terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Inocêncio III beijou os pés de Francisco de Assis?


Corre uma lenda, entre os católicos romanos, que diz que o vaidoso papa Inocêncio III quando se encontrou com Francisco de Assis lhe beijou os pés. Mas terá sido mesmo assim?
A este respeito Justo L. González observa:
O encontro entre Francisco e Inocêncio deve ter sido dramático. Inocêncio era o papa mais poderoso que a história tinha conhecido (...) à sua disposição estavam as coroas dos reis e os destinos das nações. Diante dele, o pobrezinho de Assis, a quem pouco importavam as intrigas da época, e cuja única razão para querer conhecer o imperador era pedir-lhe que promulgasse uma lei proibindo a caça de “minhas irmãs, as avezinhas”. Um altivo; o outro esfarrapado. (...) Conta-se que o Pontífice recebeu o pobrezinho com impaciência.
- Vestido como estás, mais pareces um porco que um ser humano –  disse, – Vai viver com os teus irmãos.
Francisco se inclinou e saiu em busca de uma pocilga. Ali passou algum tempo entre os porcos, revirando-se no lodo. Depois regressou para onde estava o papa, e com toda humildade se inclinou novamente e lhe disse:
- Senhor, fiz o que mandaste. Agora te rogo que faças o que eu te peço. [1]
Se se tratasse de outro papa, a entrevista teria terminado ali mesmo. Mas parte do génio de Inocêncio estava precisamente em saber medir o valor das pessoas, e unir os elementos mais díspares sob a sua direção. Naquele momento o franciscanismo nascente esteve na balança, como uma geração antes estivera o movimento dos valdenses. Mas Inocêncio foi mais sábio que o seu predecessor, e a partir de então a igreja contou com um dos seus mais poderosos instrumentos.”
(Justo L. González, Historia del Cristianismo. Miami: Unilit, 1994, Tomo I, p. 510)

[1] Francisco, acompanhado por uma dezena de seguidores, tinha decidido ir a Roma pedir ao papa, na altura Inocêncio III, a autorização para fundar uma nova ordem.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O conceito trinitário de Deus


Definição de Trindade (Triunidade) na perspetiva Cristã:
- Existe um e apenas um Deus vivo e verdadeiro.
- Este Deus único existe eternamente em 3 pessoas: Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo.
- Estas três pessoas têm cada uma a mesma natureza divina.
- Apesar de cada uma destas 3 pessoas ser total e completamente Deus, estas pessoas não são idênticas.
- Encontramos as diferenças entre Pai, Filho e Espírito Santo na forma como se relacionam entre si e no papel que cada um tem no cumprimento do seu propósito unificado.

 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Gelásio I não conhecia a transubstanciação


O papa Gelásio I (492-496) não só não sabia que o pão e o vinho se transubstanciavam na Eucaristia, como nega que em virtude da sua consagração haja alguma mudança de substância ou natureza nas espécies eucarísticas.
Ele afirmou: «Certamente o sacramento, que tomamos, do corpo e sangue de Cristo é uma coisa divina, pela qual somos feitos participantes da natureza divina; e contudo a substância ou natureza do pão e do vinho não deixa de existir. E certamente a imagem e semelhança do corpo e sangue de Cristo celebram-se na acção dos mistérios.»
Texto latino: Certe sacramenta, quae sumimus, corporis et sanguinis Christi divina res est, propter quod et per eadem divinae efficimur consortes naturae; et tamen esse non desinit substantia vel natura panis et vini. Et certe imago et similitudo corporis et sanguinis Christi in actione mysteriorum celebrantur. Jacques Paul Migne, Patrologiae Latinae, Tractatus de duabis naturis Adversus Eutychen et Nestorium 14, PL Supplementum III, Part 2:733 (Paris: Editions Garnier Freres, 1964).
Evidentemente no tempo de Gelásio I esta doutrina era inexistente na Igreja. A doutrina da transubstanciação foi formulada por Pascasius Radbertus no século IX, e sancionada pelo IV Concílio de Latrão de 1215. Pouco depois Tomás de Aquino forneceu uma base filosófica baseada em distinções aristotélicas entre substância e acidentes. O assunto foi definitivamente estabelecido para a Igreja de Roma no Concílio de Trento.  
Eis, pois, um pastor e mestre infalível da Igreja de Roma negando um dogma da Igreja de Roma.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Citações isoladas tiradas do contexto com que os romanistas pretendem demonstrar o indemonstrável


A seguir, apresentamos uma série de passagens dos escritos dos Padres da Igreja, que os apologistas romanos citam fora do contexto, num vão intento de demonstrar que o bispo de Roma tinha uma autoridade de que na realidade carecia na Igreja antiga.

As Igrejas particulares são plenamente católicas pela comunhão com uma delas: a Igreja de Roma, «que preside à caridade» (Santo Inácio de Antioquia Carta aos Romanos, 1, 1).

"Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja que recebeu a misericórdia, por meio da magnificência do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único; à Igreja amada e iluminada pela bondade daquele que quis todas as coisas que existem, segundo fé e amor dela por Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja que preside na região dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada feliz, digna de louvor, digna de sucesso, digna de pureza, que preside ao amor, que porta a lei de Cristo, que porta o nome do Pai; eu a saúdo em nome de Jesus Cristo, o Filho do Pai"

Santo Inácio de Antioquia [Carta aos Romanos, século II]

Em primeiro lugar, deve notar-se cuidadosamente que a declaração citada, e com negrito, de que as igrejas particulares são plenamente católicas graças à comunhão com Roma, não pertence a Inácio. É meramente a opinião do autor do texto.
 
Sem dúvida Inácio tem muitas coisas boas a dizer da Igreja de Roma (tal como era em princípios do século II). Entre outras coisas, diz que está “posta à cabeça da caridade” ou que “preside no amor” (prokathêmenê tês agapês), o que não indica como insinua a citação que tem autoridade sobre as outras mas que as excede em amor. Todas as cartas de Inácio começam com um sentido elogio à Igreja a que se dirige.
 
