sábado, 3 de fevereiro de 2018

OS FINAIS DO EVANGELHO DE MARCOS


Os manuscritos gregos e de antigas versões (traduções) do Novo Testamento apresentam cinco finais diferentes para o Evangelho de Marcos, a saber:

1. Alguns finalizam no versículo 16:8 e simplesmente omitem os vv. 9-20: “Elas saíram fugindo do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e assombro; e não disseram nada a ninguém, porque tinham medo”. São assim os códices Sinaítico e Vaticano, L*, o manuscrito k da Antiga Versão Latina, a Siríaca sinaítica, e diversos manuscritos das versões antigas arménia, georgiana e etíope. Eusébio e Jerónimo notaram que a maioria dos manuscritos gregos que conseguiram examinar careciam do final longo. Aparentemente, nem Clemente nem Orígenes conheceram tal final. Finalmente, ainda alguns dos manuscritos que o possuem, apresentam observações ou marcas dos escribas indicando que se trata de uma adição.

2. Outros acrescentam o seguinte texto: “Mas [as mulheres] relataram resumidamente a Pedro e aos que estavam com ele tudo quanto lhes tinha sido dito. E depois disto o próprio Jesus enviou por meio deles, do Oriente ao Ocidente, a sagrada e imperecível proclamação da salvação eterna”. Entre eles apenas este versículo no códice Bobbiensis (k) do século IV ou V.

3. Ainda outros intercalam o versículo acima citado antes do final longo (16:9-20) em unciais dos séculos VII ao IX (L, Psi, 099, 0112), alguns minúsculos e cópias de versões antigas.

4. Muitos manuscritos contêm o final longo que inclui os versículos 9-20, alguns com o acréscimo do texto recém-mencionado. É o que se encontra no chamado Textus Receptus, e é atestado pelos unciais A C D L W Delta Sigma Theta 047, pela maioria dos manuscritos minúsculos e da Antiga Latina, da Vulgata, da siríaca curetoniana e Peshitta (“vulgata” siríaca), e da versão copta. Além de outros testemunhos posteriores, Ireneu e Hipólito o conheciam; aparentemente é citado pela Epistula Apostolorum e Taciano o incluiu na sua harmonia ou Diatessaron de finais do século II.

5. Finalmente, existe uma versão ampliada do final “longo” que imediatamente depois do versículo 14 (“..porque não haviam crido nos que o tinham visto já ressuscitado”) acrescenta: “E eles se desculparam dizendo «Esta era de iniquidade e incredulidade está debaixo de Satanás, que não permite que a verdade e o poder de Deus prevaleçam sobre a impureza dos espíritos. Portanto, revela agora a tua justiça». Assim falaram a Cristo. E Cristo lhes respondeu, «O fim de anos do poder de Satanás se cumpriu, mas outras terríveis coisas se aproximam. E por aqueles que pecaram eu fui entregue à morte, para que possam voltar à verdade e não pecar mais; para que possam herdar a glória espiritual e incorruptível de justiça que está no céu»”. Esta adição foi notada por Jerónimo, e é atestada pelo códice W adquirido em 1906 por Charles L. Freer, que data da última parte do século IV ou princípios do seguinte.

É claro que, nem todos estes finais têm o mesmo peso. É extremamente improvável que Marcos, com seu estilo simples, tenha escrito algo tão altissonante como “a sagrada e imperecível proclamação da salvação eterna”, ou “a glória espiritual e incorruptível de justiça”, expressões que delatam influências helenistas posteriores. Este facto, somado ao número e idade dos testemunhos, praticamente isenta de maiores considerações os finais listados (2) (3) e (5).

Apesar de alguns terem sustentado – por exemplo Lohse, p. 144-145 - que o Evangelho finalizava originalmente no versículo 8, isto também é pouco provável, em parte porque constitui um final anticlimático, muito pouco apropriado para concluir “o evangelho de Jesus Cristo” (1:1).

Mais importante é a evidência fornecida pela última cláusula do versículo 8, “porque tinham medo” (grego efobounto gar). Metzger nota que “de um ponto de vista estilístico, terminar uma frase grega com a palavra gar é extremamente incomum e raríssimo – só se acharam relativamente poucos exemplos em toda a vasta gama de obras literárias gregas, e não se achou nenhum caso no qual gar se encontre no final de um livro. Mais ainda, é possível que no versículo 8 Marcos use o verbo efobounto para significar «estavam assustadas com...» algo (como o faz em quatro das outras aparições deste verbo no seu Evangelho [ver Marcos 9:32, 11:32, 12:12 e especialmente 11:18, “efobounto gar auton”, eles o temiam]). Em tal caso, obviamente é preciso algo para concluir a frase” (p. 228). Em suma, estes factos sugerem que falta algo do que Marcos originalmente escreveu, e que tal ausência motivou mais tarde a aparição de diferentes conclusões.

