segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Agostinho de Hipona contra as orações dirigidas aos mortos e aos anjos

 
Agostinho (354-430): De modo que o bom servo, como eu disse, que já pode ser chamado um filho, não deseja que ele mesmo, mas que o seu senhor seja venerado. Pensai um pouco, irmãos e irmãs, e recordai o que assistis todos os dias; o que é realmente vos ensinado na igreja? Os fiéis sabem em que estilo os mártires são comemorados nos mistérios, quando os nossos desejos e orações são dirigidas a Deus.
 
John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.12 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 190.
 
Agostinho (354-430): E pode a sua própria oração ser considerada pecaminosa. Isto acontece porque nenhuma oração pode ser justa se não for oferecida através de Cristo, a quem Judas vendeu pelo seu pecado monstruoso. Uma oração feita de outra maneira que não através de Cristo não é meramente impotente para apagar o pecado; ela mesma se torna pecado.
 
John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Part 3, Vol. 19, trans. Maria Boulding, O.S.B., Expositions of the Psalms, Psalms 99-120, Exposition of Psalm 108.9 (Psalm 109) (Hyde Park: New City Press, 2003), p. 247.
 
Texto latino: Et oratio ejus fiat in peccatum. Quoniam non est justa oratio, nisi per Christum, quem vendidit immanitate peccati: oratio autem quae non fit per Christum, non solum non potest delere peccatum, sed etiam ipsa fit in peccatum. Ver In Psalmum CVIII Enarratio, §9, PL 37:1436.
 
Além disso, ao contrário de Roma, Agostinho também ensinou contra a invocação de anjos ...
 
Agostinho (354-430): Se alguém lhe disser: "Invoque o anjo Gabriel desta forma, invoque Miguel dessa outra; ofereça este pequeno ritual antigo, ou este mais moderno"; não se deixe levar, não concorde. E não se deixe enganar por ele só porque os nomes desses anjos podem ser lidos nas escrituras; observe antes qual o papel dos anjos que lá pode ser lido, se eles alguma vez exigiram de algum homem qualquer tipo de veneração religiosa pessoal para eles próprios, ou em vez disso sempre desejaram que a glória fosse dada ao único Deus, a quem eles obedecem.
 
John E. Rotelle, O.S.A., ed., The Works of Saint Augustine, Newly Discovered Sermons, Part 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., Sermon 198.47 (Hyde Park: New City Press, 1997), p. 217.
 
Portanto, segundo Agostinho de Hipona, as orações devem ser dirigidas somente a Deus através de Cristo.
 
A intercessão dos crentes defuntos pelos crentes vivos carece de fundamento bíblico. Nas Escrituras, os que acabaram a carreira são nos apresentados como exemplos e testemunhas através das suas vidas, não como intercessores depois da sua morte. Na verdade, não há uma só passagem bíblica na qual se peça alguma coisa a Deus pelos méritos de qualquer outro ser humano que não seja Jesus Cristo.
 
Além disso, as Escrituras proíbem como uma abominação qualquer tipo de comunicação com os mortos.
 
No seu Manual de Teologia Dogmática, Ludwig Ott diz:

"A Sagrada Escritura não conhece ainda o culto e invocação aos santos..."
 
Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática. Ed. Rev. Barcelona: Herder, 1968, p. 477).
 
A doutrina da invocação dos méritos dos "santos", certamente também não é uma tradição autenticamente apostólica conservada pela Igreja de Roma.
 
Não há evidência de que a Igreja Católica antiga, durante pelo menos os primeiros cinco séculos, ensinasse a recorrer aos méritos dos santos defuntos, e à sua intercessão para conseguir favores de Deus.
 
A comunhão dos santos é uma realidade que nada tem a ver com a doutrina extra-bíblica da invocação dos méritos dos "santos". A Bíblia chama santos a todos os crentes, não àqueles destacados em particular como tais pela Igreja de Roma.
 
