8 de junho de 2025

HANNO, O ELEFANTE BRANCO DO PAPA E O DESPERTAR DA REFORMA

 

Neste dia, há 509 anos, morria Hanno, o elefante branco do papa Leão X.

Hanno era um elefante-asiático albino, capturado na Índia e oferecido pelo rei D. Manuel I de Portugal a Giovanni de’ Medici (papa Leão X) por ocasião da sua coroação em 1514. Batizado em honra do general cartaginês Hanno, o animal tinha cerca de quatro anos quando aportou em Roma, vindo de Lisboa num navio adornado com bandeiras reais.

Quando a embaixada manuelina atravessou a cidade — um espetáculo que maravilhou os romanos — acompanhavam-na dois leopardos, uma pantera, papagaios multicoloridos, perus de plumagem rara e elegantes cavalos vindos da Índia. Hanno carregava às costas um palanque de prata, esculpido como um pequeno castelo, onde repousava um cofre com os presentes régios: mantos finamente bordados com pérolas e pedras preciosas e moedas de ouro cunhadas especialmente para a ocasião.

Em Roma, Hanno foi instalado inicialmente no pátio do Belvedere e depois transferido para um estábulo especialmente edificado entre a Basílica de São Pedro e o Palácio Apostólico. Tornou-se rapidamente o animal favorito da corte, participando em procissões e festas, exibições de “danças” e divertindo cardeais e romanos com jorros de água pela tromba.

As refeições de Hanno, que incluíam cana-de-açúcar, tâmaras e até vinho diluído, custavam à fazenda papal cerca de cem ducados mensais.

Dois anos após a chegada, em junho de 1516, Hanno adoeceu de angina — agravada pelo clima húmido da Cidade Eterna — e os médicos papais prescreveram-lhe um purgante especial: laxantes enriquecidos com ouro em pó, acreditando nas virtudes medicinais do metal precioso. O tratamento, longe de curá-lo, causou complicações fatais, e o elefante morreu a 8 de junho de 1516, com o próprio papa ao seu lado.

Leão X lamentou profundamente a perda e compôs um epitáfio que foi transcrito por Francisco de Holanda; Rafael chegou a pintar um fresco-memorial que hoje se perdeu. Hanno foi sepultado no Cortile del Belvedere e, pouco depois, inspirou o panfleto satírico de Pietro Aretino, “A Última Vontade e Testamento do Elefante Hanno”, onde o autor zombava dos príncipes e cardeais de Roma aproveitando-se da história do paquiderme.

A morte de Hanno não foi apenas um acontecimento exótico ou sentimental. À medida que o século XVI avançava, a figura do elefante branco — majestosa, inútil e tragicamente sacrificada em nome do luxo e da superstição — passou a ser evocada por críticos da Igreja como um emblema da decadência clerical.

Apenas um ano depois da morte de Hanno, em 1517, Martinho Lutero afixaria as suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, denunciando, entre outras coisas, a venda de indulgências e o desregramento da corte papal. O caso do elefante tornou-se, retroativamente, um símbolo pungente: o animal imperial morto pela vaidade, medicado com ouro enquanto o povo europeu se afundava em pobreza espiritual e material.


Referências Bibliográficas

Bedini, Silvio A. The Pope’s Elephant. Carcanet Press & Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

Aretino, Pietro. A Última Vontade e Testamento do Elefante Hanno (panfleto satírico, c. 1516). RTP Editora, 2004 (ed. fac-símile).

Oliveira, Maria Clara de. “Hanno: Representação de Poder na Arte Renascentista.” Dissertação de Mestrado, Universidade do Porto, 2018.

Kinsey, Lisa. “Elephants as Diplomatic Gifts in the Age of Discoveries.” Revista de História Moderna, vol. 27, 2018, pp. 45–68.

5 de junho de 2025

JOÃO CRISÓSTOMO: A FIDELIDADE ÀS ESCRITURAS É O CRITÉRIO DE IDENTIFICAÇÃO DA IGREJA VERDADEIRA

 

«Vem um pagão e diz: "Desejo tornar-me cristão, mas não sei a quem me juntar: há muita luta e fações entre vós, muita confusão: qual doutrina devo escolher?" Como lhe responderemos? "Cada um de vós", diz ele, "afirma: 'Eu falo a verdade'". Sem dúvida, isto está a nosso favor. Pois se lhe disséssemos que se deixe persuadir pelos argumentos, ele poderia ficar perplexo; mas se lhe dissermos que creia nas Escrituras, e estas são simples e verdadeiras, a decisão será fácil para ele. Se alguém concorda com as Escrituras, esse é o cristão; se alguém luta contra elas, esse está longe desta regra.» (João Crisóstomo, Homilia 33 sobre os Atos dos Apóstolos)

3 de junho de 2025

O PROBLEMA DO JUÍZO PRIVADO

 

Tenho observado que há uma falha grave na resposta dos protestantes às críticas dos apologistas católicos pop à Sola Scriptura. As suas respostas baseiam-se no seu próprio juízo particular em vez de se submeterem à autoridade dos apologistas católicos.

Os protestantes partem da suposição falaciosa de que se deve investigar lendo livros académicos em vez de ver vídeos do padre Paulo Ricardo ou confiar no Prof. Felipe Aquino. O problema é que, quando alguém faz uma verdadeira investigação, vai deparar-se com debates, divergências e formar um juízo privado.

Formar um juízo privado é um dos piores pecados intelectuais que alguém pode cometer. É por isso que nunca formo as minhas próprias opiniões ponderadas sobre nenhum assunto.

10 de maio de 2025

O PAPADO, OS FRANCISCANOS E OS VALDENSES: ENTRE SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

 

A Ordem dos Frades Menores nasceu de uma inspiração evangélica radical: a vivência da pobreza absoluta, da fraternidade e do desapego ao poder eclesiástico. Francisco de Assis não apenas recusava os privilégios clericais, como se colocava deliberadamente à margem das estruturas institucionais da Igreja. Sua regra era simples, oral, próxima do povo, e inspirada nos Evangelhos. Ele desejava que os seus irmãos fossem verdadeiramente "menores", isto é, sem posses, sem status e sem autoridade sobre os outros. Contudo, esse ideal sofreu um rápido processo de distorção e domesticação quando passou a ser regulado e apropriado pelo papado.

A primeira etapa dessa perversão deu-se quando o papa Inocêncio III aprovou a Regra franciscana oralmente em 1209, já com ressalvas sobre a sua viabilidade. Após a morte de Francisco (1226), o processo se acelerou. Gregório IX, seu antigo protetor, aprovou oficialmente uma versão institucionalizada da Regra, mais adaptada à burocracia romana do que à inspiração original. A partir de então, iniciou-se o processo de "clericalização" da ordem: criação de conventos estáveis, necessidade de autorização para pregar, exigência de formação universitária, e posse indireta de bens sob a forma jurídica de "propriedade papal". A bula Exiit qui seminat (1279) do papa Nicolau III foi decisiva nesse ponto: reconhecia que os bens dos franciscanos pertenciam à Santa Sé, que os "emprestava" à ordem — uma manobra jurídica que traía frontalmente o espírito de pobreza total de Francisco.

Esta submissão institucional transformou os Frades Menores em servidores do papado, relegando para segundo plano a sua vocação profética. Os frades passaram a ocupar cargos eclesiásticos, integraram-se ao sistema inquisitorial e participaram das disputas políticas medievais — tudo o que o "Poverello" rejeitava. O conflito entre a espiritualidade original e a ortodoxia institucionalizada gerou dissidências internas, como os "Espirituais", grupo que desejava seguir fielmente a Regra primitiva.

