terça-feira, 20 de maio de 2014

A hipótese documentária ou JEDP


1. Pentateuco: a hipótese JEDP
A hipótese documentária

Entre as teses relacionadas com a Bíblia que foram adquirindo categoria de dogma de fé com o passar dos anos encontra-se a denominada Hipótese documentária relacionada com o Pentateuco. Surgida durante o século XIX, em princípios do século XX já se tinha difundido de maneira indiscutível entre os autores liberais protestantes para os quais se converteu numa tese irrefutável.

Que assim sucedesse tinha a sua lógica dados os pressupostos teológicos com os quais estes trabalhavam. Explica também a resistência de judeus, protestantes conservadores, católicos e ortodoxos. No entanto, em meados do século XX, e muito especialmente após o Vaticano II, a Hipótese documentária saltou para os seminários católicos – inclusive os mais conservadores - onde hoje em dia também é ensinada de maneira acrítica como a única explicação válida para a redação do Pentateuco.

Hoje em dia, apenas as igrejas ortodoxas, as igrejas evangélicas conservadoras e alguns setores do judaísmo resistem em aceitá-la mantendo perante ela um profundo ceticismo. Contudo, costuma ser comum que em traduções interconfessionais da Bíblia, como as publicadas pelas Sociedades bíblicas, façam referência à Hipótese documentária.

Neste capítulo e nos seguintes tentarei mostrar que a denominada Hipótese documentária é insustentável e que as razões para essa afirmação são fundamentalmente de caráter histórico e não apenas teológico.

A Hipótese documentária – ou Hipótese JEDP – é de aparição relativamente recente. Em 1895, Julius Wellhausen articulou de maneira quase canónica a teoria, avançada em parte por Graf e outros autores oitocentistas, de que o Pentateuco ou Torá não tinha sido escrito por Moisés como afirma a Bíblia e tinham sustentado judeus e cristãos durante séculos, mas que, pelo contrário, era uma junção de documentos procedentes de distintos redatores e muito posteriores a Moisés.

De acordo com a tese de Wellhausen, no Pentateuco se entrelaçam, na realidade, quatro documentos aos quais se denomina J (javista ou de Jeová), E (de Elohim), P (de Priesterkodex) e D (de Deuteronómio).

O J ou também javista – pelo nome de Deus utilizado nele – teria sido o primeiro e se teria redigido por volta do século IX já durante os reinados de David e Salomão. O E ou elohista – pelo nome de Deus Elohim - escrito algo depois do século IX a.C., recolheria fundamentalmente tradições do reino do Norte. Estes dois documentos teriam sido unidos num só, o JE, talvez por volta de 650 a.C., ainda que quem supostamente os juntou preservou ocasionalmente os relatos distintos que sobre o mesmo facto fizeram J e E. Durante o exílio da Babilónia, escreveu-se um terceiro documento, o P, de origem sacerdotal. Dedicado fundamentalmente a questões de caráter ritual, mas também às genealogias, em algum momento do século V a.C., este código sacerdotal se teria entrelaçado com J e E. Com a adição de D, um texto que pode ter aparecido durante a reforma do rei Josias no século VII, nos encontraríamos com todos os materiais que formam o Pentateuco embora a forma atual não a teria até 400 a.C.

Apesar de, nas suas linhas mestras, a descrição das linhas anteriores corresponder à Hipótese documentária que é ensinada em seminários e faculdades, não é menos certo que é difícil encontrar dois defensores da Hipótese documentária que estejam de acordo em todos os detalhes.

Por exemplo, Rudolf Smend (1912) sustentou que, na realidade, não havia um documento J mas dois aos quais denominou J1 e J2. Otto Eissfeldt (1922) defendeu que dentro de J há também um documento L redigido em 860 a.C. R. H. Kennett (1920) negou – e outros o seguiram – que D fosse um livro relacionado com a reforma de Josias e o datou posteriormente. Autores como Martin Kegel (1919), Adam C. Welch (1924) e Edward Robertson (1936, 1941, 1942, 1944) acentuaram este aspecto e atrasaram consideravelmente D. Max Löhr negou a existência de um documento P e atribuiu a redação final do Pentateuco a Esdras. Por seu lado, Julius Morgenstern e Robert Pfeiffer apontaram a existência de documentos adicionais assinalando o primeiro a existência de um denominado K dentro de J e o segundo, a de outro chamado S também no seio de J.

Embora – insistimos nisto - a exposição anterior não pretenda ser de modo algum exaustiva, não é difícil de ver que os defensores da Hipótese diferem em muitos aspectos e que não veem com muita clareza a delimitação dos documentos – costuma ser habitual nos comentários que uma parte de um versículo seja atribuída a um documento e outra parte a um segundo documento! – mas pode dizer-se que coincidem em algo de não pouca relevância, que Moisés não escreveu o Pentateuco mas que este foi redigido muito posteriormente.

Não há dúvida de que semelhante conclusão se reveste de uma enorme relevância. As bases apresentadas para a mesma as examinaremos no próximo capítulo.


2. Pentateuco: bases da hipótese JEDP
A hipótese documentária: as razões da sua existência

No último capítulo tentei realizar uma descrição sumária da denominada hipótese documentária, uma teoria do século XIX sobre a autoria do Pentateuco que desde há décadas se converteu praticamente em doutrina oficial nos seminários católicos e em boa parte dos protestantes.

Naturalmente, apesar das suas contradições e das suas distintas versões dificilmente conciliáveis, a Hipótese documentária pretende sustentar-se numa série de argumentos que tentarei reunir neste capítulo.

