terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Jerónimo mudou de opinião a respeito do cânon do Antigo Testamento? - I


Num artigo de James Akin e traduzido para português pode ler-se:

Além do mais, deve ser documentado que em anos mais tarde Jerônimo de fato aceitou certos deuterocanônicos como inspirados. Em sua resposta a Rufino, ele defendeu bravamente as partes deuterocanônicas de Daniel mesmo que os judeus de seu tempo não o fizessem.

Ele escreveu, "Que pecado eu cometi se segui o julgamento da Igreja? Mas ele que traz acusações contra mim por relatar as objeções a que os judeus estavam acostumados a formar contra a história de Susana... e a história de Bel e o dragão, que não se acham nos volumes hebraicos, provam que ele é apenas um bajulador insensato. Eu não estava relatando minha própria visão, mas antes as questões que eles (os judeus) estavam acostumados a fazer contra nós" (Contra Rufinus 11,33 [402 d.C.]). Desta forma Jerônimo reconheceu o princípio pelo qual o cânon foi fixado: o julgamento da Igreja, não dos judeus.

Ora, esta é uma vergonhosa deturpação que os apologistas católicos fazem do pensamento de Jerónimo, que revela bem a sua falta de honestidade intelectual.

Vejamos todo o texto de Jerónimo e todo o seu contexto. A parte em negrito é a porção citada pelo apologista católico.

Em relação a Daniel a minha resposta será que eu não disse que ele não era um profeta, pelo contrário, eu confessei no início do Prefácio que ele era um profeta. Mas queria mostrar qual era a opinião defendida pelos judeus, e quais eram os argumentos em que eles que se baseavam para a sua prova. Eu também disse ao leitor que a versão lida nas igrejas cristãs não era a dos tradutores da Septuaginta, mas a de Teodocião. É verdade, eu disse que a versão Septuaginta era neste livro muito diferente do original, e que ela foi condenada pelo reto julgamento das igrejas de Cristo, mas a culpa não foi minha que apenas afirmei o facto, mas daqueles que leram a versão. Temos quatro versões à escolha: a de Áquila, de Símaco, dos Setenta, e de Teodocião. As igrejas escolheram ler Daniel na versão de Teodocião. Que pecado eu cometi seguindo o julgamento das igrejas? Mas quando eu repito aquilo que os judeus dizem contra a História de Susana e o Hino dos três jovens, e as fábulas de Bel e o dragão, que não estão contidas na Bíblia hebraica, o homem que faz disto uma acusação contra mim mostra ser um tolo e um caluniador, porque eu não expliquei o que pensava, mas o que eles habitualmente dizem contra nós. Eu não respondi à sua opinião no Prefácio, porque estava a ser conciso, e temia que parecesse que estava a escrever não um Prefácio mas um livro. Por isso disse, “Quanto a isso este não é o momento para entrar em discussão”. De outra forma, uma vez que eu afirmei que Porfírio disse muitas coisas contra este profeta, e chamei, como testemunhas deste, Metódio, Eusébio e Apolinário, que responderam à sua estultícia em muitos milhares de linhas, também poderá acusar-me por não ter escrito no meu Prefácio contra os livros de Porfírio. Se houver alguém que dê atenção a coisas tolas como esta, devo dizer-lhe em alto e bom som e livremente que ninguém é obrigado a ler o que não quer, que eu escrevi para aqueles que me pediram, não para aqueles que escarnecem de mim, para os agradecidos não para os queixosos, para os zelosos não para os indiferentes. Contudo, admiro-me que um homem possa ler a versão de Teodocião o herege e judaizante, e possa desdenhar a de um cristão, ainda que simples e pecador. (Contra Rufino, II; 33)[www.ccel.org]

O contexto imediato é o Prefácio de Jerónimo ao livro de Daniel [www.ccel.org].  Os três livros de Jerónimo contra Rufino são uma resposta a um número de acusações específicas e pessoais de Rufino contra Jerónimo escritas na Apologia [www.ccel.org] endereçada a um amigo comum Apropianus.
Vejamos então qual é a acusação e a resposta que Jerónimo dá.

Diz Rufino na Apologia:

Eu não tenho nada a ver com uma verdade que os Apóstolos não aprovaram. Estas são as tuas próprias palavras: "Os ouvidos dos homens simples entre os latinos não devem, após 400 anos ser molestados pelo som de novas doutrinas". Ora tu próprio dizes: "Todos têm estado num erro ao pensarem que Susana proporcionou um exemplo de castidade para os casados ​​e os solteiros. Não é verdade. E todos ao pensarem que o jovem Daniel foi cheio do Espírito Santo e condenou os homens adúlteros, têm estado num erro. Isso também não foi verdade. E cada congregação pelo universo, seja daqueles que estão no corpo ou daqueles que já partiram para estar com o Senhor, mesmo que tenham sido santos mártires ou confessores, todos os que cantaram o Hino dos três jovens estiveram em erro, e cantaram o que é falso. (A Apologia de Rufino, III:35) [www.ccel.org]