Adicionalmente, Inácio dirige-se aos romanos como a seus irmãos, e não faz nenhuma menção de alguma autoridade particular do bispo desta Igreja, o qual nem sequer menciona (à diferença de outras cartas como aos filadélfos, esmirniotas e magnésios).
 
A Igreja fundada em Roma pelos dois gloriosos Apóstolos Pedro e Paulo" é "a maior, mais antiga e mais famosa de todas as igrejas". "Porque com esta igreja, por causa da sua preeminência especial, tem que concordar toda a igreja, isto é, os fiéis de todo o mundo; pois nela se conservou sempre a tradição apostólica"
 
Santo Ireneu de Lyon [«Adversus Haereses», III, 3, 2]
 
O que diz Ireneu é bastante razoável se se considera a citação no seu contexto:
 
Ireneu dá Roma como exemplo, mas não diz absolutamente nada da supremacia do seu bispo
 
O ilustre bispo das Gálias susteve contra os hereges do seu tempo que a Igreja universal (católica) de Cristo expressa em todas as congregações locais dispersas pelo mundo, cumpriam fielmente a sua missão de ser "coluna e fundamento da verdade" ao preservar, proclamar e transmitir a autêntica tradição dos Apóstolos, com maior ou menor eloquência mas com uma mesma fidelidade. Diz Ireneu: 
 
Está portanto dentro da capacidade de todos os que queiram ver a verdade, contemplar claramente em toda a Igreja a tradição dos Apóstolos manifestada no mundo inteiro; e estamos em posição de reconhecer aqueles que pelos apóstolos foram constituídos bispos nas Igrejas, e a sucessão destes homens até aos nossos tempos; aqueles que nem ensinaram nem conheceram nada como os desvarios destes [os hereges]. Pois se os Apóstolos tivessem conhecido mistérios ocultos, os quais costumavam dar aos "perfeitos" à parte e separadamente do resto, eles os entregariam especialmente àqueles a quem estavam confiando as próprias Igrejas. Pois eles [os Apóstolos] estavam desejosos de que estes homens fossem perfeitíssimos e irrepreensíveis em tudo, aqueles que deixaram após si como seus sucessores, entregando o seu próprio lugar de governo a estes homens; os quais, se cumprissem as suas funções honestamente, haveriam de ser um benefício, mas se apostatassem, a pior calamidade.
 
Uma vez que seria muito entediante num volume como este enumerar as sucessões em todas as igrejas, indicamos a tradição derivada dos apóstolos e a fé proclamada aos homens, transmitida até aos nossos dias por meio das sucessões de bispos, como se sustenta na grande, antiga e universalmente renomada igreja que foi estabelecida em Roma pelos dois mais gloriosos apóstolos Pedro e Paulo. Deste modo confundimos todos aqueles que de qualquer forma sustentam reuniões não autorizadas por malvada autodeterminação ou vanglória ou cegueira e erróneo juízo. Com esta igreja, por causa da sua superior autoridade, toda a igreja deve concordar – isto é, os fiéis em todos os lugares, toda a igreja na qual a tradição apostólica foi preservada pelos fiéis em todos os lugares" [Adv Haer III, 3:1-2].
 
Dever-se-á notar aqui que não há ponta de evidência no Novo Testamento de que a Igreja de Roma tenha sido fundada por Pedro ou por Paulo, porém o argumento é válido. Ireneu, que provinha da Ásia Menor e era bispo de Lyon, tomou a Igreja de Roma, de antiguidade e prestígio indiscutíveis, como o paradigma de uma congregação fiel à doutrina dos Apóstolos, como por outro lado o eram todas as demais Igrejas dispersas pelo Império. 
 
Note-se que não há apelação a alguma autoridade única e suprema do bispo de Roma. Já antes na mesma obra, Ireneu tinha esgrimido essencialmente o mesmo argumento acerca da ortodoxia da igreja universal ou católica:
 
A Igreja, apesar de dispersa por todo o mundo, até aos confins da terra, recebeu dos apóstolos e dos seus discípulos esta fé: num Deus, o Pai Omnipotente, Fazedor do céu, e da terra, e do mar, e de todas as coisas que neles há; e num Cristo Jesus, o Filho de Deus, que encarnou para nossa salvação; e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus, e as vindas, e o nascimento de uma virgem, e a paixão, e a ressurreição dentre os mortos, e a ascensão na carne aos céus do amadíssimo Cristo Jesus, nosso Senhor, e a sua manifestação desde o céu na glória do Pai, "para reunir todas as coisas numa" e para ressuscitar toda a carne da raça humana inteira, de forma que perante Cristo Jesus, nosso Senhor, e Deus, e Salvador, e Rei, segundo a vontade do Pai invisível, "todo o joelho se dobre, das coisas no céu, e das coisas na terra e das coisas debaixo da terra, e toda a língua o confesse" a Ele, e que Ele execute o justo juízo de todos; que Ele possa enviar as impiedades espirituais e os anjos que prevaricaram e se tornaram apóstatas, juntamente com os ímpios, e injustos, e malvados, e profanos de entre os homens, para o fogo eterno; mas possa, em exercício da sua graça, conferir imortalidade aos justos, e santos, e àqueles que guardaram os seus mandamentos, e perseveraram no seu amor, alguns desde o princípio e outros desde o seu arrependimento, e possa rodeá-los com sempiterna glória.
 