Entre os primeiros frades que resistiram a essa transformação, destaca-se Frei Leão, confidente íntimo de São Francisco. Leão foi o autor de textos como o Speculum Perfectionis, que revelam com clareza a ruptura entre o carisma fundacional e a ordem institucionalizada. Após a morte do fundador, Frei Leão se opôs abertamente ao ministro geral Elias de Cortona, que representava a ala mais próxima do papado e da política eclesiástica. Leão, assim como outros frades fiéis ao Testamento de Francisco, foi marginalizado, perseguido e exilado em eremitérios, onde viveu em silêncio e pobreza, resistindo espiritualmente à centralização romana. Ele simboliza a voz abafada do franciscanismo fiel à sua origem, recusando o caminho da obediência cega à autoridade papal que transformava o ideal evangélico em instituição eclesiástica funcional.

Em contraste com essa domesticação, o movimento dos valdenses, iniciado por Pedro Valdo no século XII, escolheu a via da fidelidade radical ao Evangelho mesmo à custa da exclusão da Igreja oficial. Valdo e seus seguidores também pregavam a pobreza voluntária, a simplicidade evangélica e a leitura da Bíblia, mas recusaram-se a submeter a sua missão à autoridade papal. Diferente dos franciscanos, os valdenses recusaram compromissos institucionais e, por isso, foram declarados hereges e duramente perseguidos. No entanto, a sua resistência preservou a sua independência espiritual. Enquanto os franciscanos foram incorporados à máquina eclesiástica, os valdenses mantiveram a sua autonomia em nome da fidelidade ao Evangelho primitivo.

A história da Ordem Franciscana mostra, assim, como o papado subverteu um movimento profético em nome da disciplina e da ortodoxia, sufocando as vozes que — como Frei Leão — apontavam para a incoerência de uma Igreja rica, autoritária e distante dos pobres. Enquanto os valdenses foram perseguidos por sua desobediência, os franciscanos foram recompensados por sua submissão. Mas ao custo da perda de sua alma originária.

Em Frei Leão, contudo, sobreviveu a memória incómoda de um Evangelho sem poder, sem propriedade, sem papado.

 

Referências Bibliográficas

  • Moorman, John R. H. A History of the Franciscan Order from Its Origins to the Year 1517. Oxford: Clarendon Press, 1988.
  • Burr, David. The Spiritual Franciscans: From Protest to Persecution in the Century After Saint Francis. Penn State Press, 2001.
  • Lambert, Malcolm. Medieval Heresy: Popular Movements from the Gregorian Reform to the Reformation. Oxford: Blackwell, 1998.
  • Esser, Kajetan. Origins of the Franciscan Order. Franciscan Herald Press, 1970.
  • Audisio, Gabriel. The Waldensian Dissent: Persecution and Survival, c.1170–c.1570. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

8 de maio de 2025

HABEMUS PAPAM CHRISTIANUM

 

DOCUMENTO CONFIDENCIAL – FUGA DE INFORMAÇÃO
Fonte: Alto Prelado da Cúria Romana, sob anonimato
Local: Residência papal, Vaticano
Data: [CONFIDENCIAL]

Discurso do Papa Petrus Secundus ("Pedro II") sobre a Abolição do Papado
Praça de São Pedro, Vaticano – Solene Consistório Extraordinário

Irmãos e irmãs em Cristo,

Com o coração pesado, mas iluminado pela fé que nos une, ergo a minha voz nesta praça sagrada, diante do altar do mundo, não para reafirmar poder, mas para testemunhar humildade.

Assumi este ministério não como trono, mas como cruz. E é da cruz que vos falo agora.

Nestes tempos de clamor humano, de fome de justiça, de sede de verdade, de uma terra exausta sob o peso das estruturas, escutei não só os clamores dos pobres e dos esquecidos, mas também o sussurro do Espírito Santo, que não habita palácios, mas corações.

A Igreja de Cristo nasceu entre pescadores, não entre príncipes. Cresceu partilhando o pão, não acumulando ouro. A força do Evangelho reside na fraqueza do mundo, e a sua glória, na simplicidade do amor.

Assim, após oração profunda, conselho de irmãos e discernimento sincero diante de Deus, anuncio ao mundo: o papado, como estrutura monárquica e centralizada, será abolido.

Não renuncio — dissolvo.
Não abandono — devolvo.

A autoridade será restituída às comunidades, aos bispos, aos fiéis. A Igreja, Povo de Deus, caminhará agora em colegialidade plena, livre de coroas, anéis e tronos. O Espírito sopra onde quer, e agora sopra para além destas muralhas.

Peço perdão pelas vezes em que este cargo se sobrepôs à mensagem de Jesus. Peço coragem a todos para construirmos uma Igreja horizontal, servidora, pobre com os pobres, universal em amor.

Não deixo um vazio. Deixo espaço. Para que o Cristo, cabeça da Igreja, seja o único centro. E para que cada um de vós, batizado, assuma o seu lugar na construção do Reino.

Que a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guarde os nossos corações neste novo êxodo.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Amém.

Discurso do Papa Petrus Secundus ("Pedro II") sobre a Abertura da Igreja ao Evangelho Pleno
Praça de São Pedro, Vaticano – Solene Consistório Extraordinário

Irmãos e irmãs em Cristo,

Hoje falo-vos não com a autoridade de um trono, mas com a liberdade de quem foi alcançado pela graça. Falo-vos como servo de Jesus, e apenas d’Ele.

A história nos concedeu séculos de luz, mas também séculos de sombras. Com temor e tremor, reconheço que, por vezes, em nome da Igreja, nos afastámos do Evangelho — aquele Evangelho simples, eterno, que proclama: “O justo viverá pela fé.” (Romanos 1:17)

Sim, afirmo hoje, com toda a clareza: a salvação é dom gratuito de Deus, pela fé em Jesus Cristo, e não por obras, nem por méritos, nem por rituais humanos. Nenhuma moeda lançada, nenhum documento assinado, nenhum castigo temporal pode acrescentar uma gota ao sangue que Cristo já derramou na cruz. Ele disse: Está consumado. E cremos n’Ele.

Por isso, diante do céu e da terra, declaro abolido o sistema de indulgências. O perdão não se vende. A graça não se negocia. A misericórdia não tem preço.

E com igual seriedade, rejeito a doutrina do purgatório como fardo que a Escritura não sustenta. O que está ausente do Evangelho, não pode permanecer como doutrina da Igreja. A cruz é suficiente. Cristo é suficiente.

Digo-vos com o coração nu: não há mais necessidade de intermediários terrenos entre Deus e o homem, pois “há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo” (1 Timóteo 2:5). Que se ouça isto em todas as línguas: solus Christus, sola fide, sola gratia.

E é por isso que, hoje, renuncio ao papado como instituição. Não por fraqueza, mas por fidelidade. O Corpo de Cristo não precisa de coroa, precisa de Cristo. O mundo já teve papas. Agora precisa de discípulos.

Que a Igreja se reconstrua, não sobre pedra de autoridade humana, mas sobre a Rocha da fé. Que todo o joelho se dobre — não diante de um nome entre homens, mas diante do Nome acima de todo nome.

A partir deste dia, caminharemos como irmãos, guiados pela Palavra, pelo Espírito e pela cruz vazia. Que este seja o início de uma reforma sem retorno — não de estruturas apenas, mas de corações.

