiar em seu ensino porque se trata de um ensinamento autorizado, infalível. Só após sermos ensinados por uma autoridade propriamente constituída por Deus para nos transmitir as verdades necessárias para a nossa fé - tal como a inspiração da Bíblia - só então é que podemos usar as Escrituras como um livro inspirado.

Mas, como indiquei antes, o católico deve aceitar a autoridade da Bíblia porque a instituição a que pertence o afirma. Contudo, até o próprio Magistério romano ensina que a Igreja recebe as Escrituras porque foram inspiradas pelo Espírito Santo, não porque as tenha submetido a escrutínio exaustivo.

UM ARGUMENTO EM ESPIRAL

Há que se notar que o nosso argumento não cai em um círculo vicioso: não estamos baseando a inspiração da Bíblia na infalibilidade da Igreja e a infalibilidade da Igreja na palavra inspirada da Bíblia; isso seria precisamente um círculo vicioso. O que temos feito se chama "argumento em espiral": por um lado, argumentamos sobre a confiabilidade da Bíblia como texto meramente histórico; dali sabemos que Jesus fundou uma Igreja infalível e só então tomamos a palavra dessa Igreja infalível que nos ensina que a Palavra transmitida pela Bíblia é uma Palavra inspirada, Palavra de Deus. Não se trata de um círculo vicioso, já que a conclusão final (a Bíblia é a Palavra de Deus) não é o enunciado do qual partimos (a Bíblia é um livro historicamente confiável), e este enunciado inicial não está baseado, em absoluto, na conclusão final. O que demonstramos é que, se excluirmos a Igreja, não teremos suficientes motivos para afirmar que a Bíblia é a Palavra de Deus.

A Igreja dá testemunho das Escrituras; não lhes outorga, nem poderia outorgar-lhes, alguma autoridade que não possuam intrinsecamente.

É verdade que a Bíblia é um "livro" historicamente confiável. Também é verdade que é inspirado por Deus. A primeira coisa pode avaliar-se mediante a razão, mas a segunda a excede. Em todo o caso, estas comprovações de modo algum avalizam as pretensões da instituição vaticana.

É certo que o que acabamos de discutir não é precisamente o raciocínio que a gente habitualmente faz ao se aproximar da Bíblia, mas é a única maneira razoável de fazê-lo na hora em que se nos perguntam por que cremos na Bíblia. Qualquer outro raciocínio é insuficiente; talvez haja argumentos mais próximos da gente sob o ponto de vista psicológico, porém, são estritamente argumentos não convincentes. Na matemática aceitamos "por fé" (não no sentido teológico do termo, é claro) que dois mais dois é igual a quatro. É uma verdade que nos parece evidente e satisfatória sem maiores argumentos, mas para quem quiser fazer um curso de matemática, deverá estudar um semestre inteiro visando provar essa verdade tão "óbvia".

Nenhum argumento convencerá quem não quer crer. Uma pessoa pode inclusive admitir a exactidão histórica da Bíblia, sem por isso considerá-la inspirada. O nosso polémico autor insiste numa linha racionalista que foi censurada inclusive pelo seu próprio Magistério.

RAZÕES INADEQUADAS

A questão aqui é a seguinte: os fundamentalistas têm muita razão em crer que a Bíblia é um livro inspirado por Deus, no entanto, suas razões para crer são inadequadas, insuficientes, já que a aceitação da inspiração divina das Escrituras pode se basear satisfatoriamente apenas numa autoridade estabelecida por Deus que nos assegure isso; e essa autoridade é a Igreja.

Asseveração falsa, como pode ver-se do que antecede. Se os argumentos históricos provassem a inspiração da Bíblia, o testemunho da Igreja como comunidade de fé seria desnecessário. Para além disso, repito que a Igreja não pode conceder autoridade à Palavra de Deus; esta a tem por sua origem e natureza.

E precisamente aqui encontramos um problema mais sério: pode parecer a alguém que mesmo que eu creia na Bíblia como Palavra de Deus, pouco importa o motivo dessa minha crença; o importante seria aceitar a Bíblia como a Palavra de Deus. Porém, o motivo pelo qual uma pessoa crê na Bíblia afeta substancialmente a maneira de interpretar a Bíblia. O fiel católico crê na Bíblia porque a Igreja assim o ensina e essa mesma Igreja tem a autoridade de interpretar o texto inspirado. Os fundamentalistas, por sua vez, crêem na Bíblia - mesmo baseados em argumentos pouco convincentes - porém, não aceitam nenhuma outra autoridade para interpretar o texto bíblico a não ser os seus próprios pontos de vista.

É claro que afecta a interpretação; o católico está obrigado a aceitar sem mais a interpretação que lhe impõe o seu Magistério (nos escassos textos que foram objecto de uma interpretação oficial), por mais que vá contra uma sã exegese.