Como já observei, a Igreja, tendo recebido esta pregação e esta fé, apesar de dispersa pelo mundo inteiro, mesmo assim, como se não ocupasse senão uma casa, a preserva cuidadosamente. Ela também crê estes pontos exatamente como se possuísse uma só alma, e um e idêntico coração, e ela os proclama, e os ensina, e os transmite, com perfeita harmonia, como se possuísse uma só boca. Pois ainda que as linguagens do mundo sejam distintas, o conteúdo da tradição é um só e idêntico. Pois as igrejas que foram plantadas na Germânia não creem nem transmitem nada diferente, nem aquelas de Espanha, nem aquelas nas Gálias, nem aquelas do Oriente, nem aquelas do Egipto, nem aquelas na Líbia, nem aquelas que foram estabelecidas nas regiões centrais do mundo. Mas como o sol, essa criatura de Deus, é um só em todo o mundo, assim também a pregação da verdade resplandece em todos os lugares, e ilumina todos os homens que estão dispostos a vir a um conhecimento da verdade. Nem nenhum dos governantes das Igrejas, sem importar quão dotado possa ser no tocante à eloquência, ensina doutrinas diferentes destas (pois ninguém é maior do que o Mestre); nem, por outro lado, quem seja deficiente em poder de expressão infligirá dano à tradição. Pois sendo sempre a fé uma só, nem alguém que é capaz de dissertar sobre ela lhe fará adição alguma, nem a diminuirá quem possa dizer pouco" [Adv Haer I, 10, 1-2; negrito acrescentado].
 
Aqui é interessante observar o resumo que Ireneu formula da fé apostólica e católica; coisas todas elas que se ensinam claramente nas Escrituras e que são cridas hoje nas Igrejas evangélicas. Em outro lado apresenta também uma espécie de credo, e depois continua com uma exposição do ensino cristão baseado nas Escrituras [Adv Haer III, 4, 2ss]. Por último, Ireneu não se cansa de afirmar que é nas Igrejas cristãs, estabelecidas pelos Apóstolos e por aqueles que lhes sucederam no pastorado, onde se achará a exposição fiel da doutrina apostólica que se encontra nas Escrituras.  
 
"O verdadeiro conhecimento é a doutrina dos Apóstolos, e a antiga constituição da Igreja em todo o mundo, e a manifestação distinta do Corpo de Cristo conforme as sucessões dos bispos, pelas quais eles transmitiram aquela Igreja que existe em todos os lugares, e chegou até nós, sendo guardada e preservada sem nenhuma falsificação de Escrituras, por um sistema muito completo de doutrina, e sem receber adição nem subtração; e a leitura [da Palavra] sem falsificação, e uma exposição lícita e diligente em harmonia com as Escrituras, sem perigo nem blasfémia, e o preeminente carisma do amor, o qual é mais precioso do que o conhecimento, mais glorioso do que a profecia, e que excede todos os outros dons" [Adv Haer IV, 33,8].
 
Ora, o que Ireneu dizia no século II não é sustentável depois dos cismas do Oriente e Ocidente, pelo menos não no sentido que o nobre bispo lhe deu. Para além disso, as igrejas evangélicas acreditam nas coisas que segundo Santo Ireneu eram o núcleo da fé sustentada em todos os lugares.
 
O grande são Máximo Confessor, bispo de Turim do século IV, afirmava: ”Com efeito, desde a descida a nós do Verbo Encarnado, todas as Igrejas cristãs de toda parte consideraram e continuam considerando a grande Igreja que está aqui [em Roma] como única base e fundamento, visto que, segundo as próprias promessas do Salvador, as portas do inferno nunca prevaleceram sobre ela” (CIC, 834).
 
Antes de mais, o grande são Máximo está obviamente equivocado. No entanto, pode ser oportuno fazer notar que Máximo (580-662) deve ter escrito isto, não no século IV como diz a citação, mas depois de 640. A razão é que a partir desse ano, este monge e abade tornou-se um ardente opositor da heresia monotelita. Acontece que o primeiro Concílio de Latrão condenou esta heresia sendo bispo de Roma Martinho I, em 649. No entanto, um antecessor próximo de Martinho, Honório, foi anatematizado precisamente por monotelita por um concílio ecuménico, e a sua condenação como herege permaneceu no breviário romano até ao século XVIII, quando foi piedosamente omitido.
 
Honório sucedeu a Bonifácio V, foi bispo de Roma entre outubro-novembro de 625 e 12 de outubro de 638. A condenação de Honório pelo III Concílio de Constantinopla mostra cabalmente que o bispo de Roma estava sujeito à mesma disciplina que os demais bispos, e que podia ser disciplinado se errava como mestre e pastor. A Igreja antiga não conhece nada da atual doutrina da infalibilidade sancionada por Roma há pouco mais de um século.
 
O contexto histórico é o da heresia monotelita, que ensinava a existência de uma só vontade em Cristo, o que tendia a minimizar a natureza humana de nosso Senhor como antes o tinham feito os monofisitas.
 
O imperador Heráclio desejava conciliar os monofisitas com os ortodoxos, e uma fórmula que parecia adequada para ambos os grupos foi remetida a Sérgio, patriarca de Constantinopla. Por sua vez Sérgio enviou a Honório de Roma uma carta dogmática, solicitando a sua opinião.
 
Honório aceitou a fórmula de compromisso entre monofisismo e ortodoxia ("Estas coisas pregará vossa fraternidade convosco, assim como nós as pregamos juntamente com vós", disse a Sérgio). O pior é que, em vez de "uma energia" como os gregos, Honório expressou: "Também confessamos uma só vontade de nosso Senhor Jesus Cristo" (ver Denzinger # 251). O ensino de Honório deu origem à formulação do monotelismo (uma vontade).
 
Perante o facto de que como bispo de Roma, consultado formalmente pelo bispo de Constantinopla, confirmou este no seu erro em vez de corrigi-lo, Honório recebeu de Sofrónio, patriarca de Jerusalém, e de outros bispos, um documento que defendia a ortodoxia. Como resposta, Honório escreveu uma segunda carta a Sérgio, onde ratificava e ampliava o dito; a carta concluía:
 
E estas coisas decidimos manifestar à vossa mui santa fraternidade para que, estabelecendo esta confissão, possamos mostrar-nos de uma mesma mente com vossa santidade, estando claramente de acordo num mesmo espírito, com um mesmo ensino da fé ... E escrevemos aos nossos colegas e irmãos, Ciro e Sofrónio, para que não persistam na nova expressão de uma ou duas energias.”
 