Adiantamos que esses argumentos são de maneira muito acentuada filhos do seu tempo.

1) Um ponto de vista natural e evolucionista contra uma abordagem sobrenatural. Em primeiro lugar, a Hipótese documentária parte de um esquema evolucionista da História das religiões. Começando pelo animismo e continuando pelo politeísmo, a religião, por definição, só pode aparecer em tom monoteísta num momento determinado da História, mas não antes. Nesse sentido, referências de caráter monoteísta como as contidas no Pentateuco não podem ser contemporâneas aos factos narrados e, por definição, devem ser fruto de uma evolução posterior. O mesmo poderia dizer-se de boa parte do ensino moral do Pentateuco como a proibição de dar culto às imagens (Êxodo 20, 4 ss). O aparecimento da filosofia hegeliana – que apresentava uma abordagem evolucionista da História baseada na contraposição de tese e antítese - e a sociologia da religião do século XIX contribuíram enormemente para sustentar este ponto de vista e para dotar aparentemente a Hipótese documentária de uma capa de seriedade científica.

2) Superioridade da crítica literária sobre os achados arqueológicos. A Hipótese documentária foi-se desenvolvendo também numa época caracterizada por uma prática da crítica literária entusiasmada com a ideia de desmembrar as fontes históricas na procura de sucessivas camadas de tradição nelas. Esse comportamento – que afetou também fontes clássicas como as obras de Homero e o Novo Testamento – foi favorecido pelo facto de que a arqueologia estava nos seus inícios e não se contrastavam as suposições documentárias com o que ia aparecendo graças à picareta do investigador. Quando, posteriormente, a arqueologia se foi desenvolvendo, poucos pareceram sentir-se inclinados a aceitar a ideia de que os achados arqueológicos poderiam questionar as suas pressuposições literárias. A verdade oficial estava já estabelecida e não ia permitir-se que fosse questionada por quem andava a procurar debaixo da terra vestígios do passado.

Partindo dessa base, os partidários da Hipótese documentária puderam afirmar – e continuam fazendo-o – que Moisés não pôde ter escrito o Pentateuco porque Israel não podia conhecer a Escrita nessa época ou que os relatos sobre os patriarcas estavam cheios de imprecisões históricas.

As consequências diretas desta abordagem são fundamentalmente três:

1) O Pentateuco (e seguramente boa parte do Antigo Testamento) carece de caráter histórico. Semelhante afirmação choca com as próprias declarações do Antigo Testamento além de com as de Jesus e seus discípulos, mas ainda assim é admitida em centros que se definem como cristãos recorrendo a teses como a dos géneros literários muito popular, por exemplo, em âmbitos católicos. Assim, a informação contida em Génesis ou Êxodo poderá carecer de base real, mas isso, supostamente, não teria importância porque a forma de expressão dos distintos autores do Pentateuco teria sido a saga, a lenda etiológica, etc.

2) A religião de Israel seria de origem tão natural como a de qualquer outro povo. Naturalmente, essa conclusão é negada – embora nem sempre - pelos professores de faculdades e seminários que têm um caráter confessional e inclusive recorre-se a artifícios como o de indicar que no fim de contas a Providência se adapta aos meios naturais. É, no entanto, discutível que Deus tenha que moldar-se a um suposto modelo evolutivo da religião e, de facto, existem bastantes razões para pensar o contrário, mas sobre esse tema voltaremos mais adiante.

3) O Pentateuco – e com ele a História e a religião de Israel – é uma fraude. Como pode supor-se é duvidoso que o professor de um seminário aceite esta conclusão de maneira tão taxativa (embora alguns o façam. Fui testemunha disso), mas a verdade é que não resulta fácil saber como se pode evitar chegar a esse ponto. Se, efetivamente, Moisés não escreveu o Pentateuco e durante séculos distintos personagens foram escrevendo textos que lhe atribuíram e que costuraram até dar lugar a uma obra cuja autoria lhe atribuíram falsamente nos encontraríamos não com uma fraude mas com uma cadeia de fraudes verdadeiramente espetacular, fraude, por outro lado, a que se teria somado o próprio Jesus.

Como teremos ocasião de começar a ver no seguinte capítulo os pilares básicos da Hipótese documentária resultam, apesar do seu peso em distintos centros docentes, insustentáveis.


3. Hipótese JEDP e patriarcas
A hipótese documentária: as respostas

No último capítulo sobre a hipótese JEDP acerca do Pentateuco tentei realizar uma breve descrição dos argumentos em favor da denominada hipótese documentária (também chamada hipótese JEDP).

No presente capítulo e nos seguintes, tentarei abordar por que carecem de fundamento e, na realidade, chocam frontalmente com a realidade.

A VERACIDADE ARQUEOLÓGICA DAS HISTÓRIAS DOS PATRIARCAS.

Como já indicamos, a Hipótese documentária foi-se desenvolvendo numa época caracterizada por uma prática da crítica literária entusiasmada com a ideia de desmembrar as fontes históricas na procura de sucessivas camadas de tradição nelas. No entanto, em paralelo, a arqueologia ou era inexistente ou estava verdadeiramente verde como disciplina auxiliar da História.

Se o Pentateuco tivesse sido escrito nas distintas datas assinaladas pela Hipótese documentária estaria cheio de anacronismos e conteria múltiplas imprecisões. Isso pretendem os defensores da HD, mas o certo é que os achados arqueológicos levam-nos a ver exatamente o contrário.

Por exemplo, em 1925 – várias décadas depois da articulação da HD – descobriram-se em Nuzi, uma cidade situada a sudeste de Nínive, umas vinte mil tabuletas pertencentes ao século XVI-XV a.C. De maneira bem reveladora, nelas encontramos claros paralelos com o que sobre os Patriarcas nos narra a Bíblia.