A Deus toda a glória. A Cristo todo o senhorio. À Igreja, a liberdade dos filhos.

Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.
Amém.

19 de abril de 2025

A ORIGEM ETIMOLÓGICA DO TERMO “PROTESTANTE”

 

Neste dia, há 496 anos, na Dieta de Speyer, seis príncipes e os representantes de 14 cidades imperiais emitem um “Protesto” formal contra a tentativa do Imperador Carlos V de suprimir o crescente movimento luterano e impor a uniformidade na religião. Defendem o direito de praticar a fé de acordo com a consciência, marcando um momento decisivo na Reforma. Desta posição ousada nasce o termo “protestante”.

O termo “protestante” está, portanto, intimamente ligado à luta pela liberdade religiosa e liberdade de consciência.

16 de abril de 2025

NICEIA II: UM CONCÍLIO ECUMÉNICO?

 

I) Ausência da Pentarquia. Apesar da alegação do Concílio de ter todos os cinco Patriarcas presentes — Roma, Constantinopla, Antioquia, Alexandria e Jerusalém —, Richard Price afirma que os bispos de Antioquia, Alexandria e Jerusalém não foram nem informados da convocação do Concílio, nem estiveram representados nele por legados oficiais (Price, 198–205) [1]. Afirma que Niceia II reviveu a ideia da Pentarquia como forma de reforçar a sua própria autoridade e anular o iconoclasta Concílio de Hieria de 754, mas que isso foi uma miragem. No final, apenas Roma e Constantinopla estavam presentes.

II) Ausência do Ocidente. Além dos dois legados papais enviados de Roma, não havia bispos ocidentais presentes em Niceia II. Isso não se deveu ao facto de não poderem comparecer, mas sim ao facto de não terem sido convidados, e isto num momento em que poderiam tê-lo feito: Carlos Magno estava a construir o que em breve se tornaria o Sacro Império Romano e tinha os recursos e o desejo de participar nos assuntos da Igreja. No Concílio de Frankfurt, os teólogos de Carlos Magno objetaram que Niceia II não tinha o direito de definir doutrina para toda a Igreja sem "investigar a opinião da Igreja sobre este assunto em cada uma das suas partes" (citado em Price, 72). Assim, com basicamente a metade ocidental da cristandade não convidada para Niceia II, quão "ecuménico" foi ele?

III) A lenta recepção e rejeição de Niceia II. De todos os sete concílios ecuménicos, a recepção de Niceia II foi a mais lenta, sendo mesmo rejeitado por alguns. No Oriente, antes da realização de Niceia II, o Concílio de Hieria de 754 — que contou com a presença de 338 bispos, mais do que qualquer uma das sessões de Niceia II (Price, 457, 685, 687) — apoiou a posição iconoclasta. Este Concílio de Hieria foi chamado o sétimo concílio ecuménico nos séculos VIII e IX no Oriente. Após Niceia II, o Oriente chegou a anulá-lo, e foi somente em 843 que o "Triunfo da Ortodoxia" pôde ser declarado, e o iconodulismo foi firmemente estabelecido [2]. No Ocidente, Niceia II foi rejeitado por Carlos Magno e seus teólogos, que realizaram o seu próprio concílio, o Concílio de Frankfurt de 794, no qual assumiram uma posição intermédia, entendendo que as imagens funcionavam como os "livros dos analfabetos" [3]. Mesmo Roma não aceitou Niceia II como o sétimo concílio ecuménico até 880, e parte da sua decisão parece ter sido uma tentativa de obter ajuda bizantina para as suas batalhas militares contra os sarracenos (Price, 75) [4]. Tanto no Oriente como no Ocidente, Niceia II parece ter permanecido desconhecido (ou ignorado) fora de Roma e Constantinopla. Price observa que "durante os séculos seguintes, Niceia II não foi adicionado à lista de concílios ecuménicos na Síria-Palestina" (204) e, no Ocidente, foi apenas quando partes de Niceia II foram incluídas no Decretum de Graciano, por volta de 1140, que ele entrou para o direito canónico "convencional" (76). Por fim, nenhuma tradição protestante aceitou Niceia II nos seus documentos oficiais, e a maioria foi hostil a parte ou a toda a sua teologia referente à veneração de ícones.

Notas:

[1] Isto pode ter ocorrido devido à dificuldade de comunicação com estes bispos devido aos seus governantes árabes.

[2] Price observa que o Sínodo de Constantinopla de 815, que restabeleceu o iconoclasta Concílio de Hieria, obteve “aceitação imediata […] pela esmagadora maioria dos bispos, clérigos e monges” e, portanto, “podemos presumir que […] a alegação de Niceia II de que a falta de veneração de imagens era uma verdadeira heresia não convenceu” (62). Germano seria um exemplo de “iconófilo moderado” que não considerava o iconodulismo idólatra, mas também não afirmava que era necessário (Price, 250-251).

[3] Esta era, essencialmente, também a posição de Gregório Magno. Curiosamente, isto não está muito longe da posição de Hieria; Price escreve: “Mas a principal preocupação dos iconoclastas bizantinos não era destruir imagens – e vimos que a extensão da destruição real é desconhecida – mas parar a sua veneração” (18).

[4] Apesar de cf. Comentários de Adriano na sua carta de 792 a Carlos Magno: “aceitamos este concílio” (Price, 66). Mas isto parece ser uma referência à sua aceitação como um sínodo local (Price, 67, 75).

Bibliografia:

Richard Price, The Acts of the Second Council of Nicaea (787) (Liverpool University Press, 2020).

12 de abril de 2025

A OPINIÃO DE GREGÓRIO NAZIANZENO SOBRE OS CONCÍLIOS

 

Gregório de Nazianzo escreveu a seguinte carta, em 382, após ter presidido ao segundo concílio “ecuménico” [1], reunido em Constantinopla em 381, e ter abandonado tal concílio a meio:

Epístola CXXX para Procopius:

«De minha parte, para escrever a verdade, a minha inclinação é evitar todas as assembleias de bispos, porque nunca vi nenhum Concílio chegar a um bom fim, nem se tornar uma solução para os males. Pelo contrário, costuma aumentá-los. Sempre se encontra ali amor à contenda e amor ao poder (espero que não me achem desagradável por escrever assim), de forma indescritível; e, enquanto julga os outros, um homem pode muito bem ser condenado por ter cometido um erro muito antes de conseguir reprimir os erros de seus opositores. Por isso me afastei; e cheguei à conclusão de que a única segurança para a alma reside em manter o silêncio.» 

Gregório respondia a Procopius, que em nome do imperador o convocou em vão para outro sínodo. A experiência que teve um ano antes, no concílio de Constantinopla, o levou a não querer ouvir falar mais em “assembleias de bispos”.

O seu discurso, claramente, não é de alguém que acredita que os Concílios ecuménicos são infalíveis, como hoje acreditam os católicos romanos e os ortodoxos orientais nas suas visões míticas da história.

E quanto à figura do papa como autoridade suprema e universal sobre toda a igreja? É uma noção completamente ausente nesta epístola de Gregório de Nazianzo.

[1] O concílio de Constantinopla em 381 não tinha um único bispo latino, era constituído apenas por cento e cinquenta bispos gregos, e foi elevado à categoria de “ecuménico” pelo consentimento da igreja latina em meados do século seguinte.