Os defensores da infalibilidade papal usaram sem êxito diversas táticas para eludir a condenação de Honório: a partir da época de Torquemada, se questionaram as atas do Concílio que condenou Honório; posteriormente, ao fracassar isto, se quis reinterpretar o que foi dito por Honório para tomá-lo em sentido ortodoxo (suponho que por esta razão a sua declaração é publicada no Denzinger). Outra artimanha de valor histórico foi tomar o ensino de Honório como a opinião de um teólogo privado. A este respeito diz John Chapman, autor do artigo sobre Honório na Catholic Encyclopedia: A carta [de Honório] não pode ser tida como privada, pois é uma resposta oficial a uma consulta formal.
 
No entanto, Chapman por sua vez recorre a outro subterfúgio, a saber, que a carta supostamente não define nem condena nada, nem se apresenta como vinculativa para todos os cristãos, pelo que não pode ser considerada ex cathedra segundo a moderna definição do Concílio Vaticano I (1870). Na verdade, Honório subscreve plenamente, com toda a sua autoridade, o dito por Sérgio, e ainda por cima acrescenta a confissão de "uma só vontade".
 
Independentemente das subtilezas, a questão é que por muitos séculos ninguém pôs em dúvida que Honório fosse herege.
 
Chapman diz de Honório que "A sua maior notoriedade veio pelo facto de ter sido condenado como herege pelo sexto concílio ecuménico (680)…".
 
Na Sessão 13ª de 28 de março, as duas cartas de Sérgio foram condenadas, e o concílio acrescentou: «Àqueles cujos ímpios dogmas execramos, julgamos que os seus nomes também sejam expulsos da santa Igreja de Deus ... E além destes decidimos que Honório também, que foi papa da antiga Roma, seja com eles expulso da santa Igreja de Deus, e anatematizado com eles, porque verificamos na sua carta a Sérgio que seguiu a opinião deste em tudo, e confirmou os seus dogmas ímpios». Estas últimas palavras são suficientemente verdadeiras, e, se Sérgio tinha de ser condenado, Honório não podia ser recuperado. Os legados [papais] não objetaram a sua condenação.
 
... A condenação do papa Honório foi guardada nas lições do Breviário para 28 de junho (São Leão II) até ao século XVIII ..."
 
(John Chapman, Pope Honorius I. The Catholic Encyclopedia, vol. VII).
 
O Concílio dirigiu uma carta ao então bispo de Roma, Agatão, na qual se incluía Honório entre os que "erraram na fé".
 
No Édito imperial que concedia força legal às decisões conciliares, se mencionava como anatematizado "Honório, que foi papa da antiga Roma, o qual em todas as coisas promoveu e cooperou e confirmou a heresia".
 
A condenação de Honório foi renovada pelos Concílios II de Niceia (787) e IV de Constantinopla (869-870).
 
Ainda antes do Concílio Ecuménico citado, um importante sínodo de Latrão em 649, presidido por um sucessor de Honório, Martinho (649-655) condenou todo aquele que confessasse uma só vontade e operação em Cristo, o que incluía Honório, embora talvez por vergonha, o seu nome não aparecesse na lista.
 
O papa Leão II (682-683), sucessor de Agatão, reiterou a condenação de Honório. Numa carta ao imperador diz do papa herege que Honório "não santificou esta apostólica Igreja com o ensino da tradição apostólica mas com profana traição transtornou a sua fé imaculada". Noutro lado coloca-o junto a outros hereges como Ário, Apolinário, Nestório e Eutiques.
 
Durante vários séculos, o Liber Diurnus, que continha os juramentos que cada bispo de Roma devia prestar, incluía um anátema contra "Honório, que acendeu o fogo das afirmações ímpias". Este anátema foi pronunciado por cerca de cinquenta papas que prestaram juramento no período mencionado.
 
Honório foi tido por herege durante séculos, e tal opinião generalizada, sustentada ainda por dezenas de seus sucessores, somente foi questionada pelo seu efeito pulverizador sobre a doutrina da infalibilidade papal.
 
Que um bispo de Roma caísse na heresia era uma coisa pouco frequente, além de uma grande desgraça; mas a ninguém, nem sequer aos próprios bispos de Roma, passava pela cabeça que fosse impossível. O atual Código de Direito Canónico da Igreja de Roma estabelece que o seu bispo não pode ser julgado por ninguém, mas isto não era assim ainda no século VII.
 
Por último, a história mostra que a solução romanista para as diferenças na interpretação das Escrituras não é válida. A Igreja teria admitido o arianismo se tivesse capitulado com Libério; teria afirmado o pelagianismo se os africanos não tivessem corrigido Zósimo; estaria ainda hesitante se seguisse o usurpador Vigílio; e seria monotelita se de Honório tivesse dependido.

Como o expressa muito bem George Salmon:

"Quando se sugeriu que poderíamos contentar-nos com a guia das Sagradas Escrituras, os defensores do romanismo replicaram que embora a Bíblia possa ser infalível não é uma guia infalível; ou seja, não protege aqueles que a seguem do perigo de errar. Certamente agora podemos dizer o mesmo do papa. Que seja infalível, se quiserdes; que seja em seu coração da mais admirável ortodoxia, ainda assim não é uma guia infalível se pelas suas afirmações públicas leva ao erro o povo cristão. É indisputável que houve casos em que o povo cristão erraria se seguisse a guia do bispo de Roma. Mesmo se fosse possível demonstrar que nenhum bispo de Roma jamais albergou sentimentos que não fossem da mais rígida ortodoxia, ficaria demonstrado que o papa não é uma guia infalível. Podemos assinalar caso após caso em que foi concedida autoridade papal a decisões que sabemos erróneas, e em cada caso pode fazer-se alguma tentativa engenhosa para mostrar que a decisão errónea não compromete o atributo da infalibilidade; mas mais cedo ou mais tarde os homens despertarão para ver que o resultado de todos estes pedidos de exceção é que, enquanto esperavam uma guia que sempre os dirigisse corretamente, eles têm em seu lugar uma guia que sempre consegue encontrar alguma desculpa plausível para cada vez que os extravia".

(The Infallibility of the Church, pp. 441-442, vi).