Por exemplo, a ideia de que o mordomo deve ser o herdeiro de um homem sem filhos como sucedia com Abraão e Eliézer antes de o primeiro contar com descendência (Génesis 15:2 e 24:2); o roubo dos terafins de Labão por Raquel já que eram peça de boa sorte e a sua perda uma grande desgraça (Génesis 31); a toma de uma concubina para ter filhos – no caso de Abraão e Jacó - porque a esposa é estéril e convida o marido a que dê esse passo (Génesis 16:2 e 30:3) e inclusive a venda da primogenitura que Esaú realizou em favor de Jacó (Génesis 25:30-34) constituem exemplos bem esclarecedores de instituições jurídicas pertencentes precisamente à época dos Patriarcas, mas não da monarquia de David ou do regresso do Exílio.

O mesmo pode dizer-se do relato da compra da cova de Macpela por Abraão a Efrom o hitita (Génesis 23). De maneira lógica se se crê na data antiga do Pentateuco, incompreensível se aceitamos a hipótese documentária, os dados do Génesis ajustam-se precisamente a um código legal hitita encontrado em Boghazkoy.

Acrescenta-se a isto que os supostos anacronismos mencionados nestes relatos não são tais. Por exemplo, costuma-se repetir até à saciedade que o Génesis menciona o uso de camelos e que a sua domesticação não é anterior ao século XII a.C., ou seja, muito posterior aos Patriarcas pelo que também o Pentateuco teria que ter sido redigido em data mais tardia.

A realidade é que quase causa rubor escutar semelhante argumento e inclusive contemplá-lo em documentários de recente realização. De facto, já nas escavações de Mari realizadas por Parrot encontraram-se restos de 2.400 a.C., que pertenciam a camelos domesticados. Igualmente, uma tabuleta do século XVIII a.C., encontrada em Alalach, ao norte da Síria, menciona especificamente o camelo (gam.mal) como animal doméstico. Voltamos a encontrá-lo num relevo de Biblos, Fenícia, também no século XVIII a.C. e igualmente contamos com distintos selos cilíndricos da Mesopotâmia – o lugar de origem de Abraão – com ginetes cavalgando em camelos.

Também se costuma apontar que a menção dos filisteus em Génesis é um anacronismo que indica uma data tardia de redação do Pentateuco. A realidade arqueológica é que os “filisteus” como povos do Egeu eram largamente conhecidos na época dos Patriarcas e não só conservamos restos da sua cerâmica mas inclusive há menções sobre eles numa tabuleta de Mari do século XVIII a.C.

Mas se tudo isto não bastasse, as descrições geográficas dos relatos patriarcais correspondem com exatidão ao que conhecemos do Bronze Médio (c.1900-1600 a.C.). Em termos gerais, os patriarcas estiveram associados com a zona montanhosa – e densamente florestal nessa época – onde se encontravam Dothan, Gerar, Siquém e Betel. De todas elas temos conhecimento na época que relata o Pentateuco e o mesmo pode dizer-se de Gezer e Megido.

Este conjunto de circunstâncias tem uma explicação clara e evidente se o Pentateuco foi escrito na época que afirma a Bíblia. São absolutamente incompreensíveis se, pelo contrário, o Pentateuco foi escrito no século X a.C., já para não falar no século VI a.C. Certamente, a aproximação ao Pentateuco partindo da Hipótese documentária pode encontrar anacronismos, mas – como voltaremos a ver em posteriores capítulos - não serão outros distintos aos da própria Hipótese que se mantém com o passar do tempo nos pressupostos de um século XIX que desconhecia a arqueologia.


4. Hipótese JEDP: Israel no Egito
A hipótese documentária: respostas: Israel no Egito

No último capítulo tentei deixar claro como os dados proporcionados pela Torá sobre o contexto histórico dos patriarcas correspondem de maneira tão meticulosa com fontes contemporâneas aos factos relatados que resulta altamente improvável – para não dizer, impossível – que fosse redigida nas datas que lhe atribui a Hipótese documentária. Algo similar sucede com as referências históricas.

Se nos detivermos na história de José, tem de reconhecer-se que o Génesis nos proporciona dados muito exatos sobre a vida no Império Médio, a contemporânea de Jacó e seus filhos, e não a do Império Novo, contemporâneo de Moisés. Por exemplo, Potifar, o amo de José, é descrito como saris hatabbachim em Génesis 37:36 e 39:1. O saris é o sr egípcio (oficial) e o sar hatabbachim é o comandante da guarda que conhecemos nas fontes egípcias.

Segundo Génesis 39, 2-3 José começou a sua carreira no Egito como mordomo da casa de Potifar. Pois bem, Hick compilou partindo de monumentos do Império médio uma lista de escravos asiáticos que apresentam paralelos surpreendentes com o trabalho atribuído a José.

De todos é sabido como José foi atirado para a prisão após ser acusado falsamente pela mulher de seu amo e como no seu cativeiro encontrou-se com um copeiro e um padeiro. Ambos os ofícios aparecem consignados nas fontes egípcias do império médio. O copeiro era designado com o apelativo de mashqeh e os padeiros estavam divididos em três categorias. Também encaixa com a época o interesse pela interpretação de sonhos. De facto, contamos com um manual destinado a esse fim que pertence precisamente à XIX Dinastia.