Os únicos méritos que podemos invocar são os do único homem perfeito, nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo homem. Tudo o resto é não somente supérfluo mas blasfemo. Implicaria que se tem que complementar ou aperfeiçoar a obra do Senhor na cruz com os supostos méritos dos membros do santoral romano.
 
Na verdade, se analisarmos a bem-aventurada Maria e todos os santos que povoam o nutrido santoral católico:
 
- Encontraremos algum mais misericordioso do que Deus?
 
- Haverá algum mais poderoso do que Deus?
 
- Alguns deles poderiam amar-nos mais do que nos ama Deus?
 
- Sabe algum deles o que na verdade nos convém, melhor do que Deus?
 
- Possuiria algum a capacidade de escutar e responder a todas as orações como Deus?
 
São, evidentemente, perguntas retóricas que devem ser respondidas negativamente.

Então, que sentido tem orar a pessoas que talvez estejam no céu, mas que não são tão misericordiosas, nem tão poderosas, nem tão amorosas, nem tão sábias como Deus?
 
Em resumo, a doutrina da invocação dos méritos dos santos carece de toda a prova bíblica, patrística e histórica. Além disso, por cada minuto que se ora a um santo é um minuto que se perde de oração ao Deus vivo e verdadeiro.

18 comentários:

  1. Segundo Lutero e Melanchton, na Confissão de Augsburgo e sua Apologia, os santos "oram pela Igreja" (de modo geral), mas não devem ser invocados. A mesma posição é repetida por João Calvino em sua Carta ao Cardeal Sadoleto:

    "Ao afirmar a intercessão dos santos [no céu], se tudo que você quer dizer é que eles continuamente oram pela plena realização do reino de Cristo, do qual a salvação de todos dependem, nenhum de nós nega isso."

    Quanto a Agostinho, eu não conhecia essas passagens. Bem interessantes. Mas em outros lugares me lembro de ter lido ele falar de pessoas que "oraram a tal mártir". Será mera forma de dizer que oraram a Deus pela intercessão do mártir (sem uma invocação direta)? Agostinho certamente valorizava muito a "intercessão" dos santos (e dizia que devemos comemorá-los para receber sua intercessão), mas não sei se ele aprovava a invocação direta deles.

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    1. Correção: "... se tudo que você quer dizer é que eles continuamente oram pela plena realização do reino de Cristo, do qual a salvação de todos DEPENDE, nenhum de nós nega isso."

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  2. Com exceção do que indica o livro do Apocalipse quando afirma que as almas dos mártires no céu clamavam a Deus por justiça retributiva sobre aqueles que os tinham matado sobre terra, e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, tudo o resto que se possa dizer sobre o que os santos fazem no céu é pura especulação, a menos que esses reformadores tenham tido alguma revelação particular.

    Eu também não tenho nada contra, que alguém acredite como uma crença piedosa que os santos no céu oram [em nome de Cristo] pela Igreja, como nos está ordenado a orar [em nome de Cristo] uns pelos outros aqui na terra.

    Entretanto, o problema da doutrina católica é que, além de tentar comunicar com pessoas mortas, o que é uma coisa abominável segundo as Escrituras, invoca os méritos dos "santos" para que através deles consigam obter a graça pedida de Deus, transformando assim os "santos" em outros mediadores entre Deus e os homens, além de Cristo Jesus.

    Podia haver naturalmente pessoas que "orassem a tal mártir", mas isso não era uma prática aprovada pelos bispos ortodoxos da época. Tem que ver no contexto se Agostinho está a aprovar esse comportamento ou não.

    Agostinho valorizava a "intercessão" dos santos no mesmo sentido que Lutero e Melanchton, na Confissão de Augsburgo, e a comemoração dos mártires certamente não era a "dúlia" romana atual.