São Cirilo, bispo de Alexandria diz: “A fim de permanecermos unidos ao nosso chefe apostólico, que ocupa o trono dos Pontífices Romanos, de quem nos compete receber o que devemos crer e professar, nós o veneramos e a ele rogamos, de preferência a todos os mais. Porque só ele pode repreender, corrigir, determinar, dispor, desatar e ligar, em lugar do fundador da Igreja, que a nenhum outro, só a ele, deu a plenitude do poder; a quem todos, por direito divino, inclinam a cabeça e os mais elevados chefes do mundo lhe obedecem como ao próprio Senhor Jesus Cristo.”

Seria interessante contar com a fonte desta citação, mas não me surpreenderia que o malicioso Cirilo tivesse dito semelhante coisa.

Na ilustre Igreja onde presidira Atanásio tinham-se instaurado as intrigas palacianas e a inveja para com a sede rival de Bizâncio. O tio e predecessor de Cirilo, Teófilo, foi o principal responsável pela deposição de João Crisóstomo, anterior patriarca de Constantinopla. Cirilo, homem violento e implacável, foi um digno émulo de seu tio, com a mesma hostilidade para com a sede imperial da qual era bispo Nestório.

Ora, para atacar com êxito a segunda sede do Império, o melhor aliado possível era a Igreja da antiga capital, Roma.

O historiador jesuíta Hubert Jedin o explica assim:

“Desde logo, parece lógico que depois de o magistério eclesiástico ter considerado a fé trinitária nos dois primeiros concílios ecuménicos, se orientasse o pensamento teológico para o mistério da pessoa de Cristo. No entanto, não se deveu isto a um processo lógico, mas antes a um antigo conflito entre duas escolas teológicas, ao mesmo tempo agudizado por uma rivalidade de política eclesiástica.

A escola catequética de Alexandria ... servia-se do método alegórico para a explicação da Sagrada Escritura. O seu pensar era platónico e o seu forte a especulação teológica ... o seu maior teólogo em princípios do século quinto era são Cirilo de Alexandria, patriarca desta cidade desde o ano 412. No seu empenho de apresentar a união da divindade e da humanidade de Jesus Cristo como a mais íntima possível, falava Cirilo de «uma natureza do Verbo encarnado» ... Ele próprio não se importava de que tal modo de falar poderia acabar por esfumar a natureza humana de Cristo e dar lugar a uma concepção da união como «confusão» (synkrasis) das duas naturezas.

Ao invés, a escola de Antioquia ... distinguia-se pela sua sóbria exegese histórico-gramatical da Sagrada Escritura. De pensar antes aristotélico, estava influenciada por um ligeiro sopro de racionalismo. A sua benemérita e altamente venerada cabeça no século quarto, Diodoro de Tarso (m. antes de 394), como consciencioso exegeta que era, levou tão a sério o ser humano de Cristo, que correu perigo de relaxar a sua união substancial com a divindade (que ele, sem dúvida, reconhecia) e reduzi-la a uma união puramente moral. Esta tendência aflora no seu grande discípulo são João Crisóstomo, que em 398 sucedeu a Nectário na sede de Constantinopla, algo mais no influente Teodoro de Mopsuéstia (m. 428), e é fortemente acentuada no seu discípulo Nestório, que à morte do seu mestre foi nomeado bispo de Constantinopla...

Cirilo, patriarca de Alexandria; Nestório, patriarca de Constantinopla: a tensão que emanava das tendências da escola ficou reforçada pela rivalidade de ambas as sedes episcopais. Constantinopla, a residência imperial no Bósforo, foi deixando na sombra e postergada a prestigiosa Alexandria, sede da ciência e baluarte da ortodoxia. Crisóstomo (m. 407) tinha já sofrido dos ciúmes do patriarca de Alexandria, Teófilo, homem ambicioso e ávido de poder; a este sucedeu o seu sobrinho Cirilo. Assim, é facilmente compreensível que este último se constituísse em ardente impugnador das inquietantes teorias de Nestório sobre a pessoa de Cristo.

(Hubert Jedin, S.J.: Breve historia de los Concilios. Trad. A. Ros. Barcelona: Herder, 1963, p. 29-30; negrito acrescentado).

Muito precocemente na controvérsia entre Nestório e Cirilo, iniciada em 429, este procurou uma aliança com a sede romana. No ano seguinte, um concílio presidido pelo bispo de Roma, Celestino, pronunciou-se a favor de Cirilo. Ao que parece os romanos tinham sido informados da suposta doutrina de Nestório pelo próprio Cirilo. Desde logo, além da doutrina, os romanos também tinham o seu rancor contra Constantinopla, à qual se tinha concedido o segundo lugar de honra no cânon terceiro do Segundo Concílio Ecuménico (381) apesar dos protestos dos bispos romanos.

Embora o sínodo romano presidido por Celestino tenha advertido Nestório a abandonar as suas “ímpias novidades” e retornar à ortodoxia, a carta não surtiu nenhum efeito, o que demonstra que a autoridade do bispo romano, mesmo à cabeça de um sínodo local, não era vinculante para outros bispos de sedes importantes. Além disso, a oposição contra Nestório foi encabeçada por Cirilo, não por Celestino, ainda que o apoio deste tenha sido muito bem-vindo para o intriguista bispo alexandrino; provavelmente daí a sua súbita apoteose do bispo de Roma.

Em caso de ser autêntica, a citação transcrita é uma ironia, semelhante à declaração de Celestino a Cirilo de que a doutrina deste coincide com a romana, quando neste caso foi Alexandria quem disse a Roma o que devia ensinar.

Apesar do sínodo romano, como também de outro reunido em Alexandria por Cirilo, a controvérsia não se resolveu até ao terceiro Concílio Ecuménico, convocado como de costume pelo imperador e reunido em Éfeso em 431. O Concílio foi presidido, desde logo, por Cirilo, que segundo as atas conciliares representava também o bispo de Roma, apesar deste ter enviado legados.

