segunda-feira, 16 de outubro de 2017

"30 mártires" do colonialismo esclavagista


Foi ontem noticiado que o “Papa proclamou um novo santo português”.

Supostamente, no Brasil a 3 de outubro de 1645o sacerdote português Ambrósio Francisco Ferro, foi morto durante perseguições anticatólicas, por tropas holandesas.

“perseguições anticatólicas, por tropas holandesas”??? A sério?

e que “a chegada dos holandeses, de religião calvinista, provocou “a restrição da liberdade de culto para os católicos”, contexto em que se verifica o martírio dos futuros santos.” A sério? Não havia no contexto da época conflitos político-sociais?

Que poder tinham os holandeses para restringir a liberdade de culto em território sob jurisdição portuguesa?

Imediatamente salta à vista que nesta história há algo muito mal contado.

É bastante estúpido apresentar os holandeses como autores de tais atos. Nada podia ser pior naquela altura para os holandeses do que um evento que acicataria ainda mais os ânimos dos colonos portugueses contra o governo holandês. Além disso, os holandeses eram conhecidos pela sua tolerância religiosa rara para a época.

Vejamos o que diz alguma historiografia séria sobre os holandeses da época dos acontecimentos:

“Durante essa época, a Igreja Reformada holandesa formou-se e se tornou proeminente. Conhecida por sua tolerância com outros grupos religiosos, inclusive católicos...” (COLLINS, Michael; PRICE, Matthew A. História do Cristianismo: 2000 anos de fé. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 141)

“Já nesse tempo [c. 1660], Nova York ou Nova Amsterdam como era então chamada, era uma cidade cosmopolita. Além de holandeses havia na cidade povos de muitas nações que tinham as mais diferentes organizações religiosas, pois o governo holandês permitiu ampla liberdade de culto. Havia huguenotes, puritanos da Nova Inglaterra, presbiterianos escoceses, luteranos suecos e alemães, católicos romanos e judeus” (NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1960, p. 264)

“Guilherme de Orange havia resistido à transformação da revolta contra a Espanha numa cruzada religiosa e esforçou-se para criar um ambiente tolerante na República Holandesa. Em consequência, luteranos, menonitas, várias seitas e até católicos conseguiram estabelecer seus próprios serviços religiosos” (LINDBERG, Carter. Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 366)

“[Os holandeses] não perseguiam pessoa alguma por opiniões religiosas”(CANTÚ, Cesare. História Universal – Vigésimo Segundo Volume. São Paulo: Editora das Américas, 1954, p. 21)

“Depois da sua independência total da Espanha, reconhecida em 1648, reina nos Países Baixos uma grande tolerância religiosa e filosófica. Numerosos teólogos e filósofos, perseguidos noutros países, aqui procuram refúgio, entre os quais Descartes e Espinosa, contribuindo bastante para o brilho intelectual e cultural deste país” (HERMAN, Jacques. Guia de história universal. Lisboa: Edições 70, 1981, p. 145)

“A Holanda acabava de reconhecer Guilherme por estatúder, proclamando a liberdade de culto igual para protestantes e para católicos (15 de julho de 1572)” (BLEYE, Pedro Aguado. Manual de Historia de España, Tomo II: Reyes católicos – Casa de Austria (1474 – 1700). 7ª ed. Madrid: ESPASA-CALPE, S. A., 1954, p. 633-634)

Cabe na cabeça de alguém que os holandeses, que no seu próprio país distinguiam-se pela sua tolerância religiosa, de repente tornam-se em terra estrangeira, e onde estão em minoria, intolerantes religiosos da pior espécie capazes de cometer as maiores atrocidades?

Além de que “tropas holandesas” não é sinónimo de “protestantes holandeses”. Nem todos os holandeses eram protestantes calvinistas. Também havia holandeses de outras religiões inclusive católicos.

A razão de nesta história aparecerem as “tropas holandesas” misturadas com os índios (sem qualquer evidência documental), é para que possa ser possível atribuir ao massacre uma motivação religiosa e esconder o verdadeiro motivo da chacina. De facto, apresentar os índios sozinhos como autores de um massacre motivado por um sentimento anticatólico seria completamente inverosímil. E, por isso, junta-se os holandeses à narrativa.

Contudo, o verdadeiro motivo do massacre foi a vingança e o medo dos índios pela escravatura e maus-tratos sofridos dos colonos portugueses, que nas palavras do padre António Vieira, não percebiam que um índio não é um negro. Nada tem a ver com perseguições anticatólicas. Aqueles colonos foram mortos porque eram hostis às tribos indígenas praticando a escravatura dos índios (e dos negros) e não porque eram católicos.

É compreensível que a Igreja católica prefira ser vítima de “holandeses calvinistas” do que de índios primitivos em território sob jurisdição de portugueses “católicos” (segundo a notícia). Assim esconde a verdadeira motivação do massacre e denigre os seus adversários de uma assentada. Mas não é a opção mais honesta.

Canonizem os santos e mártires que quiserem mas não denigram terceiros nem branqueiem a História. Não dignifica a instituição de que fazem parte nem honra quem pretendem “elevar aos altares”.


P.S. Um agradecimento ao Lucas Banzoli pela pesquisa bibliográfica :)

1 comentário:

  1. http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/Fides_Reformata/TextoEspecial_AsLagrimasDeCunhau.pdf

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...