    Pode ver aqui mais citações de Agostinho sobre este assunto:

    http://www.puritanboard.com/f16/prayer-saints-8954/#post118958

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  3. Acho que é discutível se Agostinho aprovava a invocação direta dos santos. Mas está claro que ele não concordaria com seu raciocínio sobre os "méritos" dos santos. Para Agostinho, a santidade dos santos no céu - como algo derivado dos méritos de Cristo - tem valor perante Deus e nos alcançam graças. Como ele diz em outro lugar:

    "É verdade que os cristãos prestam homenagem religiosa à memória dos mártires, tanto para excitar-nos a imitá-los quanto para obter uma participação em seus méritos e a assistência de suas orações. (...) O que é propriamente adoração divina, que os gregos chamam 'latria', e para o qual não temos uma palavra em latim, tanto na doutrina quanto na prática, prestamos somente a Deus" (Contra Fausto, XX).

    Eu não vejo isso como diminuição da suficiência de Cristo. É como a intercessão de Jó por seus amigos: "Tomai, pois, sete bezerros e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei holocaustos por vós, e o meu servo Jó orará por vós; porque deveras a ele aceitarei, para que eu não vos trate conforme a vossa loucura; porque vós não falastes de mim o que era reto como o meu servo Jó" (Jó 42:8). Agostinho sempre enfatizou que os méritos de Cristo eram a fonte de toda santidade e valor das obras dos santos.

    A teologia protestante tem horror pela palavra "mérito", quando aplicada a outros que não Cristo. Mas o próprio Calvino reconhece nas Institutas que a palavra era usada pela Igreja antiga em sentido impróprio. Designava a "aceitabilidade" e "agradabilidade" das obras dos santos perante Deus, a qual era derivada justamente de serem feitas "em Cristo" e apresentadas ao Pai "por Cristo". Ninguém seria louco de negar que nossas obras "agradam" a Deus.

    Pois bem, nesse sentido, Agostinho e os demais Pais nicenos dizem que os santos intercedem por nós com seus "méritos", assim como Jó intercedeu por seus amigos. A parte mais problemática, a meu ver, é a questão da invocação direta dos santos.

    Acredito que é possível entrar em um acordo sobre esse tema. Mesmo que a Escritura não diga realmente que os santos oram por nós (com exceção do livro de Macabeus), a ideia de que eles oram não é incompatível com a Escritura (Lutero e Calvino testificam isso). E se essa intercessão e seus "méritos" forem entendidos corretamente, não vejo ofensa. A questão mais difícil é a da invocação direta dos santos no céu, essa sim precisaria ser revista.

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  4. Em nenhum momento o texto de Agostinho (Contra Fausto, XX), diz que santidade dos santos no céu tem valor perante Deus e nos alcançam graças.

    Mas que a homenagem que os cristãos prestavam aos mártires exercitava-os a imitá-los, permitia-lhes participar dos seus méritos e obter a assistência das suas orações, mas em momento algum diz que as orações dos mártires no céu, de que os cristãos beneficiavam, eram atendidas por causa dos méritos particulares dos mártires.

    De resto, os textos de Agostinho são claros a admitir como válidas somente as orações dirigidas a Deus por meio [dos méritos ] de Cristo.

    O texto com mais extensão diz:

    «É verdade que os cristãos rendem honra religiosa à memória dos mártires, para excitar-nos a imitá-los, e para obter parte dos seus méritos, e a assistência das suas orações. Mas não construímos altares a nenhum mártir, mas ao Deus dos mártires, ainda que seja para a memória dos mártires (...) A oferta se faz a Deus, que deu a coroa do martírio, enquanto é em memória dos assim coroados (...) Consideramos os mártires com a mesma intimidade afectuosa que sentimos pelos homens santos de Deus nesta vida, quando sabemos que os seus corações estão preparados para suportar o mesmo sofrimento pela verdade do evangelho. Há mais devoção nos nossos sentimentos pelos mártires, porque sabemos que a sua luta terminou; e podemos falar com mais confiança em louvor daqueles já vencedores no céu, que dos que ainda combatem aqui. O que é culto propriamente divino, que os gregos chamam latria, e para o qual não há palavra em latim, tanto na doutrina como na prática, o damos só a Deus. A este culto corresponde a oferta de sacrifícios; como vemos na palavra idolatria, que significa dar este culto a ídolos. Consequentemente, nunca oferecemos, nem exigimos de ninguém que ofereça, um sacrifício a um mártir, ou a uma alma santa, ou a algum anjo. Qualquer que caia neste erro é instruído pela doutrina, quer seja como correcção ou como advertência. Pois os próprios seres santos, sejam santos ou anjos, se recusam a aceitar o que sabem que se deve só a Deus (...) Sacrificar aos mártires, mesmo jejuando, é pior que voltar a casa intoxicado da festa; sacrificar aos mártires, digo, o que é muito diferente que sacrificar a Deus em memória dos mártires, como o fazemos constantemente, da maneira requerida desde a revelação do Novo testamento, pois isso pertence ao culto ou latria que se deve só a Deus. »