Nestório queixou-se da manipulação do Concílio por parte de Cirilo: “Fui convocado por Cirilo, que reuniu o concílio, por Cirilo que era o seu chefe. Quem era juiz? Cirilo. Quem era o acusador? Cirilo. Quem era o bispo de Roma? Cirilo. Cirilo era tudo. Cirilo era bispo de Alexandria e ocupava o lugar do santo e venerável bispo de Roma, Celestino.”

(Citado por Pierre Thomas Camelot, Los Concilios ecuménicos de los siglos IV y V, em El Concilio y los Concilios, trad. D.G. Jiménez. Madrid: Ediciones Paulinas, 1962, p. 82, n. 50).

Finalmente, Nestório foi deposto por decisão do Concílio (por ter-se negado a comparecer) e não porque o bispo de Roma tivesse condenado as suas doutrinas, embora claro está isso tenha ajudado. Mas na realidade, só a decisão do bispo romano em matéria de doutrina não bastava no século V para dar por concluído um assunto.

“Por acaso ignorais que o costume era este: que se escreva primeiro a nós e daí venha a ser estabelecido o que é justo? Se, portanto, se suspeitava alguma coisa do gênero a respeito do bispo de lá, devia haver-se escrito à Igreja daqui”

Papa São Júlio I [Carta aos antioquenos, século IV]

Aqui o que há que reter é que a afirmação de São Júlio é clara e manifestamente falsa. Era antes uma expressão do seu desejo, e era o que a sede romana estava a lutar por impor. Mas certamente não era assim ao princípio.
Eis aqui um exemplo do século II...


A controvérsia pascal do século II e como o bispo de Roma teve que reconsiderar 

No Livro V, Capítulos 23 ao 25, da sua História Eclesiástica, Eusébio de Cesareia apresenta um relato da controvérsia pascal, por causa das diferenças entre a forma de observar a Páscoa dos bispos asiáticos e outros, incluído o de Roma, Vítor. O asiático Polícrates escreveu a Vítor: 

Nós, pois, celebramos intacto este dia, sem acrescentar nem tirar nada. Porque também na Ásia repousam grandes luminárias ... Felipe ... João, o que se recostou sobre o peito do Senhor ...repousa em Éfeso. E em Esmirna, Policarpo, bispo e mártir. E Traseas, também ele bispo e mártir ... repousa em Esmirna. E é preciso falar de Sagaris, bispo e mártir, que descansa em Laodiceia, assim como do bem-aventurado Papírio e de Melitão, o eunuco, que ... repousa em Sardes esperando a visita que vem dos céus no dia em que ressuscitará dentre os mortos? Todos estes celebraram como dia da Páscoa o da décima quarta lua, conforme o Evangelho, e não transgrediam, mas seguiam a regra da fé. 

E eu mesmo, Polícrates, o menor de todos vós, [sigo] a tradição de meus parentes ... Sete parentes meus foram bispos, e eu sou o oitavo... Portanto, irmãos, eu, com os meus sessenta e cinco anos no Senhor, que conversei com irmãos procedentes de todo o mundo e que recorri toda a Sagrada Escritura, não me assusto com os que tratam de impressionar-me, pois os que são maiores do que eu disseram: Importa mais obedecer a Deus do que aos homens... Poderia mencionar os bispos que estão comigo, que vós me pedistes que convidasse e que eu convidei. Se escrevesse os seus nomes, seria demasiado grande o seu número. Eles, mesmo conhecendo a minha pequenez, deram o seu comum assentimento à minha carta, sabendo que não é em vão que trago os meus cabelos brancos, mas que sempre vivi em Cristo Jesus" (negrito acrescentado).

Eusébio diz que em resposta Vítor, bispo de Roma, "tentou separar em massa da união comum todas as comunidades da Ásia e as igrejas limítrofes, alegando que eram heterodoxas, e publicou a condenação por meio de cartas proclamando que todos os irmãos daquela região, sem exceção, estavam excomungados. Mas esta medida não agradou aos bispos, que por sua parte exortavam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que repreendem Vítor com bastante energia".

Uma de tais enérgicas cartas foi escrita por Ireneu, bispo de Lyon, admirador da Igreja de Roma (ver mais acima) e partidário da posição de Vítor quanto à celebração pascal mas não do seu proceder contra os asiáticos. Eis aqui o que cita Eusébio:

Efetivamente, a controvérsia não é somente sobre o dia, mas também sobre a própria forma do jejum, porque uns pensam que devem jejuar durante um dia, outros que dois e outros que mais; e outros dão a seu dia uma medida de quarenta horas do dia e da noite. E uma tal diversidade de observantes não se produziu agora, em nossos tempos, mas já muito antes, sob nossos predecessores, cujo forte, segundo parece, não era a exatidão, e que forjaram para a posteridade o costume em sua simplicidade e particularidade. E todos eles nem por isso viveram menos em paz uns com os outros, tanto quanto nós; o desacordo quanto ao jejum confirma o acordo quanto à fé.

... Entre eles, também os presbíteros antecessores de Sotero, que presidiram a igreja que tu reges agora, quero dizer Aniceto, Pio e Higino, assim como Telésforo e Sisto: nem eles mesmos observaram o dia nem permitiam aos que estavam com eles escolher, e nem por isso eles mesmos, que não observavam o dia, viviam menos em paz com os que procediam das igrejas em que se observava o dia... E nunca se rechaçou ninguém por causa desta forma, antes, os próprios presbíteros, teus antecessores, que não observavam o dia, enviavam a Eucaristia [em sinal de comunhão] aos de outras igrejas que o observavam. E encontrando-se em Roma o bem-aventurado Policarpo nos tempos de Aniceto, surgiram entre os dois pequenas divergências, mas em seguida estavam em paz, sem que sobre este capítulo se querelassem mutuamente, porque nem Aniceto podia convencer Policarpo a não observar o dia – como sempre o havia observado, com João, discípulo de nosso Senhor, e com os demais apóstolos com quem conviveu -, nem tampouco Policarpo convenceu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que devia manter o costume dos presbíteros seus antecessores. E apesar de estarem assim as coisas, mutuamente comunicavam entre si, e na Igreja Aniceto cedeu a Policarpo a celebração da eucaristia, evidentemente por deferência, e em paz se separaram um do outro; e toda a Igreja tinha paz, tanto os que observavam o dia como os que não o observavam".