Rufino acusa Jerónimo de dizer que 1) Daniel não é um profeta, 2) que a história de Susana não é verdadeira, 3) que a história do cântico dos três jovens não é uma história verdadeira. Rufino alega que Jerónimo faz estas afirmações contra o que é entendido pela Igreja como verdade. Jerónimo responde a estas erradas afirmações e diz:

Em relação a Daniel a minha resposta será que eu não disse que ele não era um profeta, pelo contrário, eu confessei no início do Prefácio que ele era um profeta. Mas queria mostrar qual era a opinião defendida pela judeus, e quais eram os argumentos em que eles que se baseavam para a sua prova. Eu também disse ao leitor que a versão lida nas igrejas cristãs não era a dos tradutores da Septuaginta, mas a de Teodocião. É verdade, eu disse que a versão Septuaginta era neste livro muito diferente do original, e que ela foi condenada pelo reto julgamento das igrejas de Cristo, mas a culpa não foi minha que apenas afirmei o facto, mas daqueles que leram a versão. Temos quatro versões à escolha: a de Áquila, de Símaco, dos Setenta, e de Teodocião. As igrejas escolheram ler Daniel na versão de Teodocião. Que pecado eu cometi seguindo o julgamento das igrejas? (Contra Rufino, II:33) [www.ccel.org]

Agora já se pode ver que a pergunta retórica de Jerónimo “Que pecado eu cometi seguindo o julgamento das igrejas?” no seu contexto tem um significado muito diferente. Na verdade, a pergunta que ele faz é referente à versão do texto grego usada nas igrejas, não ao cânon bíblico usado nas igrejas.

Diz que não condenou Daniel como profeta (como Rufino afirmava) mas a versão grega de Daniel traduzida pela Septuaginta que se opunha à versão de Teodocião. Jerónimo diz que a tradução da Septuaginta era muito diferente do original (que seria em hebraico) e acreditava que a versão de Teodocião era a melhor. As igrejas escolheram ler esta versão, e ele concorda com as igrejas. Que pecado ele cometeu? Que pecado as igrejas poderiam encontrar nele se ele concordava com elas? A resposta para ambas as questões é: Nenhum.

Jerónimo prossegue e passa a responder à acusação de Rufino de que ele acreditava que as histórias dos últimos capítulos de Daniel eram falsas, chamando o acusador de tolo e caluniador e que tem a certeza que o leitor perceberá que ele estava a referir o pensamento de alguns judeus e não o seu próprio pensamento. Jerónimo diz:

porque eu não expliquei o que pensava, mas o que eles habitualmente dizem contra nós…

Mas por que razão Jerónimo não respondeu a estas acusações dos judeus no prefácio de Daniel. Ele explica.

Eu não respondi à sua opinião no Prefácio, porque estava a ser conciso, e temia que parecesse que estava a escrever não um Prefácio mas um livro. Por isso disse, “Quanto a isso este não é o momento para entrar em discussão.”

Mas, então, qual foi o momento em que Jerónimo entrou em discussão sobre a versão mais longa de Daniel e podemos ver o que pensava da história de Susana e da história de Bel e o dragão?

A resposta a isto a podemos encontrar no seu comentário sobre Daniel [www.ccel.org] escrito no ano 407, cinco anos após a disputa com Rufino:

Mas entre outras coisas, devemos reconhecer que Porfírio faz-nos esta objeção sobre o Livro de Daniel, que ele é claramente uma fraude que não deve ser considerado como pertencente às Escrituras Hebraicas mas uma invenção composta em grego. Isso ele deduz do facto de que na história de Susana, onde Daniel está a falar com os anciãos, encontramos as expressões: "Para dividir da árvore de aroeira" (apo tou skhinou skhisai) e viu no carvalho sempre verde (kai apo tou prinou prisai), um jogo de palavras apropriadas para o grego, em vez de para o hebraico. Mas tanto Eusébio como Apolinário responderam-lhe após o mesmo teor, que as histórias de Susana e de Bel e o Dragão não estão contidas no hebraico, mas constituem uma parte da profecia de Habacuque, filho de Jesus, da tribo de Levi. Assim como encontramos no título dessa mesma história de Bel, segundo a Septuaginta, "Havia um certo sacerdote chamado Daniel, filho de Abda, um íntimo do rei da Babilônia". E, no entanto, a Sagrada Escritura testifica que Daniel e os três jovens hebraicos eram da tribo de Judá. Por esta mesma razão, quando eu traduzi Daniel muitos anos atrás, assinalei essas visões com um símbolo crítico, demonstrando que elas não estavam incluídas no hebraico. E a este respeito, estou surpreendido ao ser informado de que certos críticos reclamam que eu por minha própria iniciativa trunquei o livro. Afinal de contas, quer Orígenes, Eusébio e Apolinário e outros homens da Igreja proeminentes e doutores da Grécia reconhecem que, como eu disse, estas visões não são encontradas entre os hebreus, e que portanto eles não são obrigados a responder a Porfírio por estas partes que não exibem autoridade como Sagrada Escritura.