Aqui é feito um enredo de argumentos, que sendo sério não é menos divertido. Começou por uma linha racionalista e a dado momento introduziu em bloco a Igreja de Roma. De novo, se a Bíblia é a Palavra de Deus, o é com o consentimento da instituição vaticana e também sem ele.

O cardeal Newman expressava isso em 1884, da seguinte maneira: "Certamente que se as revelações e ensinamentos bíblicos do texto sagrado se dirigem a nós de uma maneira pessoal e prática, se faz obrigatória a presença formal, no meio de nós, de um juiz e expositor autorizado dessas revelações e ensinamentos. É antecedentemente irracional supor que um livro tão complexo, tão pouco sistemático, em partes tão obscuro, fruto de várias mentes tão distintas, lugares e épocas diferentes, fosse nos dado do alto sem uma autoridade interpretativa do mesmo, já que não podemos esperar que interprete a si mesmo.

O nosso autor deveria esclarecer quem foi o Cardenal Newman e como abandonou a Igreja Anglicana para abraçar a doutrina romanista.

Newman engana-se ao dizer que não podemos esperar que a Bíblia se interprete a si mesma. Na verdade pode compreender-se muito dela partindo da analogia da fé: a Bíblia não se contradiz e as passagens mais claras esclarecem as mais difíceis. A profecia se compreende à luz do seu cumprimento, os tipos pelos respectivos anti-tipos, etc.

Além disso, o argumento não se baseia nos textos escriturais, mas em suposições acerca da clareza da Escritura seguidas de conjecturas acerca de como solucionar o assunto. Contudo, a própria Bíblia não sugere a conveniência, a possibilidade, nem a necessidade, de algum intérprete infalível.

O fato de que seja um livro inspirado nos assegura a verdade do seu conteúdo, não a interpretação do mesmo. Como pode o simples leitor distinguir o que é didático e o que é histórico, o que é fato real e o que é uma visão, o que é alegórico e o que é literal, o que é um recurso idiomático e o que é gramatical, o que se enuncia formalmente e o que ocorre de passagem, quais são as obrigações que vigoram sempre e quais vigoram em certas circunstâncias? Os três últimos séculos têm provado, infelizmente, que em muitos países tem prevalecido a interpretação particular das Escrituras. O dom da inspiração divina das Escrituras requer como complemento obrigatório o dom da infalibilidade da sua interpretação".

Bom, esta é a opinião de dom John Henry Newman, cardeal da Igreja de Roma. Pelo menos duas objecções surgem de imediato, além do facto de a própria Escritura não prever intérpretes humanos infalíveis; a primeira é teórica e a segunda prática:

1. Mesmo se houvesse tal coisa, as explicações do suposto intérprete infalível não solucionam o problema, pois ditas explicações devem ser recebidas por fiéis reconhecidamente falíveis, entre os quais não só se contam as pessoas simples, mas também os teólogos, professores, presbíteros e inclusive os bispos individuais. De modo que, longe de solucionar o problema, intercalar um "intérprete infalível" simplesmente o pospõe.

2. É um facto plenamente comprovável a partir da história do cristianismo que a vasta maioria dos textos bíblicos não foram objecto de definições declaradas como infalíveis; de modo que para praticamente todo o texto bíblico a dificuldade que segundo o Cardeal Newman a Igreja de Roma resolveu para sua inteira satisfação, está na realidade longe de ter recebido solução. A instituição vaticana teve tempo de sobra para produzir e publicar uma explicação "infalível" de toda a Escritura. Em vez disso, deixou o grosso da tarefa em mãos de biblistas e teólogos reconhecidamente falíveis.

De modo que, em resumo, a pretensão romanista carece por completo de fundamento histórico, teórico e prático.

As vantagens do raciocínio católico são duas: em primeiro lugar, a inspiração é estritamente demonstrada, não apenas "sentida". Segundo, o fato principal que pulsa atrás deste raciocínio - a existência de uma Igreja infalível, que nos conduz pela mão a dar uma resposta à pergunda do eunuco etíope (Atos 8,31): como saber se as interpretações do texto são mesmo as corretas? A mesma Igreja que autentica a Bíblia, que estabelece a sua inspiração, é a autoridade estabelecida por Jesus Cristo para interpretar a Sua Palavra.

A única vantagem das elucubrações apresentadas pelo autor, que ele se compraz em chamar "raciocínio católico", é a de levar, mediante uns passos mágicos, água para o moinho romanista. Se realmente deseja ser levado a sério, deverá esforçar-se por elaborar e fundamentar documentalmente as suas falibilíssimas opiniões.


[1] Este artigo encontra-se publicado entre outros em veritatis.com.br.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...