(Citações da edição preparada por Argimiro Velasco Delgado; Madrid: BAC, 1973).

Esta, de fato, parecerá ser a coisa melhor e mais apropriada: que os sacerdotes do Senhor de todas as províncias recorram à cabeça, isto é, à sé do Apóstolo Pedro.

Concílio de Sárdica [Carta «Quod Semper», século IV]

Ah, Sárdica... Bem, o seguinte me parece um comentário apropriado tanto para a citação de Júlio I como para esta de Sárdica.

O caso do papa Zósimo, um "supremo mestre" que no século V não sabia distinguir um documento pelagiano de um ortodoxo, e que desconhecia tanto os cânones de Niceia (que confundiu com os de Sardes) como os limites da sua própria autoridade, e teve de ser ensinado pelos bispos africanos.

Traduzo o seguinte da Catholic Encyclopedia:

Não muito depois da eleição de Zósimo o pelagiano Celéstio, que tinha sido condenado pelo papa precedente, Inocêncio I, veio a Roma para justificar-se perante o novo papa, tendo sido expulso de Constantinopla. No verão de 417, Zósimo realizou uma reunião com a clerezia romana na basílica de São Clemente, perante a qual compareceu Celéstio. As proposições redigidas pelo diácono Paulino de Milão, por causa das quais Celéstio tinha sido condenado em Cartago em 411, foram dispostas perante ele. Celéstio se recusou a condenar tais proposições, declarando ao mesmo tempo em geral que ele aceitava a doutrina exposta nas cartas do papa Inocente e fazendo uma confissão de fé que foi aprovada. O papa foi conquistado pela conduta astutamente calculada de Celéstio, e disse que não estava seguro de se o herege tinha realmente mantido a doutrina falsa rejeitada por Inocente, e portanto considerava demasiado apressada a ação dos bispos africanos contra Celéstio. Escreveu de imediato neste sentido aos bispos da província africana, e convocou aqueles que tivessem algo que dizer contra Celéstio para que comparecessem em Roma dentro de dois meses. Pouco depois disto, Zósimo recebeu de Pelágio também uma confissão de fé artificiosamente expressa, juntamente com um tratado do heresiarca sobre o livre arbítrio. O papa reuniu um novo sínodo da clerezia romana, perante a qual ambos os escritos foram lidos. As expressões habilmente escolhidas de Pelágio ocultavam o conteúdo herético; a assembleia susteve que as afirmações eram ortodoxas, e Zósimo escreveu de novo aos bispos africanos defendendo Pelágio e reprovando os seus acusadores, entre os quais se encontravam os bispos galos Hero e Lázaro. O arcebispo Aurélio de Cartago rapidamente convocou um sínodo, o qual enviou a Zósimo uma carta em que se provava que o papa tinha sido enganado pelos hereges. Em sua resposta, Zósimo declarou que não tinha determinado nada em forma definitiva, e que não desejava estabelecer nada sem consultar os bispos africanos. Depois da nova carta sinodal do concílio africano, de 1 de maio de 418, ao papa, e depois das medidas tomadas contra os pelagianos pelo imperador Honório, Zósimo reconheceu o verdadeiro caráter dos hereges. Então publicou a sua "Tractoria", na qual eram condenados o pelagianismo e seus autores. Assim, finalmente, o ocupante da Sé Apostólica no momento certo manteve com toda a autoridade o dogma tradicional da Igreja, e protegeu a verdade da Igreja contra o erro.

Pouco depois disto, Zósimo se envolveu numa disputa com os bispos africanos em relação ao direito de apelação à sé romana de clérigos que tinham sido excomungados pelos seus bispos. Quando o sacerdote Apiário de Sicca tinha sido excomungado por causa dos seus delitos, apelou diretamente ao papa, sem consideração pelo curso regular da apelação em África, que estava exatamente prescrito. O papa aceitou a apelação de imediato, e enviou a África legados com cartas para investigar o assunto. Um procedimento mais sábio teria sido remeter primeiro Apiário para o curso ordinário de apelação na própria África. A seguir, Zósimo cometeu o erro adicional de basear a sua ação num suposto cânon do Concílio de Niceia [ecuménico], que era na realidade um cânon do Concílio de Sárdica [local]. Nos manuscritos romanos, os cânones de Sárdica seguiam-se aos de Niceia imediatamente, sem um título independente, enquanto os manuscritos africanos continham unicamente os cânones genuínos de Niceia, de modo que o cânon a que apelou Zósimo não se encontrava nas cópias africanas dos cânones nicenos. Assim surgiu um sério desacordo acerca desta apelação, que se prolongou depois da morte de Zósimo"

J.P. Kirsch, Pope St. Zosimus. Em The Catholic Encyclopedia, vol. XV).

É provavelmente um facto afortunado para a Igreja de Roma que o bispado de Zósimo (417-418) tenha durado tão pouco, pois do contrário é possível que tivesse cometido ainda mais erros.

Embora o autor do artigo citado pretenda ilibar Zósimo e apresentá-lo como o guardião da ortodoxia que "no momento certo manteve com toda a autoridade o dogma tradicional da Igreja, e protegeu a verdade da Igreja contra o erro", os factos que ele mesmo narra são bem diferentes.

O titular da sé romana examinou cuidadosamente o exposto por Celéstio e Pelágio, e chegou à conclusão de que ambos eram ortodoxos. Vê-se que o Espírito Santo não o assistiu para distinguir a verdade do erro. Como consequência da sua avaliação, corrigiu a condenação pronunciada pelo bispo romano anterior (o que mostra que nesta época os papas não se sentiam ainda obrigados pelos ensinamentos e decisões dos seus predecessores, que podiam ser anuladas se fosse necessário), censurou grandemente os bispos galicanos acusadores – os quais qualificou de maliciosos e turbulentos e pretendeu excomungar -, aconselhou paternalmente os bispos africanos para que não se apressassem a crer o mal do seu próximo, e disse que desejava que os africanos tivessem podido ouvir as exposições de Celéstio e Pelágio, aos quais chamou homens de ortodoxia perfeita (absolutae fidei). 