As adições às Escrituras hebraicas - a história de Susana, o hino dos três jovens, e as fábulas de Bel e o Dragão - já tinham sido colocadas em anexo na Vulgata por Jerónimo assinaladas com um "Obelus" que é um símbolo crítico usado em manuscritos antigos para marcar uma passagem questionável, como se pode ler no seu prefácio ao livro de Daniel.

De Susana – investigando o uso de um jogo de palavras Grego, Jerónimo diz:

Mas se tal derivação não pode ser encontrada, então nós também estamos necessariamente forçados a concordar com o veredicto daqueles que afirmam que este capítulo [grego perícope] foi originalmente composto em grego, porque contém etimologia grega não encontrada em hebraico. [Ou seja, porque Daniel por duas vezes  faz um sinistro jogo de palavras com base nos nomes gregos destas duas árvores, e um trocadilho semelhante não poderia ser feito a partir dos nomes hebraicos, se houvesse, destas árvores, a própria história nunca poderia ter sido composta em hebraico.] Mas se alguém conseguir mostrar que a derivação das ideias de divisão e corte a partir dos nomes das duas árvores em questão é válida em hebraico, então podemos aceitar esta escritura também como canónica.

Aqui Jerónimo faz um comentário retórico. O jogo de palavras é impossível em hebraico, e Jerónimo sabe-o. Diz que ninguém pode demonstrar que o jogo de palavras é possível em hebraico, de modo que esta porção de Daniel não pode ser aceite como canónica. Voltemos a Jerónimo:

A declaração da Escritura nesta passagem: "Ele clamou com grande voz", pode parecer, devido à sua referência a um idólatra ignorante de Deus, refutar a observação mencionada  pouco atrás, que a expressão "grande voz" é encontrada apenas em ligação com os santos. Esta objeção é facilmente resolvida, afirmando que esta particular história não está contida no hebraico do Livro de Daniel. Se, no entanto, alguém for capaz de provar que ela pertence ao cânon, então seremos obrigados a procurar alguma resposta para esta objeção.

Perante isto o que se pode pensar de alguém que diz que Jerónimo "defendeu bravamente as partes deuterocanônicas de Daniel" e que “mudou de posição”? Não! Jerónimo não mudou de posição! É exatamente o contrário. 
Problemas linguísticos e históricos mostram que "as partes deuterocanónicas de Daniel" não são de origem hebraica, mas grega. Foram uma adição posterior ao texto, rejeitada pelos judeus. Por isso Jerónimo opõe-se categoricamente à versão mais longa de Daniel e à inclusão da história de Susana e da história de Bel e o dragão no cânon!!!

Para uma resposta mais completa ver aqui

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Por que se diz que Marcos escreveu o Evangelho "baseado" no apóstolo Pedro?


Na sua História Eclesiástica do século IV, Eusébio de Cesareia relata a seguinte tradição proveniente do bispo Papias de Hierápolis:

"E o presbítero dizia isto: Marcos, intérprete que foi de Pedro, pôs cuidadosamente por escrito, ainda que não com ordem, quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o Senhor nem o havia seguido, mas, como disse, Pedro mais tarde, o qual transmitia os seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição das sentenças do Senhor, mas de sorte que Marcos em nada se enganou ao escrever algumas coisas tal como as recordava. É que pôs toda a sua preocupação numa só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enganar-se na mais pequena coisa"

(H.E. III, 39:15; Edição de Argimiro Velasco Delgado. Madrid: BAC, 1973, 1:194).

A questão da ordem provavelmente aparece por causa de acusações contra ter alterado a cronologia precisa de alguns acontecimentos. 

Apesar de outras tradições conservadas por Papias merecerem realmente pouco crédito, esta em particular parece confiável.

De facto, além de Papias, Ireneu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Jerónimo, e provavelmente o chamado cânon de Muratori (uma lista romana do segundo século) aceitaram que Marcos pôs por escrito as coisas acerca da vida do Senhor que ouviu de Pedro enquanto atuava como seu intérprete (grego hermêneutês), talvez uma espécie de secretário.

Uma evidência que corrobora esta tradição é que no Evangelho Marcos (que aparentemente não esteve presente durante a maior parte do ministério terrenal do Senhor) em várias partes escreve como o faria uma testemunha presencial:

Marcos 1:21,29; 5:1,38; 6:53-54; 8:22; 9:14, 30, 33; 10:32, 46; 11:1, 12, 15, 20, 27; 14:18, 22, 26, 32.

Em conclusão, embora a noção de que Marcos escreveu os feitos de Jesus tal como os pregava Pedro não seja um dogma de fé, parece muito provável do ponto de vista histórico. 
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