O relato bíblico também menciona como, uma vez libertado, José teve que passar por diversas circunstâncias que encontram paralelo nas fontes egípcias. Por exemplo, está muito testificado o costume de barbear-se e mudar de roupa antes de aparecer perante o faraó (Gen 41:14). Também sabemos que lhe foi entregue um colar de ouro (Gen 41:41-42). D. B. Redford citou trinta e dois exemplos de pinturas em túmulos egípcios onde o faraó entrega colares de ouro a servos seus. De maneira bem reveladora, o presente considera-se uma recompensa por algo realizado que, no caso de José, foi a revelação de sonhos.

Igualmente o v. 43 nos fala de um carro entregue ao primeiro ministro, embora transpareça que semelhante uso era muito limitado naquela época. Isso mesmo é o que conhecemos pelas fontes egípcias do Império Médio durante o qual o carro era conhecido, mas escassamente utilizado o que explica amplamente como os hyksos, que se valeram profusamente dessa arma, puderam derrotá-los.

Se, efetivamente, a Torá foi redigida por Moisés, há uma notável lógica na exatidão dos dados proporcionados pelo Génesis acerca de José e da sua época. Pelo contrário, como poderia dar-se essa exatidão em textos escritos durante a monarquia de Israel e inclusive no regresso do Exílio da Babilónia? Nesta e noutras questões, a Hipótese documentária - uma vez mais! – levanta mais problemas do que os que resolve.


5. Hipótese JEDP e a moral de Moisés
A hipótese documentária ou JEDP: respostas: os critérios morais

A Hipótese documentária costuma apresentar como suposta prova da época tardia do Pentateuco o facto de apresentar critérios morais que, supostamente, não corresponderiam à época de Moisés. Seguindo uma visão – certamente, bastante discutível – que sustenta a evolução do pensamento religioso até chegar ao monoteísmo, não se poderia admitir que Moisés fosse monoteísta como também que o decálogo incluísse um mandamento – o segundo (Êxodo 20,4 ss) – que proíbe prestar culto às imagens.

Ambos os argumentos resultam, ao contrário do que afirma a Hipótese documentária, insustentáveis.

Para começar, não é verdade que a História da Humanidade mostra uma evolução do politeísmo para o monoteísmo. Na verdade, o que encontramos em boa parte dos primitivos atuais é um monoteísmo inicial que foi degenerando em politeísmo mantendo ou não a crença num primeiro deus o qual, isso sim, se costuma acantoar no panteão ou inclusive fazer desaparecer. Além disso, a época de Moisés esteve muito próxima ao monoteísmo de Akhenaton no Egito (um ponto que Freud não deixou de perceber) e o certo é que ninguém negou o monoteísmo do faraó egípcio como impossível para a época. O monoteísmo da Torá não é, de modo nenhum, motivo para negar a autoria mosaica a não ser que se tenham poderosos preconceitos.

Algo similar sucede com a proibição contida nos Dez mandamentos de prestar culto às imagens (Êxodo 20:4-5; Deuteronómio 5:7-8).

Se se entendesse que Moisés não podia fazer constar essa proibição porque na sua época se prestava culto às imagens se teria também que chegar à conclusão que o Pentateuco também não poderia ter sido escrito hoje quando milhões de católicos – para não falar dos fiéis de outras confissões – prestam culto a imagens e dão-lhes um papel nada desprezível nas suas práticas e cerimónias religiosas.

Para além disso, pela enésima vez, a arqueologia apoia o contido no relato bíblico. Da mesma maneira que seria impossível realizar uma escavação no Antigo Egito ou na Europa medieval sem que apareçam imagens de culto, não é menos certo que não encontramos imagens nos estratos mais antigos da História de Israel. Por exemplo, nas escavações de Megido escavaram-se os cinco níveis urbanos – todos israelitas – sem que aparecesse uma só imagem como deixou claro G. E. Wright que dirigiu as escavações realizadas pela universidade de Chicago.

Na realidade, na História de Israel produziu-se em relação ao culto às imagens uma evolução muito similar à seguida pelo cristianismo posterior. Inicialmente, encontrava-se proscrito e contemplava-se com horror. Somente a absorção – muito depois de Moisés – de influências pagãs levou a permitir com os argumentos mais diversos esse culto. No entanto, a pregação dos profetas sempre foi contrária ao culto às imagens – basta ler Isaías 44:6-20 para ver o que Deus pensa desse culto se cubra ou não com os argumentos mais especiosos – e não há a menor dúvida de que o povo de Israel aprendeu a lição e não voltou a contaminar-se com ele.

Por qualquer ponta que se pegue, os argumentos para negar a autoria mosaica são muito frágeis e partem mais de preconceitos filosóficos que de razões sólidas.

Mas se não bastasse, como veremos no nosso próximo capítulo, historicamente não houve discussão sobre a autoria de Moisés até muito recentemente.


6. JEDP: Quem escreveu a Torá?
A hipótese documentária ou JEDP: respostas: a escrita

A Hipótese documentária costuma apresentar como outro dos argumentos contra a autoria mosaica da Torá o facto de que a escrita não tinha chegado a Israel em datas como o século XV a.C. Dada essa circunstância, a Torá teve, segundo esta hipótese, que ser redigida vários séculos depois.

O certo é que este argumento resulta insustentável de uma perspetiva histórica pelo menos desde os inícios do século XX o que não impede que se veja repetido constantemente com incompreensível teimosia.

De facto, como afirmou nos seus dias o assiriólogo britânico A. H. Sayce, o certo é que séculos antes, não de Moisés mas dos próprios Patriarcas existia uma escrita cuja finalidade era fundamentalmente literária e da qual nos ficaram bibliotecas inteiras.

