quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Quantos livros continha a Septuaginta original, e qual era o cânon do AT reconhecido pelos judeus de Alexandria?


Quanto ao número de livros que foram traduzidos em Alexandria não é possível saber com exatidão. Os livros que compõem o cânon hebraico foram com toda a certeza, outros livros religiosos hebraicos que se misturaram com os livros canónicos e que aparecem nos códices da Septuaginta dos séculos IV e V (em número variável conforme o manuscrito) podem ter tido origem na obra de tradução dos sábios alexandrinos mas isso é duvidoso.

Quanto ao cânon do AT reconhecido pelos judeus de Alexandria, não há nenhuma evidência que indique que fosse diferente daquele dos judeus da Palestina, cuja extensão se tornou consensual entre os judeus pela época dos macabeus, ou seja, na segunda metade do século II a.C., quando a Septuaginta ainda estava em preparação. A partir daí, houve ocasionalmente discussões sobre se se devia excluir algum ou outro livro mas nunca de incluir algum.

Isto é suportado pelas seguintes razões:

1. Exceto para alguns fragmentos, os manuscritos existentes da Septuaginta são de origem cristã. O mais antigo data de aproximadamente 350 d.C., ou seja, cinco séculos mais tarde da finalização da tradução. É simplesmente impossível saber se as cópias hebraicas incluíam os mesmos livros que as cópias cristãs. Segundo a Encyclopedia Britannica, «É igualmente possível que as adições às Escrituras hebraicas sejam de origem cristã».

2. Nos diversos manuscritos existentes da Septuaginta, os livros apócrifos incluídos variam em número e nomes. Por exemplo, o manuscrito Vaticano não inclui Macabeus. O manuscrito Alexandrino inclui o apócrifo/pseudoepígrafo 1 Esdras, além de 3 e 4 Macabeus, e no NT 1 e 2 Clemente. No códice Sinaítico falta Baruc, considerado canónico pelo Concílio de Trento, mas está incluído 4 Macabeus e, no NT, a Epístola de Barnabé e o Pastor de Hermas. Existem outras variantes, que levantam a questão de quantos livros apócrifos realmente incluía a Septuaginta original. É perfeitamente possível que não incluísse nenhum deles.

3. Filão um filósofo judeu aproximadamente contemporâneo de Cristo que viveu precisamente em Alexandria (aprox. 20 a.C.-50 d.C.) nunca usou os deuterocanónicos/apócrifos, apesar de ter escrito muito.

4. Durante o segundo século da nossa era, e a partir da apropriação da Septuaginta por parte dos cristãos, os judeus de Alexandria adotaram a versão de Áquila, feita a partir do cânon palestino e que manifestamente não incluía os deuterocanónicos/apócrifos.

A ter existido diferenças acerca do cânon, é improvável que os judeus alexandrinos tivessem recebido esta versão sem mais.

5. A isto deve somar-se o testemunho de Orígenes, que viveu na mesma cidade e foi o máximo erudito bíblico pré-niceno, que escreveu «Não se deve ignorar que os livros testamentários, tal como os transmitiram os hebreus, são vinte e dois, tantos como o número de letras que há entre eles». Cita a lista do cânon palestino com os seus nomes e acrescenta: «Os [livros] dos Macabeus estão fora destes» (Eusébio, História Eclesiástica VI, 25, 1-2).

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Porque é que na tradução do Antigo Testamento se usa o texto Massorético em vez da Septuaginta, que foi a versão citada pelos autores do Novo Testamento?


As razões são as seguintes:

1. Em primeiro lugar, deseja-se contar com traduções feitas diretamente do idioma em que foram escritos os livros originais. Uma tradução a partir do texto grego da Septuaginta, tratar-se-ia de uma «tradução de uma tradução», o que aumenta a probabilidade de imprecisões.

2. Os autores do Novo Testamento escreviam em grego, por isso é normal que usassem uma versão grega do Antigo Testamento quando o queriam citar, neste caso a Septuaginta a única disponível no seu tempo. Não obstante, a forma em que o texto do Antigo Testamento é citado no Novo Testamento não é uniforme (ver aqui).

3. Em terceiro lugar, não há nenhuma evidência que o texto da Septuaginta seja melhor, ou mais «puro», que o texto Massorético. Antes, pressupõe-se que o texto Massorético como uma transcrição é mais preciso do que a Septuaginta como uma tradução. Além disso,  a Septuaginta, como outras versões antigas, tem a sua própria tradição textual consideravelmente complexa.

Foi isto que levou Jerónimo no século IV a procurar a «verdade hebraica» na sua tradução.

Foi isto que levou as primeiras traduções impressas a serem baseadas nos textos gregos para o Novo Testamento e hebraico para o Antigo Testamento.

Isto é o que explica que a maior parte das traduções contemporâneas, tanto católicas como protestantes, sigam esta prática.

No entanto, isso não significa uma adesão incondicional ao texto Massorético. Apesar da sua confiabilidade geral, há indícios de que a vocalização tradicional, acrescentada aos manuscritos na Idade Média, pode refletir preconceitos doutrinais.

A prática atual é como se segue:

Se o texto Massorético e as versões antigas (com a Septuaginta à cabeça) concordam, pode pressupor-se razoavelmente que foi preservada a leitura original; isto é o que ocorre para a maior parte do texto do Antigo Testamento.

Se o texto Massorético difere das versões, deve fazer-se uma escolha com base na crítica textual.

Em passagens onde o texto Massorético é obscuro, pode recorrer-se às versões que em alguns casos esclarecem o sentido.

Se tanto o texto Massorético como as versões dão leituras pouco claras, pode ser necessária uma conjetura (muito pouco frequente).

A isto se acrescenta modernamente os manuscritos bíblicos de Qumran, que em geral confirmam a tradição textual subjacente ao texto Massorético, ainda que em algumas ocasiões diferem deste e apoiam a Septuaginta, ou diferem de ambos (em detalhes não substanciais).
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