terça-feira, 28 de setembro de 2021

Non-overlapping magisteria (NOMA)

 

Non-overlapping magisteria (NOMA) ou, em tradução livre, magistérios não-interferentes, é a opinião defendida por Stephen Jay Gould de que a ciência e a religião não estão num mesmo plano de conhecimento e, portanto, não devem se sobrepor. O termo foi cunhado por Gould em 1999 no seu livro Rocks of Ages.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Magist%C3%A9rios_n%C3%A3o-interferentes

Stephen Jay Gould, foi um paleontólogo evolucionário judeu secular de Harvard. Esta dicotomia proposta por Gould é uma estratégia apologética familiar. Ao compartimentar ciência e religião, protege a religião da falsificação. Mas isso tem um custo e é extremamente simplista.

Se fosse apenas uma generalização, a distinção teria um grão de verdade, mas para ter sucesso como estratégia apologética, religião e ciência têm que ser domínios separados sem nada em comum, e é aí que ela rapidamente se desintegra:

1. A ciência opera com alguns pressupostos filosóficos. Podem eles ser justificados à parte da religião? Considere-se a indução, a inteligibilidade do mundo natural, a confiabilidade geral dos sentidos e a confiabilidade geral da razão humana. De acordo com a evolução naturalista, os seres humanos são o subproduto de um processo cheio de erros. Na maioria das vezes, a evolução produz erros. Em raras ocasiões, alcança algo benéfico. Dado esse cenário, não seria de esperar que a razão humana fosse muito limitada e altamente falível? Por que supor que a natureza seria geralmente acessível à razão humana?

2. Se a ciência secular define com total autonomia o que os seres humanos são, as suas origens, a sua natureza e o seu destino, então resta à religião comentar o que sobra depois de a ciência nos dizer o que somos. E se a ciência disser que não há vida após a morte? O cérebro produz a mente. Não há alma imortal. A necrose é irreversível. Não há ressurreição do corpo.

Da mesma forma, a evolução não tem direcionalidade. Os humanos não existem porque o processo foi direcionado para os humanos. Não há nada de especial nos humanos do ponto de vista cósmico.

Claro, pode ser-se um evolucionista teísta, mas como a evolução teísta se conjuga com magistérios não sobrepostos? Não se pode combinar evolução naturalista com evolução guiada. O naturalismo metodológico bane explicações teleológicas das ciências naturais.

Talvez um evolucionista teísta apele à teologia natural como estrutura mediadora. Se assim for, a teologia natural é uma conclusão científica ou uma estrutura dentro da qual a ciência opera? Não faz a teologia natural uso da razão pura? Nesse caso, ciência e religião não se sobrepõem nesse aspecto?

3. A religião está separada da razão e do conhecimento dos sentidos? E quanto à evidência empírica e testemunhal para a religião? E os argumentos filosóficos e científicos para a religião? Nesse caso, isso transgride os magistérios não sobrepostos.

A religião não usa a perceção dos sentidos para nos dizer como é o mundo? E quanto aos milagres? Eles são sinais. Eventos visíveis. Alguns milagres são empiricamente verificáveis, ou não? E quanto a teofanias, cristofanias e angelofanias. Não são esses objetos de perceção sensorial? Ou considere-se algo mais vulgar como uma oração atendida. Não há evidência empírica quando Deus concede um pedido numa oração peticionária ou intercessória?

As aparições marianas em que os católicos romanos acreditam. Não infringe isso magistérios não sobrepostos? Se elas acontecem, são essencialmente religiosas, porém são objetos de perceção sensorial.

E quanto a sonhos revelatórios, como sonhos proféticos. Eles dizem ao sonhador algo sobre o futuro. Algo sobre o mundo.

E quanto à história? A fé cristã não faz afirmações sobre o envolvimento ativo de Deus na história, incluindo na história da Bíblia e na história da igreja? Não há testemunhas oculares da atividade de Deus na história sagrada? Ter uma compreensão do mundo que nos rodeia inclui a observação da intervenção divina na experiência humana.

Longe de serem domínios separados que não falam das mesmas coisas, ciência e religião têm frequentemente em mira o mesmo referencial. E isso cria um potencial para afirmações conflitantes.

4. Finalmente, é realmente vantajoso que a religião em geral seja imune ao escrutínio empírico e racional? E os falsos profetas? E os charlatães que curam pela fé?

5. Não se vê como os magistérios não sobrepostos possa ser consistentemente aplicado. Existem muitos contra-exemplos. E estes não são apenas exceções especiais, mas muitas vezes vão à centralidade da experiência e compreensão religiosa. Compartimentar ciência e religião em domínios separados é procurar refúgio numa fácil mas intelectualmente insustentável falsa dicotomia. Embora muitas vezes haja uma diferença entre os métodos da ciência e da religião, isso dificilmente é universal.

Por exemplo, a ciência médica faz suposições sobre o que acontecerá se a natureza seguir o seu curso. O mundo físico geralmente opera como uma máquina, com regularidade robótica e previsibilidade. Essa é a configuração padrão. É para isso que está programado.