11 de abril de 2025

JESUS ENSINANDO A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

 

«E disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado.» (Lucas 18:9-14)

5 de abril de 2025

O «FIAT» DE JOSÉ

 

Segundo o Catecismo da Igreja Católica:

973 Ao pronunciar o «Fiat» da Anunciação e dando o seu consentimento ao mistério da Encarnação, Maria colabora desde logo com toda a obra a realizar por seu Filho. Ela é Mãe, onde quer que Ele seja Salvador e Cabeça do Corpo Místico.

O “fiat” alude à tradução da Vulgata de Lc 1,38:

fiat mihi secundum verbum tuum

“Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

Os teólogos católicos agem como se isso significasse que Deus estava a colocar à votação o plano da redenção ao dar a Maria poder de veto. Obviamente, a Anunciação é um anúncio do que Deus fará acontecer.

1) Há apologistas católicos que dizem que se o nascimento virginal não foi consensual, então ele foi uma violação. Isto ignora o facto elementar de que uma violação requer sexo: penetração na relação sexual. Mas é óbvio que a conceção virginal não é sexual. Violação sem sexo?

2) Ainda assim, continuemos com o argumento católico, fazendo uma comparação. Em Mt 2, José recebe alguns sonhos revelatórios. Eles são premonições de perigo. Os sonhos levantam implicitamente o espectro de futuros alternativos. Se José ficar em Belém, o seu pequeno filho será morto pelos capangas de Herodes. Mas ele pode evitar este resultado hipotético se fugir a tempo. Se as coisas continuarem como estão, na sua trajetória atual, Jesus terá uma morte prematura.

3) Isto levanta uma questão para os cristãos libertários. Não atender ao aviso angélico era uma opção viável para José? Pense-se o que isso implicaria. Não estamos a falar aqui apenas do destino de um indivíduo isolado. O destino de toda a raça humana estaria em causa. A Encarnação seria em vão. Séculos de preparação providencial seriam destruídos. Deus teria de começar do zero. Então, por paridade de argumentos, porque é que o catolicismo realça o "fiat" de Maria, mas ignora o "fiat" de José?

4) Além disso, a lógica do argumento católico estende-se a muitos outros intervenientes na história da redenção. Considere-se a chamada de Abraão.

4 de abril de 2025

DORMINDO COM O INIMIGO

 

Arthur Lovejoy está certamente correto ao dizer que o Deus austero da metafísica aristotélico-tomista não tem quase nada em comum com o Deus do Sermão do Monte — contudo, por um dos mais estranhos e marcantes paradoxos da história ocidental, a teologia filosófica da cristandade identificou um com o outro” (Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being (Harvard, 1936), p. 5).

Os ‘incrédulos’ contra cujo ‘ridículo’ [Aquino] desejava proteger a causa cristã ao não tentar oferecer provas racionais para a Trindade eram, sem dúvida, os filósofos muçulmanos e judeus, cuja abordagem ele tanto admirava e imitava. O que ele provavelmente não percebeu é que os seus argumentos para a simplicidade divina que ele adotou, e que eram o fundamento para o ‘ridículo’ deles, não tinham de forma alguma surgido num contexto neutro, mas tinham sido forjados como armas numa batalha contra a doutrina da Trindade... Ironicamente, então, Tomás aceitou como os resultados do raciocínio natural autêntico uma tradição que tinha sido formada especificamente para se opor ao teísmo trinitário no qual ele acreditava. (Robert M. Burns, “The Divine Simplicity in St. Thomas”, Religious Studies 25/3 (1989), p. 287).

30 de março de 2025

UNIVERSALISMO HIPOTÉTICO

 

Uma distinção importante do comentário de Zacarias Ursinus (1534-1583) ao seu Catecismo de Heidelberg.

Objeção. 4. Se Cristo fez satisfação por todos, então todos deveriam ser salvos. Mas nem todos são salvos. Portanto, Ele não fez uma perfeita satisfação.

Resposta: Cristo satisfez por todos, com respeito à suficiência da satisfação que Ele fez, mas não com respeito à sua aplicação.

(Zacarias Ursino, Comentário sobre a Questão 37 do Catecismo de Heidelberg)

É evidente que a doutrina que afirma que a expiação de Cristo é limitada quanto à sua suficiência e não quanto à sua eficácia (porque nem todos creem) não lembra nem ao diabo.

“Ele é o sacrifício de expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos mas também pelos do mundo inteiro.” (1 João 2:2)

A Doutrina Reformada da Expiação: O que é Universalismo Hipotético? (com Dr. Michael Lynch)

14 de março de 2025

QUANDO O VATICANO INCITOU O REGIME FASCISTA DE MUSSOLINI A PERSEGUIR OS CRISTÃOS PENTECOSTAIS

 

No livro I pentecostali negli archivi: Introduzione di Giancarlo Rinaldi, a autora, Marina Pagano, pentecostal de terceira geração, aluna na Escola de Estudos de História do Cristianismo da Universidade de Roma La Sapienza, recolhe centenas de documentos relacionados com os acontecimentos dos pentecostais italianos no século XX, vasculhando os arquivos do Estado italiano e do Vaticano.

Os documentos são reproduzidos em fotografias ou transcritos com cuidado, recolhidos, sistematizadas, organizados e oferecidos aos leitores.

O livro demonstra que uma circular chamada “Buffarini Guidi” (que proibia o culto pentecostal) não era uma ordem propriamente fascista, como é repetido ad nauseam, mas foi literalmente "ditada" pelas mais altas autoridades do Vaticano. Prova disso é a sua vigência (8 anos durante o fascismo; 12 anos na 'democracia' do pós-guerra). Quem são os principais autores da infame circular? Podem-se encontrar nomes como o do próprio Papa Pio XI, o núncio Borgongini Duca, Igino Giordani, que mais tarde descobriu o ecumenismo e fundou o movimento dos Focolares, mas na altura era um feroz opositor de todas as formas de protestantismo. Eles ditaram literalmente o texto ao diretor do Ministério do Interior fascista.

Como resultado desta perseguição, dezenas de igrejas foram fechadas, muitos pentecostais foram presos e alguns morreram na prisão ou em campos de concentração.

https://www.academia.edu/128050377/I_pentecostali_negli_archivi


Outros livros interessantes relacionados com a aliança entre a Igreja Católica e o regime fascista italiano contra os protestantes:

Kevin Madigan, The Popes against the Protestants: The Vatican and Evangelical Christianity in Fascist Italy, Yale University Press, 2021.

David I. Kertzer, The Pope and Mussolini: The Secret History of Pius XI and the Rise of Fascism in Europe, Random House Trade Paperbacks, 2015.

9 de março de 2025

AS SALSICHAS DE ZURIQUE

 

Neste dia, há 503 anos, um grupo de homens, que incluía Ulrich Zwingli, Leo Jud, Klaus Hottinger e Lorenz Hochrütiner, reuniram-se na gráfica de Christoph Froschauer em Zurique para comer uma refeição de salsichas fumadas numa violação deliberada das leis da cidade sobre o jejum quaresmal.

Zwingli não comeu as salsichas, mas defendeu a liberdade cristã daqueles que o fizeram com a publicação do tratado "Da escolha e liberdade nas comidas" onde dizia “Os cristãos são livres de fazer jejum ou não porque a Bíblia não proíbe de comer carne durante a Quaresma".

O Conselho de Zurique condenou a ação a princípio e Froschauer foi preso.