A versão que aparece nas nossas Bíblias como os versículos 16:9-20 também não parece a original, apesar de ser atestada por muitos manuscritos. Para começar, há uma transição muito abrupta entre o v. 8 e o 9; o sujeito do primeiro versículo (8) são as mulheres, enquanto Jesus é obviamente o sujeito no segundo (9). No entanto, no texto grego o sujeito está tácito: “E tendo ressuscitado cedo no primeiro [dia] da semana, apareceu primeiro a Maria a Madalena...” Este facto não é evidente em muitas versões em português porque os tradutores incluem habitualmente o nome de Jesus nesta frase.

Em segundo lugar, no v. 9 se fala de Maria Madalena como se não tivesse sido mencionada antes, quando já se falou dela no relato marcano da crucificação, sepultura e ressurreição. O resto das mulheres desaparece da cena, ainda que tivessem sido comissionadas para relatar a ressurreição no v. 7. No mesmo versículo o anjo anuncia que verão Jesus na Galileia, mas as manifestações do Ressuscitado dão a impressão de ocorrer na área de Jerusalém; pelo menos, não é mencionada a Galileia.

O estilo destes versículos difere também da linguagem habitual de Marcos. Das 101 palavras gregas dos versículos 9-20, há 75 significativas (excluídos conjunções, artigos e nomes próprios), das quais 15 não aparecem no resto do Evangelho e 11 que aparecem, usam-se com um sentido diferente. Mesmo considerando a diferença do tema, a linguagem se apresenta prima facie como não própria de Marcos.

Também não há no resto do segundo Evangelho nenhuma recriminação tão severa como a indicada no versículo 14. Por outro lado, a promessa de imunidade diante das serpentes e do veneno não só é alheia a Marcos, mas aos outros três evangelhos, e ao resto do Novo Testamento.

Há quem pense que os versículos 9-20 são uma tentativa de harmonizar o relato de Marcos com os dos outros Evangelhos canónicos; são desta opinião por exemplo Bruce e Linnemann (citado por Kümmel). Por outro lado tal “conclusão foi contestada, com muito acerto” (Leon-Dufour), por Joseph Hug, numa tese doutoral publicada em 1978. Esta análise literária indicaria que os versículos 9-20 seriam um acréscimo original que deve datar-se entre finais do século primeiro e antes de meados do segundo (Metzger, p. 297). O acréscimo teria tido como propósito fornecer instruções missionárias à comunidade cristã de fala grega com tendências carismáticas. Deste ponto de vista, Marcos 16:9-20 seria um testemunho muito primitivo proveniente da Igreja subapostólica.

Em suma, considerada toda a evidência, aparentemente o texto autêntico e original de Marcos, tal como este Evangelho foi conservado, termina em 16:8. Portanto, não é prudente basear doutrinas nos versículos 9-20.


Bibliografia

Bruce, Frederick Fyvie: Answers to questions. The Paternoster Press, 1972 (p. 155).

Kümmel, Werner Georg. Introduction to the New Testament. Rev. English Ed. Trad. Howard Clark Kee. Nashville: Abingdon Press, 1975 (p. 98-101).

Ladd, George Eldon. Crítica del Nuevo Testamento: Una perspectiva evangélica. Trad. Moisés Chávez. El Paso: Mundo Hispano, 1990 (p. 56-59).

Leon-Dufour, Xavier. Los evangelios sinópticos. Em Augustin George e Pierre Grelot (Dirs.), Introducción Crítica al Nuevo Testamento. Trad. J. Cabanes e M. Villanueva. Barcelona: Herder, 1982 (pp. 293-295).

Metzger, Bruce M. The text of the New Testament: Its transmission, corruption and restoration, 3ª Ed. New York: Oxford University Press, 1992 (p. 226-228, 296-297).

Wessel, Walter W.. Mark. Em Frank E. Gaebelein (Gen.Ed.), The Expositor’s Bible Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1984 (8:791-793).
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