Mas às vezes uma oração por cura contorna os processos naturais, resultando numa recuperação miraculosa. Isso fornece informações sobre o tipo de mundo em que habitamos. Uma realidade na qual agentes espirituais podem interagir e às vezes interagem com a matéria para contornar a causa e o efeito físicos, resultando em resultados que não são rastreáveis a condições antecedentes. No entanto, esses resultados são empiricamente detetáveis.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Afinador ou multiverso?

 

Dada a afinação minuciosa das constantes da natureza, a evidência favorece igualmente a existência de um Afinador ou de um Multiverso? Farei uma analogia para se compreender melhor o que está em causa.

Suponha-se que o primeiro prémio do Euromilhões (ou Mega-Sena para os amigos brasileiros) saía 50 vezes seguidas à mesma pessoa. Se os números estivessem a sair aleatoriamente isto seria tão improvável que a melhor explicação seria inferir que os números não estavam a sair aleatoriamente. Algo de errado estava a acontecer no sorteio dos números. Com base na impossibilidade estatística de acertar 50 vezes seguidas no Euromilhões seria logicamente inferido que os números estavam a sair escolhidos intencionalmente para aquela pessoa ganhar o primeiro prémio. Ninguém acreditaria que fosse possível o primeiro prémio sair 50 vezes seguidas à mesma pessoa se os números estivessem a sair ao acaso.

Mas para evitar esta conclusão, aparecia então alguém que especulava, sem nenhuma evidência, que aquela pessoa acertava sempre no primeiro prémio porque apostava em todas as chaves possíveis em cada sorteio. Esta explicação ad hoc tem a mesma probabilidade de ser verdadeira do que a explicação de que os números não estão a sair aleatoriamente? É claro que não. A evidência das probabilidades é real, enquanto a suposição de que a pessoa está a apostar em todas as chaves possíveis é apenas uma conjetura, uma especulação sem evidência que a suporte.

Por isso, a inferência com melhor poder explicativo com base na evidência disponível é que os números não estão a sair aleatoriamente, mas intencionalmente para aquela pessoa ganhar sempre o primeiro prémio.

Transpondo isto por analogia para o argumento da afinação minuciosa do universo, a inferência com melhor poder explicativo é que, com base nas probabilidades, os valores das constantes físicas não surgem de forma aleatória, mas há uma agência intencional por trás deles, sendo a hipótese do multiverso uma especulação ad hoc, uma vez que não há qualquer evidência substancial da sua existência, para evitar a conclusão de um Afinador por trás dos valores das constantes físicas.

Há uma assimetria evidencial entre o Afinador e o multiverso.

O Afinador é inferido de evidência real, a impossibilidade estatística dos valores das contantes físicas serem resultado de um processo aleatório, enquanto a existência do multiverso não é inferida de nenhuma evidência real. É essencialmente formalismo matemático que precisa ser demonstrado que corresponde a alguma coisa do mundo real. Por isso, postular a existência do multiverso é uma falácia do apelo à ignorância, um argumento do naturalismo das lacunas.

Portanto, a evidência de afinação minuciosa do universo favorece a existência de intencionalidade, de um agente inteligente por trás dos valores das constantes da natureza em detrimento de um imaginário multiverso.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

A FORMAÇÃO DO CÂNON DO AT

 

Um possível modelo para a formação do cânon hebraico pode ser sugerido aqui em linhas gerais. Deuteronómio 31:26 regista que o "livro da lei" (presumivelmente Deuteronómio ou um texto semelhante a ele) deveria ser colocado no lugar santíssimo do tabernáculo. À medida que a Palavra de Deus era escrita, ia sendo coletada e preservada no templo de Jerusalém, onde podia ser lida e copiada por outros interessados ​​no seu conteúdo. Em 586 a.C, cópias terão sido levadas pelos exilados para fora do país, enquanto outras cópias podem ter sido escondidas perto de Jerusalém. Mesmo se cópias já não estavam presentes em Jerusalém, Esdras voltou com os livros da Lei (o Pentateuco). Ele e outros podem ter trazido novamente vários livros da Bíblia para Jerusalém. Seja como for, uma coleção no templo permitia aos sacerdotes regular o que consideravam Escritura e o que não consideravam. Em algum momento, a profecia foi considerada como tendo cessado, e os rolos finais entraram na coleção [Assim, 1 Mac 4:46, "Até que venha um profeta", sugere a ausência de profecia]. Depois disso, tanto quanto as fontes atestam [1 e 2 Macabeus, bem como as fontes citadas acima que atestam as principais divisões e o número de livros nas Escrituras Hebraicas], nenhum outro rolo foi adicionado à Bíblia Hebraica conforme preservada no templo de Jerusalém. Conforme observado acima, esses eram os trinta e nove livros que vieram a ser conhecidos como Antigo Testamento. Os rabinos reconheceram a autoridade desses textos após a queda de Jerusalém em 70 d.C. 

Richard Hess, The Old Testament: A Historical, Theological, and Critical Introduction (Baker 2016), 8-9.

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