O evento, no entanto, foi bem-sucedido ao abrir um debate público sobre o assunto. Como resultado, o povo e os governantes da cidade aderiram às ideias da Reforma e um ano depois o Conselho decidiu que todas as leis sobre jejum seriam abolidas, pois não tinham base bíblica. Em Basileia, um evento semelhante aconteceria com os participantes a comer um porco assado.

A Reforma se espalharia a partir daí para vários lugares no sul da Alemanha, para a Holanda, Inglaterra e América.

E qual foi o destino dos participantes na refeição escandalosa? Froschauer veio a ser fundamental na impressão e divulgação da Bíblia de Zurique até a sua morte em 1564.

Zwingli tornou-se a figura de proa dos Reformados até sua morte na batalha de Kappel em 1531. Lugar que Leo Jud assumiria junto com Heinrich Bullinger.

Klaus Hottinger tornou-se o primeiro mártir da Reforma Suíça sendo executado em Lucerna em 1524 por divulgar ensinos bíblicos.

Lorenz Hochrütiner infelizmente separou-se de Zwingli e se tornou um anabatista alguns anos depois. Ele foi expulso primeiro de Zurique, depois de St. Gallen e, por último, de Basileia pelos seus ensinos e acabou em Estrasburgo, onde desapareceu.

O caso das salsichas de Zurique ficou na história como um símbolo da liberdade cristã e é considerado de semelhante importância às 95 Teses de Martinho Lutero em Wittenberg para a Reforma Protestante.

5 de março de 2025

O QUE HÁ DE ERRADO COM EXPRESSÕES COMO "MÃE DE DEUS" E "DEUS MORREU NA CRUZ"?

Um dia destes deparei-me com alguém que afirmava energicamente que quem não afirmasse que “Maria é mãe de Deus” e que “Deus morreu na cruz” era um perigoso herege nestoriano, como se o problema do nestorianismo fosse não afirmar certas expressões e não rejeitar a divindade de Jesus Cristo e a sua dupla natureza plenamente divina e plenamente humana.

Quanto à primeira expressão “Mãe de Deus”, estava convencido que com as devidas qualificações era tecnicamente correta, mas a segunda expressão “Deus morreu na cruz” soou-me muito mal. Será que é mesmo correto dizer que "Deus morreu"? O que se passa aqui? Então pensei melhor no assunto e mudei de opinião.

Segundo a communicatio idiomatum (comunicação de atributos), o que é verdadeiro para uma natureza é verdadeiro para a Pessoa portadora dessa natureza. Não é atribuir as propriedades de uma natureza a outra natureza, mas predicar ambos os conjuntos de propriedades ao indivíduo que as compartilha.

E o problema destas expressões está precisamente aqui. Elas confundem as naturezas de Cristo e atribuem uma propriedade da natureza humana (ter uma mãe ou ser mortal) à natureza divina (Deus) e não à Pessoa. O equívoco está na palavra "Deus" que denota a natureza divina da Pessoa e não a Pessoa. 

O correto é dizer que Maria é mãe (ter uma mãe é atributo da natureza humana) de Jesus Cristo (a Pessoa) ou do Filho de Deus (a Pessoa) ou do Senhor (a Pessoa) que é Deus (natureza divina da Pessoa) além de homem (natureza humana da Pessoa).

É errado dizer que Maria é mãe (ter uma mãe é atributo da natureza humana) de Deus (natureza divina da Pessoa).

O correto é dizer que Jesus Cristo (a Pessoa) ou o Filho de Deus (a Pessoa) ou o Senhor (a Pessoa) morreu (ser mortal é atributo da natureza humana) na cruz.

É errado dizer Deus (a natureza divina) morreu (atributo humano) na cruz.

Dizer que Maria é mãe de Deus, incorre no mesmo erro de dizer que Jesus Cristo homem era omnipresente ou omnisciente. Jesus Cristo homem denota a natureza humana de Cristo e não a Pessoa. O erro é o mesmo - predicar atributos da natureza humana na natureza divina e vice-versa. Mas nem tudo o que é verdade para uma natureza é verdade para a outra. É por isso que estas expressões que contêm a palavra “Deus” predicada com atributos humanos soam terrivelmente mal e são metafisicamente incorretas.

«Nosso Senhor Jesus Cristo era Deus e homem: como Deus não tinha mãe, como homem, sim. Maria era pois mãe da carne dele, mãe da sua humanidade.» (Agostinho de Hipona, Tratados sobre o Evangelho de João, 8.8-9).

27 de fevereiro de 2025

A BÍBLIA DE JESUS

 

A Bíblia de Jesus era o cânon hebraico, conhecido hoje entre nós como o Antigo Testamento, que contém 39 livros segundo a contagem cristã ou 22 ou 24 segundo a contagem hebraica.

Uma evidência indireta do cânon hebraico, sobre o qual claramente existia um consenso no século I, é o modo em que Jesus fez referência ao primeiro e ao último mártir segundo a ordem tradicional hebraica:

“Por isso disse a Sabedoria de Deus: Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, e a alguns os matarão e perseguirão, para que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até ao sangue de Zacarias, que pereceu entre o altar e o santuário. Sim, vos asseguro que se pedirão contas a esta geração.” Lucas 11:49-51

Jesus refere-se aqui a todos os justos e enviados de Deus que sofreram o martírio segundo as Escrituras. A frase grega apo haimatos Abel eôs haimatos Zachariou, «desde (o) sangue de Abel ... até (o) sangue de Zacarias» (Lucas 11:51 = Mateus 23:35) abarca a totalidade dos mártires do Antigo Testamento, desde Abel às mãos do seu irmão Caim, até o martírio de Zacarias, que é narrado em 2 Crónicas:

"O Senhor enviou-lhes profetas que deram testemunho contra eles para que se convertessem a ele, mas não lhes deram ouvidos. Então o Espírito de Deus revestiu Zacarias, filho do sacerdote Joiadá que, apresentando-se diante do povo, lhes disse: «Assim diz Deus: Por que transgredis os mandamentos do Senhor? Não tereis êxito, pois, por ter abandonado o Senhor, ele vos abandonará a vós». Mas eles conspiraram contra ele, e por ordem do rei, o apedrejaram no átrio da casa do Senhor." 2 Crónicas 24:17-21

No entanto, a referência a Abel e Zacarias como o primeiro e o último mártir, respetivamente, registados nas Escrituras não é cronológica. Há pelo menos um mártir posterior a Zacarias, a saber, Urias, filho de Semaías, que foi assassinado no século VII a.C., durante o reino de Joaquim (Jeremias 26:20-24); entretanto Zacarias tinha sido martirizado muito antes, no século IX a.C., durante o reino de Joás em Judá.

Como deve entender-se então a referência de Jesus a Abel e Zacarias? A amplitude da lista de mártires não é evidente no Antigo Testamento das nossas versões modernas, pois a ordem dos livros difere da ordem hebraica. No Antigo Testamento da maioria das edições modernas, os livros dos Profetas aparecem no final, começando por Isaías e finalizando com Malaquias. Em contrapartida, os 24 livros do cânon hebraico (que correspondem aos 39 das Bíblias protestantes) se ordenavam como se segue:

I. A Torah (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio)

II.  Os Profetas

A. Profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel I e II, Reis I e II)

B. Profetas posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias)

III. Os Escritos (Salmos, Provérbios, Job, Cantares, Rute, Lamentações, Qohélet [Eclesiastes], Ester, Daniel, Esdras-Neemias, Crónicas I e II).