No caso de Canaã, já havia pelo menos cinco sistemas de escrita entre 2100 e 1500 a. C. Utilizava-se inclusive um alfabeto específico, o de Ugarit, séculos antes da chegada de Israel à Terra prometida. De facto, as descobertas das tabuletas de Ugarit e Ras Shamra em 1929 nos permitiram conhecer um sistema de escrita que é anterior ao século XV a.C.

A isso podia-se somar – como já mencionado – a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, os sistemas de escrita de Creta (pelo menos três), o alfabeto fenício (em uso pelo menos desde o século XXIII a.C.), os hieróglifos egípcios e a escrita do Sinai.

Em 1907, Flinders Petrie encontrou no Sinai um conjunto de inscrições em caracteres cananeus cujo deciframento teve de esperar dez anos e a intervenção do egiptólogo Alan Gardiner. A sua datação correspondia a um período anterior à metade do segundo milénio a.C., nova prova de que a escrita não só existia antes de Moisés mas de que também a sua popularização tinha chegado a numerosos estratos sociais.

À luz das descobertas que nos foi proporcionando a arqueologia no último século resulta óbvio que, sem dúvida, existia escrita na época de Moisés, que possuía diversas formas, que estava muito difundida e que, obviamente, pôde ser utilizada para redigir a Torá.

Neste como noutros aspectos, a Hipótese documentária alimenta-se mais do preconceito e da preguiça intelectual que de factos sólidos. Na verdade, os dados objetivos a desmentem.


7. JEDP: os nomes de Deus
A hipótese documentária ou JEDP: respostas: os distintos nomes de Deus

A Hipótese documentária costuma apresentar como outro dos argumentos contra a autoria mosaica da Torá a utilização de diferentes nomes divinos.

Na verdade, se se supõe a existência de um documento J ou de um documento E – que, dito seja de passagem, jamais se encontraram – deve-se ao uso de YHWH, Elohim ou YHWH-Elohim.

Esta variedade de nomes tem sido de fácil explicação no seio do judaísmo desde há séculos. Em data tão longínqua como o século XII, Yehudah ha-Levi estudou o significado concreto desses nomes referentes a um só Deus. Assinalou assim que Elohim é sempre um nome de caráter geral que se refere ao Seu poder, mas não às suas características éticas ou à relação de pacto. Quando, pelo contrário, Deus deu testemunho de Si e é conhecido a Elohim acrescenta-se outro nome, o de YHWH que faz referência à sua revelação e também à condição de pacto. Dessa maneira, YHWH não tem sentido para todos, porque só é apropriado onde há consciência da sua revelação. Elohim, pelo contrário, é idóneo num sentido geral.

Umberto Cassuto, professor da Universidade hebraica de Jerusalém e um dos opositores mais firmes da Hipótese Documentária, incidiu de maneira especial neste aspecto indicando como Elohim era um nome comum aplicável não só ao Deus de Israel e como YHWH, pelo contrário, é um nome próprio.

A este respeito, o distinto uso dos nomes não deixa de ser revelador.

1) YHWH usa-se para expressar o conceito de Deus que tinha Israel, de maneira especial o seu caráter moral, mas Elohim é usado para uma visão mais ampla que podia ser aceite inclusive pelos sábios dentre os pagãos, ou seja, o Criador do universo e o que governa o cosmos.

2) YHWH usa-se para indicar uma relação direta com Deus própria da fé, mas Elohim relaciona-se mais com a reflexão sobre questões como a origem do mundo ou do ser humano.

3) YHWH usa-se associado com atributos divinos muito concretos e, em boa medida, exclusivos, mas Elohim associa-se antes como qualidades não tão claras nem perfiladas.

4) YHWH usa-se para referir o caráter pessoal de Deus, enquanto Elohim costuma estar mais relacionado com o Seu caráter transcendente.

5) YHWH usa-se para referir a relação de pacto com Israel ou seus antecessores, enquanto Elohim refere-se a contactos que não costumam ter que ver com Israel. 

6) YHWH aparece como o Deus que intervém na História de Israel, enquanto Elohim aparece ligado com uma visão universal.

Se refletirmos nisso, podemos apreciar claros paralelos com a maneira em que crentes e não crentes se referem a Deus. Um não-crente no sentido bíblico costuma referir-se a Deus para aceitar ou negar a sua existência, mas não menciona o Senhor (YHWH) porque essa é uma denominação reservada aos que creem e têm a pretensão de manter uma relação pessoal com Deus. Isso mesmo encontramos na Torá e é lógico que assim seja.

De maneira bem significativa, esse uso dos nomes divinos é harmónico no resto do Antigo Testamento. Por exemplo, os profetas geralmente utilizam YHWH e é o apropriado porque se referem ao Deus do pacto. Curiosamente, a exceção é Jonas, mas é fácil lembrar que Jonas dirigia-se fundamentalmente a uns assírios pagãos aos quais chamava ao arrependimento.

De maneira similar, na poesia bíblica o nome utilizado de maneira preeminente é YHWH, o Deus do Pacto, e as exceções com uso de Elohim aparecem referentes a âmbitos universais.

Na Torá, o uso de um nome ou outro encaixa na perfeição com o que acabamos de dizer. Por exemplo, que nome usa o autor da Torá para referir-se ao Deus que criou o mundo e o género humano? Elohim, como era de esperar. Que nome utiliza a serpente e Eva? Elohim, naturalmente. Que nome se usa no capítulo 2 de Génesis quando Deus se apresenta em relação de pacto com Adão e Eva? Logicamente YHWH, um nome que não utilizaria Satanás que não se encontra em relação de pacto com Ele. Também é YHWH quem chama Adão (3:9), quem o repreende (3:13) e quem anuncia o castigo da serpente e a redenção (3:14).