    Como pode ver-se, Agostinho traça a distinção entre latria e a honra que se dá aos mártires, mas não menciona de modo nenhum a dulia, já que deixa claro que tal honra é qualitativamente similar à que se deve às pessoas santas ainda vivas. O que corrobora a afirmação de que a suposta distinção entre latria e dulia é posterior.

    A Igreja de Roma já passou há muito o "ponto de retorno" para ser possível algum acordo. Dizer o contrário é pura ilusão.

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  5. Sobre os méritos dos santos, não vejo como poderíamos "obter uma participação em seus méritos" de outro modo. A grande confiança que o povo tinha nas orações dos santos era justamente por causa de seus "méritos", isto é, sua grande santidade e comunhão com Deus. Não era qualquer cristão que tinha sua intercessão procurada, suas relíquias honradas, etc. As citações em que Agostinho diz que devemos nos dirigir a Deus somente pelos méritos de Cristo não contradizem isso, pois ele via os méritos dos santos como algo derivado de Cristo. A intercessão dos santos também era mediada por Cristo e subordinada a Ele.

    Sobre a invocação direta dos santos, é possível que Agostinho também a aprovasse. Na Cidade de Deus, ele diz a respeito de um homem: "he prayed to the Twenty Martyrs" (antes de receber um milagre) e a respeito de outras pessoas: "they came daily to church, and specially to the relics of the most glorious Stephen, praying that God might now be appeased, and restore their former health". Essas expressões não parecem referir-se somente a uma oração dirigida a Deus pela intercessão do santo. Mas para formar uma opinião melhor teria que conduzir um estudo mais cuidadoso.

    Sobre a distinção entre latria e dulia, Agostinho diz o seguinte:

    "For this is the worship which is due to the Divinity, or, to speak more accurately, to the Deity; and, to express this worship in a single word as there does not occur to me any Latin term sufficiently exact, I shall avail myself, whenever necessary, of a Greek word. Λατρεία [latria], whenever it occurs in Scripture, is rendered by the word service. But that service which is due to men, and in reference to which the apostle writes that servants must be subject to their own masters, is usually designated by another word in Greek".

    Qual seria essa "outra palavra em grego"? No www.ccel.org, o texto vem com a seguinte nota: "Namely, δουλεία [dulia]: comp. Quæst in Exod. 94; Quæst. in Gen. 21; Contra Faustum, 15. 9, etc."

    Agostinho também vê a palavra "culto" como apropriada para outro que não Deus:

    "This cannot so well be called simply “cultus,” for in that case it would not seem to be due exclusively to God; for the same word is applied to the respect we pay either to the memory or the living presence of men."

    O mesmo ele diz sobre a palavra "religião". Veja a reflexão dele aqui: http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf102.iv.X.1.html

    De modo geral, percebe-se que Agostinho estava buscando ainda os melhores termos. Ele não é dogmático sobre palavras.

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  6. Você está a confundir várias coisas.

    Ninguém nega que os santos e principalmente os mártires tenham méritos e mereçam ser lembrados e respeitados como exemplos de vida e de fé.