Em outras palavras, aqui Crónicas figurava no final da lista. A abrangente expressão de Jesus adquire sentido quando, no contexto de juízo pelo sangue inocente derramado, se entende como uma referência ao primeiro e último assassinato registado nas Escrituras, segundo a ordem tradicional do cânon hebraico: dizer «desde Abel até Zacarias» era equivalente a «de Génesis a Crónicas», ou seja desde o primeiro até ao último livro do cânon do Antigo Testamento. É como se hoje disséssemos, segundo a ordem tradicional do nosso Antigo Testamento, «De Génesis a Malaquias».

Logo, estas palavras do Senhor implicitamente sancionam o cânon hebraico como os oráculos de Deus confiados aos judeus, de que fala Paulo (cfr. Rom 3:2).

14 de fevereiro de 2025

SOBRE APARIÇÕES MARIANAS (OU OUTROS SERES DO ALÉM)


Sinais, milagres e maravilhas devem ser julgados por nós. Se te aparece um ser sobrenatural que diz ser a virgem Maria, mais católica romana do que o Papa, que afirma dogmas católicos que tu sabes que são claramente falsos e manda fazer coisas irracionais e imorais, isso funciona como derrotantes para essa aparição e, portanto, não deves dar crédito a esse ser vindo do além, seja ele quem for.

«E não é de admirar, porquanto o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz.» (2 Coríntios 11:14).

9 de fevereiro de 2025

DEFENDAMOS BASÍLIO MAGNO DOS ICONÓDULOS

 

Confesso a aparência do Filho de Deus na carne, e a santa Maria como a mãe de Deus, que deu à luz segundo a carne. E eu recebo também os santos apóstolos e profetas e mártires. Suas semelhanças eu reverencio e beijo com homenagem, pois elas são transmitidas dos santos apóstolos e não são proibidas, mas, pelo contrário, pintadas em todas as nossas igrejas.” (Basílio Magno, Epístola 360).

Apesar de este texto ter sido usado no Concílio de Niceia II como argumento a favor do culto das imagens, Basílio não escreveu isto. Todos os estudiosos da área concordam que este é um texto espúrio, uma falsificação iconófila.

O que não impede que ainda hoje se tente passar este texto como autêntico em algumas fontes católicas ou ortodoxas pouco escrupulosas.

A linguagem da epístola 360, aparentemente endereçada a ninguém em particular, revela uma origem muito posterior ao tempo de Basílio, própria da época da controvérsia iconoclasta. Sabemos por outras evidências da igreja primitiva que pelo menos partes significativas da igreja proibiam ícones, e portanto a afirmação de que a iconografia, descrita na referida homenagem e beijo das imagens, “não é proibida” é falsa. Além disso, se a iconografia foi realmente “transmitida” desde o início e era onipresente, como a epístola afirma, por que razão Basílio declararia o óbvio? Ou seja, por que razão um cristão antigo escreveria a outro sobre uma prática cristã supostamente antiga e difundida afirmando que ela “não era proibida”, se todos sabiam que ela não era proibida? Quando é que nós defendemos práticas cristãs antigas e difundidas como cantar? A epístola 360 tem fortes evidências de “anacronismos” e é tão amplamente questionada que não aparece na maioria das coleções das cartas de Basílio.

The Acts of the Second Council of Nicaea (787), ed. Richard Price, Liverpool University Press 2018, p. 314.



Um outro texto presente nas atas de Niceia II (4ª Sessão) é o comentário de Basílio Magno, feito na sua obra Sobre o Espírito Santo, onde ele afirma que “a honra prestada à imagem passa para o arquétipo” (18.45.19-20). O Concílio utilizou este texto para reforçar a sua defesa sobre a veneração de imagens, mas o contexto dos comentários de Basílio era outro. Como escreve Richard Price: “O contexto era a totalidade do culto prestado a Cristo como a imagem natural do Pai, mas, retirada do seu contexto imediato, esta afirmação pode ser aplicada ao papel das imagens artísticas ou miméticas, com a mensagem de que uma imagem deve receber exatamente o mesmo grau de honra que seu arquétipo” (45).

«A alegação iconoclasta de que a reverência para com as imagens não remontava à época de ouro dos padres, e muito menos aos apóstolos, seria hoje julgada por historiadores imparciais como simplesmente correta. A visão iconófila da história do pensamento cristão e da devoção cristã era [em Niceia II] virtualmente uma negação da história».

The Acts of the Second Council of Nicaea (787), ed. Richard Price, Liverpool University Press 2018, p. 43.

21 de janeiro de 2025

O DOM DA FÉ

 

"Se a fé é devida unicamente à livre escolha e não é dada por Deus, por que oramos por aqueles que não estão dispostos a crer para que possam crer?"

(Agostinho, Sobre a Graça e a Livre Escolha, cap.29)


1. Os teístas do livre-arbítrio (ou arminianos) dizem que a fé é como uma mão vazia que agarra a oferta de salvação. A fé não é um produto da graça salvífica; antes, a graça salvífica é o resultado da fé.

Comparemos isso com Efésios 2:8:

«Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.»

Eis o que um comentador e estudioso do grego diz:

«Em grego, os eventos como um todo são tratados como coisas neutras singulares com artigos neutros (p. ex., to pisteuein, "crer"), pronomes relativos neutros (p. ex., Ef 5:5) ou pronomes demonstrativos neutros, como no v8b (também, p. ex., 6:1; 1 Co 6:6,8; Fp 1:22,28; Cl 3:20; 1 Ts 5:18; 1 Tm 2:1-3). Portanto, o antecedente de touto [isto] é o evento inteiro: "Ser salvo pela graça por meio da fé". Uma implicação desta compreensão correta de touto é que todos os componentes do evento também são referenciados como originários não da capacidade ou esforço humano, mas como um dom de Deus. Isto significa que até mesmo o ato de crer do crente vem de Deus, como é dito mais explicitamente por Paulo em outro lugar: "Porque a vós vos foi concedido, por amor de Cristo, não somente crer nele..." (Fp 1:29). Isto é parte da evidência da posição histórica do protestantismo de que a salvação é sola gratia e sola fide. Os humanos não contribuem em nada para esta salvação, já que até mesmo crer (o que os eleitos são habilitados a fazer) é um dom divino (cf. Rm 3:24-25). No contexto de Ef 2:8, a chave para “isto” é o que Paulo vem enfatizando com tanta força até aí: antes da intervenção graciosa de Deus, os crentes estavam irremediavelmente mortos, com as suas vontades aprisionadas por natureza em atos que levavam apenas à transgressão e ao pecado (2:1-5a,12).» S. M. Baugh, Ephesians (Lexham Press, 2016), 160-61.

Portanto, o dom na segunda cláusula se refere, através de touto, a "Pois pela graça sois salvos, por meio da fé". Portanto, o dom de Deus é a salvação pela graça por meio da fé. A fé está incluída no dom. A fé não é algo pelo qual os cristãos recebem o dom, mas uma parte da dotação graciosa e salvífica de Deus.

2. Por outro lado, os teístas do livre-arbítrio habitualmente dizem que para algo ser um dom, o destinatário deve poder recusá-lo. Compare-se isso com Paul and the Gift (cap. 2) de John Barclay, onde ele analisa diferentes conotações de um "dom" ou benfeitoria na antiguidade. Considere-se a sua categoria de "eficácia", onde dar dons é uma coisa poderosa, cumprindo o seu propósito - como quando os pais dão o dom da vida aos seus filhos ou alguém é resgatado da morte. Nessas situações, o destinatário está passivo e desamparado.