Contrariamente aos pressupostos que expõe a Hipótese documentária, o que encontramos não é uma junção de documentos, mas um autor que se comporta com uma prodigiosa coerência na hora de utilizar os nomes divinos de acordo com um significado muito concreto dos mesmos. Mas sobre este tema falaremos mais aprofundadamente no próximo capítulo.


8. JEDP: Moisés e o nome de YHWH
A hipótese documentária ou JEDP: respostas: YHWH o nome de Deus

Já indicamos que a utilização de YHWH ou Elohim no Antigo Testamento e, de maneira muito especial, na Torá obedece ao conteúdo que aos distintos nomes de Deus se dá em hebraico e não à existência de uma pluralidade de autores e documentos.

Desde logo, não deixa de ser significativo que essa mesma interpretação seja a que mantiveram durante milénios os intérpretes judeus mais destacados.

É o caso, por exemplo, de Rashi, o comentarista da Torá mais importante da Idade Média que ainda continua sendo estudado nas yeshivot. No seu comentário a Bereshit (Génesis), Rashi detalha ao abordar o relato da criação no primeiro capítulo como o uso de Elohim é obrigatório ao ter um âmbito universal, não referir-se ao pacto com Israel e ao indicar a possibilidade de juízo. Não há distintos autores. Há diferença de conteúdos teológicos nos nomes, uns conteúdos que os partidários da Hipótese documentária parecem incapazes de perceber.

Precisamente, por isso não é de estranhar a interpretação milenar que os exegetas judeus deram a um dos argumentos mais utilizados pelos defensores da hipótese documentária, a referência a Êxodo 6:1-8. Vejamos, em primeiro lugar, o que indica a passagem:

YHWH respondeu a Moisés: Agora verás o que eu farei a Faraó, porque com mão forte os deixará ir; e com mão forte os lançará de sua terra. Falou mais Deus a Moisés, e disse: Eu sou YHWH. E eu apareci a Abraão, a Isaque, e a Jacó sob o nome de El-Shaddai, mas em meu nome YHWH não me dei a conhecer a eles. E também estabeleci o meu pacto com eles, de dar-lhes a terra de Canaã, a terra em que foram estrangeiros, e na qual andaram como peregrinos. E também ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais têm submetidos a servidão os egípcios, e lembrei-me do meu pacto. Portanto dirás aos filhos de Israel: EU YHWH; e eu vos tirarei de debaixo das cargas do Egito, e vos livrarei da sua servidão, e vos resgatarei com braço estendido, e com grandes juízos. E vos tomarei como meu povo e serei vosso Deus: e vós sabereis que eu sou YHWH vosso Deus, que vos tiro de debaixo das cargas do Egito. E vos levarei à terra, pela qual levantei a minha mão prometendo que a daria a Abraão, a Isaque e a Jacó: e eu vo-la darei por herança. Eu YHWH.

A interpretação clássica do texto anterior, segundo a Hipótese documentária, é que YHWH foi um nome desconhecido para os patriarcas. Estes teriam invocado Deus unicamente como El-Shaddai (Deus Todo-poderoso) e, portanto, a aparição de YHWH em passagens anteriores a Moisés tão só indicaria uma pluralidade de autores e documentos.

Na verdade, uma das coisas que mais chama a atenção na Hipótese documentária é que, a aceitá-la, também teríamos que aceitar o caráter verdadeiramente trapalhão do suposto redator do texto final da Torá que foi incapaz de resolver umas contradições aparentemente tão palpáveis. No entanto, a verdade é que nem existem tais contradições nem existiu tal redator tardio.

Foi uma vez mais o próprio Rashi no seu comentário à Torá quem interpretou magnificamente esta passagem. O que Deus diz a Moisés não é que os patriarcas nunca tinham ouvido falar de YHWH mas que nunca o conheceram agindo na qualidade de tal, ou seja, como Deus que cumpre o pacto. Abraão, Isaque e Jacó podiam dar testemunho de que Deus se lhes havia manifestado como o Todo-poderoso – El Shaddai – em múltiplas ocasiões, mas nunca foram testemunhas de como o pacto de entregar-lhes a terra se havia cumprido.

Os israelitas da época de Moisés, sim, conheceriam Deus na sua qualidade de YHWH. Eu YHWH, Eu o Deus do Pacto, era quem garantia o cumprimento do pacto porque conseguiria, primeiro, a liberdade e, depois, lhes daria a terra pactuada com os Patriarcas. De maneira bem significativa, a passagem de Êxodo 6:1 ss longe de validar a Hipótese documentária, a refuta.

Por outro lado, resulta óbvio que o nome de
YHWH como tal foi conhecido pelos Patriarcas e seus coetâneos. Foi o caso de Abraão (Génesis 15:2, 8), Sarai (16:2), Labão (24:31), Ló (19:13) ou Jacó (28:13). Todos eles conheceram YHWH, mas não o viram agir na qualidade de tal, como Deus que executa os termos do pacto. Esse privilégio ficou reservado para os israelitas da época de Moisés.

Se a Hipótese documentária não suporta a menor análise crítica em relação aos nomes de Deus, ainda fica mais exposta a sua inconsistência quando vemos como aparecem esses nomes nos supostos documentos J, E e P. Por exemplo, Elohim aparece em passagens da suposta fonte J como Génesis 31:50 ou Génesis 33:5 e 11 e, de maneira semelhante, nos encontramos com YHWH em passagens do suposto documento E como Génesis 21, 33; 22, 4 e 11; 28, 21 ou Êxodo 18, 1 e 8-11.