Apesar da decisão do bispo romano, os bispos africanos se mantiveram na sua posição e reafirmaram a condenação dos erros pelagianos. Foi somente perante a firmeza dos africanos e a condenação e desterro de Pelágio pela autoridade imperial (que vaticinava um negro futuro para os seus defensores) que Zósimo publicou a sua condenação dos pelagianos e seus escritos. O fez muito tarde para defender a ortodoxia, que já tinha sido reivindicada pelos bispos da Gália e de África, e apenas a tempo para salvar a sua própria pele da acusação de heresia.

Assim que, se Zósimo não era pelagiano, pelo menos engoliu a isca pelagiana com anzol e chumbo, atreveu-se a admoestar os bispos que defendiam a ortodoxia, e só a muito custo reagiu no instante final. Por certo, um papel muito triste para um pastor e mestre supremo.

E embora o problema do pelagianismo tenha sido muito mais grave, a nova controvérsia sustentada com os africanos a propósito das apelações, mostra o pobre Zósimo como muito pouco versado também em questões de disciplina eclesiástica, outra área na qual se ensina hoje que as decisões dos papas são inapeláveis.

O Código de Direito Canónico vigente estabelece:

"O Romano Pontífice é o juiz supremo para todo o mundo católico e julga pessoalmente, pelos tribunais ordinários da Sé Apostólica ou por juízes por ele delegados" (# 1442).

"Não há lugar para apelação: 1º de uma sentença do próprio Romano Pontífice ou da Assinatura Apostólica..." (# 1629).

"Contra uma sentença ou decreto do Romano Pontífice, não há apelação, nem recurso" (# 333, § 3).

"Em razão do primado do Romano Pontífice, é facultado a qualquer fiel recorrer à Santa Sé ou introduzir perante ela, para julgamento, sua causa contenciosa ou penal, em qualquer grau do juízo e em qualquer estado da lide" (# 1417.1).

Parece que os bispos africanos do século V não estavam inteirados destas leis.

“Alegremo-nos, portanto, e demos graças por nos termos tornado não somente cristãos, mas o próprio Cristo. Compreendeis, irmãos, a graça que Deus nos concedeu ao dar-nos Cristo como Cabeça? Admirai e rejubilai, nós nos tornamos Cristo. Com efeito, uma vez que Ele é a cabeça e nós somos membros, o homem inteiro é constituído por Ele e por nós. A plenitude de cristo é, portanto, a Cabeça e os membros. O que significa isto: a Cabeça e os membros? Cristo e a Igreja”. (Santo Agostinho, In Iohannis evangelium tractatus, 21,8).

Depois de ter mostrado que Cristo é «o único Pastor, no qual todos os Pastores são um», santo Agostinho conclui:

«Que todos se identifiquem com o único Pastor e façam ouvir a única voz do Pastor, para que a ouçam as ovelhas e sigam o único Pastor, e não a este ou àquele, mas ao único e que todos nele façam ouvir a mesma voz, e que não tenham cada um a sua própria voz (...) Que as ovelhas ouçam esta voz, limpa de toda divisão e purificada de toda heresia» (Sermo XLVI, 30: CCL 41, 557).

e «Na medida que alguém ama a Igreja, possui o Espírito Santo» (Santo Agostinho, «In Iohannis evangelium Tractatus», 32, 8).

Que interessante! Segundo os Padres de Sárdica a Cabeça é a sede romana, mas segundo Agostinho é Cristo...

É claro que o que diz aqui Agostinho é completamente escritural (Efésios 5:23; Colossenses 1:18; 1 Pedro 5:1-4). Nada há que objetar, exceto que o apologista romano parece supor que “a Igreja” a que aqui se refere Agostinho é “a Igreja de Roma” e não a Igreja católica antiga.

Queres confundir e envergonhar os pagãos e hereges, demostrando que nem um só deles possui o conhecimento de Deus, e sim unicamente a Igreja Católica? Podes, se assim o pensas, cantar e recitar inteligentemente as palavras do 75.

.....Se quiseres saber a diferença que medeia entre a Igreja católica e os cismáticos, e envergonhar estes últimos, podes pronunciar as palavras do 86.

Carta de Santo Atanásio a Marcelino sobre a Interpretação dos Salmos.

Sem dúvida, Atanásio tem razão aqui. Por outro lado, “Igreja Católica” não é nem de perto sinónimo de “Igreja de Roma”. Isto corre por conta do apologista romano, não do paladino da ortodoxia nicena.

“Aonde está Pedro, aí está a Igreja." - Santo Ambrósio de Milão, (Nos doze Salmos 381 D.C.)"

A citação é muito curta para grandes ilações. De qualquer modo, suponho que é o mesmo Ambrósio que escreveu “a fé é o fundamento da Igreja, porque não da pessoa humana de são Pedro, mas da fé, foi dito que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela” (De Incarnatione V, 34).

Em conclusão, é evidente que o primado do bispo romano não se pode demonstrar pelas Escrituras, e nem sequer é apoiado pela mais antiga tradição. Podemos afirmar sem qualquer receio de errar que os Padres antigos não consideravam o bispo romano com a mesma autoridade que o fazem os romanistas hoje. Eles não eram papistas como alguns apologistas romanos pressupõem.

A pretensão de primazia do bispo de Roma não foi baseada em alguma doutrina revelada e reconhecida pela Igreja universal, mas resultou de um longo e acidentado desenvolvimento, favorecido pela alienação das Igrejas do Oriente, e pelo desaparecimento da Igreja africana, pela anarquia posterior à queda do Império romano do ocidente, etc.

O poder romano foi pois cimentado ao longo de séculos, principalmente a partir da Idade Média (século V), mediante uma astuta e consistente política. Quando se tornou desmesurado, produziu-se o cisma entre a Igreja do Oriente e a do Ocidente.
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