Adicionalmente, ele cita uma passagem de Filão enfatizando a eficácia da graça perante a passividade e inatividade humana, atribuindo tudo à soberania de Deus.

Além disso, no sistema de patrocínio do Império Romano, um poderoso benfeitor não oferece um dom, mas confere um dom.

E a dinâmica assimétrica entre superiores sociais e inferiores sociais no mundo antigo é muito mais análoga ao relacionamento entre Deus e criaturas do que presentes de aniversário e de Natal entre iguais.

O conceito eficaz de dar dons é incompatível com a graça no teísmo do livre-arbítrio, a qual é resistível e, portanto, ineficaz.

18 de janeiro de 2025

CATOLICISMO PIRRÓNICO: A ORIGEM DO APELO AO NIILISMO EPISTÉMICO, À IRRACIONALIDADE E À OBEDIÊNCIA CEGA À AUTORIDADE NA APOLOGÉTICA CATÓLICA ROMANA

 

«Esta exploração da Contrarreforma na França tentará traçar e explicar um dos desenvolvimentos mais estranhos deste período — a aliança dos católicos mais ortodoxos com os seguidores mais céticos de Montaigne numa cruzada comum contra o calvinismo. Alguns estudos recentes na história da teologia francesa após o Concílio de Trento apontam que as correntes predominantes da teoria católica eram principalmente negativas e agostinianas, e eram mais contra o escolasticismo, o racionalismo e o calvinismo do que por qualquer defesa intelectual sistemática e coerente da fé. O que examinarei é um lado importante deste capítulo na história intelectual que tem sido bastante negligenciado, a relação entre o renascimento da teoria cética grega, o pirronismo, e a estratégia e teoria da Contrarreforma entre muitos dos líderes dinâmicos da época….

A publicação dos escritos de um cético grego do século III d.C. em 1569 pode parecer ter pouco a ver com a ação da Contrarreforma. Mas para que não ficasse dúvidas, o tradutor e editor garantiu no seu prefácio que a ligação seria clara. Gentian Hervet, um proeminente líder católico francês, veterano do Concílio de Trento, secretário do Cardeal de Lorena e um volumoso panfletário contra os vícios e vilanias do Calvinismo, contou no seu prefácio (escrito para o seu patrão, o Cardeal de Lorena), datado de 16 de março de 1567, como ele encontrou os escritos de Sexto por acidente na biblioteca do Cardeal. Desgastado pelas suas traduções dos comentários dos padres da igreja sobre as Escrituras e pelos seus escritos polémicos, ele procurava algo divertido para ler durante uma viagem. E, vejam só, ele encontrou um manuscrito desse tesouro cético que leu com "incrível prazer". Este livro fonte do pirronismo grego mostrou a ele que nenhuma posição, nenhuma ciência humana poderia resistir ao ataque dos argumentos que podem ser propostos contra ela. A única coisa certa é a revelação de Deus para nós. Todos os modernos que tentam avaliar questões além deles pela sua razão podem ser derrubados. E este grupo inclui os pagãos modernos (chamados de Novos Académicos, provavelmente os naturalistas italianos) e os calvinistas, que, presumivelmente, tentavam teorizar sobre Deus, que só pode ser acreditado, não compreendido. Todas as teorias humanas podem ser destruídas pelo ceticismo. Ao fazer isso, somos ensinados à humildade e podemos restaurar o equilíbrio na mente dos excessos do dogmatismo e nos preparar para ceder à doutrina de Cristo.

Assim, o douto Hervet concebeu o calvinismo como mais uma forma de dogmatismo e arrogância humana, tentando compreender Deus em termos da razão mesquinha do homem. O ceticismo completo, então, que humilhará todas as pretensões racionais humanas, deve humilhar os calvinistas. Portanto, o ceticismo é a arma da Contrarreforma, e a publicação de Sexto Empírico ajudará na defesa do catolicismo ao demolir o inimigo. A verdadeira religião deve ser baseada na fé cega, e não em argumentos abertos aos ataques do antigo pirronismo.

...Esta nova e potente arma foi moldada nos colégios jesuítas no final do século XVI e início do século XVII, especialmente no Collège de Clermont e de Bordeaux. Pode-se encontrá-la em uso, no todo ou em parte, em vários escritores treinados ou a ensinar nestas instituições, como São Francisco de Sales, o Cardeal Belarmino, o Cardeal du Perron e os Padres Gontery e Veron. O objetivo do ataque é mostrar que as visões dos reformadores levam a vários dos quebra-cabeças céticos gregos clássicos, a dificuldades insolúveis, e que a fé dos reformadores é duvidosa para a qual nenhuma base segura pode ser oferecida.»

Richard H. Popkin, Skepticism and the Counter-Reformation in France, 1960.

Não nos esqueçamos da máxima ensinada pelo fundador dos jesuítas, Inácio de Loyola: «Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a que o branco, que eu vejo, acreditar que é negro, se a Igreja hierárquica assim o determina.»

16 de janeiro de 2025

OS PRIMEIROS REFORMADORES SOBRE A CEIA DO SENHOR

 

O Consenso Tigurinus ou Consenso de Zurique foi um documento protestante escrito em 1549 por João Calvino e Heinrich Bullinger. Foi subscrito pelas igrejas reformadas da Suíça e recebido favoravelmente por Martin Bucer, Filipe Melanchthon, Pietro Martire Vermigli, pelos huguenotes na França, pela Igreja de Inglaterra e por partes da Alemanha. Entre os primeiros reformadores, o entendimento de Lutero da “consubstanciação” é fortemente idiossincrática.

Consenso Tigurinus [1]

Artigo 21. Nenhuma Presença Local Deve Ser Imaginada.

Devemos nos resguardar particularmente da ideia de qualquer presença local. Pois enquanto os sinais estão presentes neste mundo, são vistos pelos olhos e manuseados pelas mãos, Cristo, considerado como homem, não deve ser buscado em nenhum outro lugar senão no Céu, e não de outra forma senão com a mente e os olhos da fé. Portanto, é uma superstição perversa e ímpia encerrá-lo sob os elementos deste mundo.

Artigo 22. Explicação das Palavras “Isto É o Meu Corpo.”

Aqueles que insistem que as palavras formais da Ceia, “Isto é o meu corpo; isto é o meu sangue,” devem ser lidas no que eles chamam de sentido precisamente literal, nós repudiamos como intérpretes absurdos. Pois nós sustentamos sem controvérsia que elas devem ser lidas figurativamente, o pão e o vinho recebem o nome daquilo que eles significam. Nem deve ser considerado algo novo ou inusitado transferir o nome de coisas figuradas por metonímia para o sinal, pois modos semelhantes de expressão ocorrem em todas as Escrituras, e ao dizer isso não afirmamos nada além do que é encontrado nos escritores mais antigos e aprovados da Igreja.

Artigo 23. Do Comer do Corpo.

Quando se diz que Cristo, ao comermos da sua carne e bebermos do seu sangue, que estão aqui simbolizados, alimenta as nossas almas através da fé pela agência do Espírito Santo, não devemos entender isso como se qualquer mistura ou transfusão de substância tivesse ocorrido, mas que extraímos vida da carne uma vez oferecida em sacrifício e do sangue derramado em expiação.

Artigo 24. Transubstanciação e Outras Tolices.