Apesar de tudo, a debilidade do pilar da Hipótese documentária – os distintos nomes – não é de todo, como já vimos, a única razão para rejeitá-la pela raiz.

Continuaremos vendo-o, nos próximos capítulos.


9. Falsos “dobletes” da hipótese JEDP
A hipótese documentária ou JEDP: respostas: dobletes

Outro dos argumentos utilizados pelos partidários da Hipótese documentária (HD) para apoiar a suposta existência de vários documentos juntados na Torá é a aparição de supostos dobletes ou duplicações.

Substancialmente, estes poderiam enquadrar-se em dois grupos. Por um lado, nos encontraríamos com o mesmo relato supostamente narrado duas vezes porque aparece de maneira diferente em dois documentos ou com uma história que também aparece duplicada embora os protagonistas variem porque num documento eram uns e noutro, outros.

Ao primeiro grupo, corresponderia, segundo a HD, por exemplo, os relatos da criação e, ao segundo, as referências às tentativas de seduzir as esposas de Abraão e Isaque.

Embora este argumento se continue a utilizar com prazer, a verdade é que resulta muito débil quando se examinam atentamente os dados.

Comecemos pelos supostos relatos contraditórios da Criação.

Segundo a HD, teríamos um primeiro relato E no capítulo 1 e outro J no capítulo 2. A realidade é que estamos perante um relato único da criação que, primeiro, faz referência ao cosmos e que depois se centra no homem.

No curso desse relato – como já indicamos num capítulo anterior – o uso de distintos nomes de Deus está mais que justificado. Mas se o anterior não bastasse, o relato – que não relatos - da criação segue um padrão típico do Antigo Oriente no qual a uma exposição geral e concreta lhe segue outra mais ampla e detalhada. Por exemplo, na estela poética de Karnak onde o deus Amon se dirige ao faraó Tutmósis III – que, seguramente, é o faraó que não conheceu José e se dedicou a tornar a vida impossível aos filhos de Israel – encontramos, primeiro, uma descrição geral e esquemática da sua supremacia para depois dar com uma descrição mais detalhada e concreta. Obviamente, não existe nenhum egiptólogo louco que pretenda que a primeira parte da estela se originou com um documento, a segunda com outro e depois veio um redator que os uniu. Semelhante dislate fica reservado, ao que parece, para os que se aproximam do texto da Bíblia para aplicar umas regras que nenhum historiador da Antiguidade aplicaria a César, Tácito ou Diodoro.

Em outros casos, por exemplo, os supostos dobletes pretendem algo tão absurdo como que determinados acontecimentos só se produzem uma vez na vida ou inclusive na História. Tomemos como exemplo o riso de Abraão e Sara ao saber que nasceria Isaque. Segundo a HD, Gn 17, 17 pertence a P; 18, 12 a J e 21, 6 a E e se referem ao mesmo facto. De certeza? Realmente é impossível crer que Sara riu incrédula ao ouvir que teria um filho e depois o fez de felicidade quando nasceu… ou é mais impossível a posição da HD insistindo em que, como dizia o bolero, “somente uma vez se ri na vida”?

Outro exemplo apresentado pelos partidários da HD é que a tentativa de um potentado de dormir com Sara (Gn 20) e com Rebeca (Gn 26:6-11) pertence a uma só história, mal entendida pelos autores dos distintos documentos e convertida em duas.

Mas de verdade alguém acredita que Abraão e Isaque foram os únicos nómadas cujas esposas foram cobiçadas por homens poderosos? Ou, para ir mais longe, se Deus salvou Abraão, é impossível pensar que também o fez com Isaque que era o filho da promessa?

Na verdade, pretender que os supostos dobletes indicam distintos documentos narrando só um facto é um disparate tão considerável como se um historiador assinalasse que a rutura da frente francesa de Sedan que levou a cabo o exército alemão em 1870 e em 1940 foi só um único episódio e que esse único episódio foi confundido por dois redatores diferentes que consideraram que se tratava de factos distintos. Obviamente, esse historiador – verdadeiro transtornado – é impossível de encontrar.

Neste como noutros aspectos, a HD aparece uma vez mais como fruto de preconceitos em vez de como resultado de uma investigação séria.


10. Moisés escreveu o Pentateuco
A hipótese documentária ou JEDP: conclusão

Quem tenha tido a paciência de examinar os anteriores capítulos pôde comprovar que a denominada Hipótese Documentária conta com umas bases verdadeiramente frágeis que são desmentidas por uma análise rigorosa das fontes. Na verdade, a possibilidade de que algo remotamente semelhante fosse verdade não passou pela cabeça a nenhum judeu durante séculos.

Josué 8, 32 fala, por exemplo, da Torá de Moisés que ele tinha escrito e as referências a uma Torá escrita pelo próprio Moisés voltam a repetir-se em Josué 1, 7-8; 8, 31, 34; 23, 6. Encontramos o mesmo nos livros históricos (1 Reis 2, 3; 2 Reis 14, 6; 23, 25; 1 Crónicas 22, 13; 2 Crónicas 5, 10; 23, 18; 25, 4; 30, 16; 33, 8; 34, 14; 35, 12; Esdras 3, 2; 6, 18; 7, 6; Neemias 1, 7-8; 8, 1, 14; 9, 14; 10, 29; 13, 1) e, é claro, nos profetas (Daniel 19, 11 e 13; Malaquias 4, 4).