Desta forma, são refutadas não apenas a ficção dos papistas sobre a transubstanciação, mas todas as invenções grosseiras e futilidades que ou derrogam a sua glória celestial ou são em algum grau repugnantes à realidade da sua natureza humana. Pois não consideramos menos absurdo colocar Cristo sob o pão ou juntá-lo ao pão, do que transubstanciar o pão em seu corpo.

Artigo 26. Cristo Não Deve Ser Adorado no Pão.

Se não é lícito afixar Cristo em nossa imaginação ao pão e ao vinho, muito menos é lícito adorá-lo no pão. Pois, embora o pão seja apresentado a nós como um símbolo e penhor da comunhão que temos com Cristo, ainda assim, como é um sinal e não a coisa em si, e não tem a coisa incluída nele ou fixada nele, aqueles que voltam as suas mentes para ele, com o propósito de adorar a Cristo, fazem dele um ídolo.

Consensus Tigurinus, 1549, Art. 21, 22, 23, 24, 26.

[1] O nome deste documento se deve à região de Zurique, na Suíça, que tinha o nome latino de Tigurinus.

15 de janeiro de 2025

CATOLICISMO PÓS-COLONIAL

 

É interessante comparar e contrastar Trento, Vaticano I e Vaticano II.

i) Trento foi uma ação de reação. O catolicismo pós-Reforma era como um império pós-colonial. Era o que restava do antigo império.

Quando colónias ou países satélites se separam, eles efetivamente redesenham o mapa político. As novas fronteiras do antigo império são traçadas a partir do exterior. As suas fronteiras retrocederam pela perda das suas colónias ou países satélites.

Em Trento, Roma deixou que elas fossem definidas pelos protestantes. Ela ratificou as fronteiras traçadas pelos protestantes. Roma era tudo o que os protestantes não eram, e vice-versa.

Quem primeiro ergue uma cerca traça a fronteira para ambos os lados. Quando Trento foi convocado, a Reforma era irreversível. Trento foi simplesmente um reconhecimento do novo status quo. Uma admissão de derrota. Uma acomodação forçada ao que já não podia mudar.

Trento não foi em si disruptivo. A disrupção já havia ocorrido. Em Trento, Roma estava a conter as suas perdas e a conservar o que restava.

ii) O Vaticano I foi uma viagem do ego de um só homem. Ao contrário de Trento, que era necessário, o Vaticano I foi opciomal.

Embora não tenha sido terrivelmente prejudicial, tem provado ser um embaraço para o papado. O problema é que o papa afirma ser infalível sob circunstâncias vagamente especificadas, mas ele raramente ousa exercer essa alegada prerrogativa, pois no momento em que ele faz uma proclamação "infalível" testável, ele pode refutar as suas pretensões infalibilistas.

Não é coincidência que essa prerrogativa tenha sido exercida apenas duas vezes desde o Vaticano I, e em ambas as ocasiões para proclamar dogmas confortavelmente infalsificáveis. O papa poderia muito bem emitir uma encíclica infalível sobre os hábitos de acasalamento dos unicórnios. Não seria possível refutá-la.

iii) O Vaticano II foi muito disruptivo. E, aparentemente, isso foi um erro não forçado. Não sei por que razão João XXIII o convocou, para além dos bordões sobre "aggiornamento" e "abrir as janelas para deixar entrar ar fresco".

Uma interpretação possível é que João XXIII era como Gorbachev. O seu homólogo russo entendia que o Império Soviético era militar e economicamente insustentável. Nessa situação, existem duas opções: pode simplesmente deixar-se o império desmoronar, como o Império Romano e o Império Otomano. Ou pode tomar-se a iniciativa.

De qualquer das maneiras, haverá perdas. Mas tomando a iniciativa, ter-se-á mais controle sobre o resultado. Se, por outro lado, simplesmente se esperar o império desmoronar por si mesmo, fica-se inteiramente à mercê dos acontecimentos. Outros ditarão o resultado final.

Talvez João XXIII pensasse que o paradigma tridentino/antimodernista era insustentável e quisesse saltar fora antes da inevitável rutura. Na verdade, no tempo do seu antecessor, o papado já fazia concessões táticas ao modernismo (por exemplo, Humani Generis; Divino afflante Spiritu).

Um problema com esta interpretação atraente é que João XXIII não tem a reputação de ter sido um grande pensador. Talvez, porém, o ímpeto tenha vindo de conselheiros teológicos. No próprio concílio, o modernismo estava bem representado entre um contingente de bispos influentes e seus simpatizantes. Até Joseph Ratzinger era originalmente um teólogo progressista.

Mas no Vaticano II, Roma perdeu o seu equilíbrio e ainda não se endireitou. Mas, se ela tivesse tentado manter o paradigma tridentino/antimodernista, isso teria levado à sua derrocada. Quando os alicerces são falhos, não há muito o que se possa fazer para adiar o desastre.

14 de janeiro de 2025

DOIS FATALISMOS EM DUELO

 

Universalista: Considera-se um apologista do ateísmo?

Ateu: Sim.

Universalista: Como é que faz isso?

Ateu: Temos filósofos ateus. Um jornal ateísta. Uma editora ateísta. blogs e sites ateístas.

Existem muitas formas de transmitir a mensagem.

Universalista: Porque gasta tanto tempo e esforço a fazer proselitismo a favor do ateísmo?

Ateu: Porque é importante que as pessoas acreditem no que é verdadeiro e que vivam em conformidade com isso.

Universalista: O que aconteceu a Hitler quando morreu?

Ateu: Caiu na inexistência.

Universalista: O que aconteceu a Bonhoeffer quando morreu?

Ateu: Caiu na inexistência.

Universalista: Então, de acordo com o ateísmo, o que uma pessoa pensa ou faz nesta vida não faz absolutamente nenhuma diferença no seu destino final.

Ateu: Acho que essa é uma boa forma de colocar as coisas.

Universalista: Nesse caso, por que razão é tão importante que as pessoas acreditem no que é verdadeiro e vivam em conformidade com isso?

Ateu: Poderia fazer-lhe a mesma pergunta.

Universalista: O que quer dizer?

Ateu: Considera-se um apologista do universalismo?

Universalista: Sim.

Ateísmo: Como é que faz isso?

Universalista: Temos filósofos e estudiosos universalistas. Temos um site (Evangélico Universalista). Temos um universalista que é editor em editoras cristãs.

Existem muitas formas de transmitir a mensagem.

Ateu: Porque gasta tanto tempo e esforço a fazer proselitismo a favor do universalismo?

Universalista: Porque é importante que as pessoas acreditem no que é verdadeiro e que vivam em conformidade com isso.

Ateu: O que aconteceu a Hitler quando morreu?

Universalista: Foi para o céu.

Ateu: O que aconteceu a Bonhoeffer quando morreu?

Universalista: Foi para o céu.

Ateu: Então, de acordo com o universalismo, o que uma pessoa pensa ou faz nesta vida não faz absolutamente nenhuma diferença no seu destino final.

Universalista: Acho que essa é uma boa forma de colocar as coisas.

Ateu: Nesse caso, por que razão é tão importante que as pessoas acreditem no que é verdadeiro e vivam em conformidade com isso?

Universalista: Poderia fazer-lhe a mesma pergunta.

Ateu: Já fez.

Universalista: Uma vez que ambas as nossas posições são fatalistas, talvez pudéssemos economizar algumas despesas fundindo os nossos websites, editoras, etc.

Ateu: Isso seria mais eficiente. Os meus parceiros falarão com os seus parceiros sobre uma possível fusão.