Evidentemente, é o que encontramos também nas primeiras fontes cristãs, as contidas no Novo Testamento. Jesus afirmou com clareza que a Torá foi dada através de Moisés (João 1, 17) e não através da junção tardia de uma série de documentos. De facto, as citações de Jesus referentes à autoria de Moisés são muito numerosas (Marcos 7, 10; 10, 3-5; 12, 26; Lucas 5, 14; 16, 29-31; 24, 27 e 44; João 7, 19 e 23, etc). Os apóstolos sabiam que Moisés escreveu a Torá (Marcos 12, 19) e Paulo indicou que foi Moisés quem tinha escrito essa passagem concreta da Torá (Romanos 10, 5). Podemos ver outras referências similares em Atos 3, 22; 6, 14; 13, 39; 15, 1 e 21; 26, 22; 28, 23; 1 Coríntios 9, 9; 2 Coríntios 3, 15; Hebreus 9, 19; Apocalipse 15, 3, etc.

Como já assinalámos, a crença em que os cinco livros da Torá se deveram à redação de Moisés manteve-se inalterável até finais do século XIX. As razões fundamentais para sustentar este ponto de vista eram que assim o indica o próprio texto, que assim se tinha transmitido por gerações e que nenhum dos manuscritos da Torá com que se contava indicava sequer de maneira indireta que na sua redação teriam participado mais autores ou que o texto final fosse uma montagem de distintas obras. Obviamente, alguns versículos como os últimos de Deuteronómio onde se faz referência à morte de Moisés atribuíam-se a um redator posterior mas em conjunto a Torá continuava considerando-se mosaica.

Este ponto de vista começou a ver-se seriamente questionado quando na última década do século XIX Julius Wellhausen defendeu que, na realidade, a Torá tinha experimentado uma redação muito dilatada no tempo e que se devia a vários autores que, obviamente, não se podiam identificar com Moisés. Já tivemos ocasião de ver como os seus argumentos eram muito pobres - a escrita não existia na época de Moisés; o texto continha repetições ou dobletes de episódios; Deus era chamado com diversos nomes no texto o que indicaria diferentes obras...– por mais que se continuem repetindo pacoviamente até o dia de hoje inclusive em seminários. Mas porquê?

As razões são várias. A primeira é que a Hipótese documentária encaixa na perfeição com uma visão da história das religiões que parte de uma concepção evolutiva em virtude da qual o ser humano teria ido passando por diversos estádios do seu desenvolvimento espiritual e, portanto, era inaceitável uma formulação tão primitiva da fé monoteísta. Para materialistas, marxistas ou ateus – e as três categorias juntam-se na mesma pessoa em não poucas ocasiões – a HD constituía um instrumento perfeito para atacar a fé na Bíblia e, certamente, a aproveitaram.

Igualmente a HD era atraente pela sua insistência em determinar a datação de uma obra partindo não de critérios históricos e arqueológicos mas filológicos. Perdido numa sala nebulosa da Alemanha e confrontado apenas com textos e teorias e com a visão indireta da realidade, o autor podia especular ao seu gosto desprendendo-se da verdade. Quando esta era descoberta pela picareta do arqueólogo, simplesmente se a desprezava.

Dada a falta de solidez da HD não estranha que, por exemplo, nos últimos anos se tenham multiplicado os livros de historiadores que defendem a impossibilidade da Hipótese documentária especialmente em relação ao primeiro livro da Torá, o Génesis. Rolf Rendtorff, por exemplo, indicou que a atribuição de palavras e expressões hebraicas a documentos concretos colapsa quando se realiza uma investigação séria e, ao mesmo tempo, assinala que a noção de teologia específica destes documentos é “ilusória”. Cyrus HGordon, por seu lado, repudiou igualmente a Hipótese documentária assinalando que a redação da Torá é praticamente contemporânea com os episódios que relata. Inclusive John Van Seters que mantém a crença em alguns documentos afirmou que a hipótese documentária deve ser “contemplada amplamente como obsoleta”. Finalmente, Duane Garrett num dos estudos mais inteligentes sobre a redação do Génesis escritos na última década do século XX nega a hipótese documentária e situa a redação do livro nos dias de Moisés. Foi Cassuto quem salientou que a hipótese documentária não se apoiava em pilares caracterizados pela debilidade pela simples razão de que nem sequer tinha esses pilares.

E agora chegamos à razão fundamental pela qual a Hipótese documentária continua a ensinar-se em faculdades e seminários. Em boa medida, pode afirmar-se que a defesa atual da hipótese documentária descansa fundamentalmente na preguiça que caracteriza certos segmentos do mundo académico para atualizar o que aprenderam décadas antes. Cyrus Gordon, no final de um artigo dedicado ao estudo da hipótese documentária, relatou um episódio bem esclarecedor a tal respeito: “Um professor da Bíblia numa universidade de vanguarda pediu-me em certa ocasião que lhe desse os factos reais acerca de JEPD. Essencialmente lhe disse o mesmo que escrevi aqui. Respondeu-me então: o que me disse convenceu-me, mas continuarei a ensinar o antigo sistema. Quando lhe perguntei o porquê me respondeu: porque o que você me contou implica que teria que desaprender e voltar a estudar e refletir. É-me mais fácil continuar com o sistema aceite da Alta Crítica para o qual contamos com livros de texto”.

Lamentavelmente, o caso do interlocutor de Gordon é bastante mais comum nos claustros universitários do que seria desejável e não só se dá em relação à HD. A questão é se semelhante comportamento é lícito de um ponto de vista académico. De uma perspetiva espiritual resulta pura, descarada e simplesmente aberrante.


César Vidal Manzanares
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