    Também ninguém nega que o povo tinha confiança nas orações dos santos, mas isto não é a mesma coisa que invocar os seus méritos para ser atendido por Deus.

    Uma coisa é as orações dos santos no céu ou na terra, outra coisa é invocar os santos para que intercedam com os seus méritos junto de Deus. É na primeira coisa que Agostinho e o povo, ao prestar homenagem aos mártires, confiavam de que podiam beneficiar, mas não praticavam nem procuravam a segunda como ensina hoje a Igreja de Roma a fazer.

    Quanto ao resto, a primeira passagem não está a distinguir entre um suposto culto de latria e um culto de dulia, mas precisamente afirma que para expressar o culto devido a Deus usa o termo grego "latria" e para expressar um serviço que um homem presta a outro similar ao serviço que presta um escravo ao seu senhor, usa outro termo grego (porventura dulia). Ou seja, usa o termo dulia numa acepção diferente da prestação de alguma espécie de culto religioso.

    O que confirma que a honra dada aos mártires era qualitativamente similar à que se deve às pessoas santas ainda vivas. O que corrobora também que a suposta distinção entre culto de latria e culto de dulia é posterior.

    A segunda citação é a continuação da primeira, e Agostinho explica por que usa a palavra grega "latria" e não a latina "cultus". Diz que como a palavra latina "cultus" era usada para significar mais coisas que não somente a adoração a Deus, para não provocar equívocos ele usa precisamente o termo grego "latria" em detrimento do latino "cultus" para expressar o culto devido a Deus.

    Então é precisamente o contrário. Agostinho vê a palavra "culto" como não apropriada para expressar a adoração a Deus, porque ela era aplicada noutras coisas.

    Para ser consistente com Agostinho, quem não aplica a palavra culto em exclusividade para Deus deve deixar de usá-la para outra menos equívoca. O que não é o nosso caso.

    Nós também não somos dogmáticos sobre palavras. Apenas inteligimos os seus significados nos seus devidos contextos.

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  7. Calvino não foi meigo ao tratar este assunto nas suas Institutas

    http://ospedreiros.com/2012/12/11/a-intercessao-de-santos-mortos/

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  8. Entendo. Mas em que sentido você interpreta Agostinho quando ele diz que os cristãos celebram a memória dos santos no céu para "obter uma participação em seus méritos"? Que tipo de participação seria essa? E como você interpreta aquela passagem em que Agostinho descreve (com aprovação) uma pessoa que "prayed to the Twenty Martyrs"? Não seria uma referência à invocação direta dos mártires?

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  9. Os cristãos ao celebrar a memória dos mártires (que são santos mas não são todos os santos) associavam-se à sua obra, e ao mesmo tempo reconheciam os seus méritos, e nesse sentido também participavam dos seus méritos.

    No mesmo sentido que esta passagem de João, embora de sinal contrário:

    "Se alguém vem ter convosco, e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o saúda tem parte [ ou participa] nas suas más obras. "(II João 1:10-11)

    Não conheço essa passagem em que Agostinho supostamente aprova a oração a 20 Mártires. Mas a ser assim então o bispo de Hipona foi tremendamente inconsistente e contraditório com outras suas declarações.

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  10. Muito interessante. Como você interpreta Agostinho quando ele diz que devemos "honrar as relíquias dos mártires, como memoriais de homens que lutaram pela verdade"? Nessa questão (relíquias) você vê continuidade entre a prática dos Padres e da Ig. Católica Romana?

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  11. Interpreto a afirmação de Agostinho como uma exortação a que se deve honrar e tratar com respeito os corpos e os pertences dos mártires (e eu diria também de todos os santos) que nos precederam na fé. E concordo com ela,

    A conservação das relíquias dos santos mártires não é uma prática que se ensine positivamente na Bíblia, mas não parece contrária às Escrituras já que há exemplos que a sustentam.

    Outra coisa muito diferente é prestar-lhes culto assim como esperar por seu intermédio milagres, como se Deus se tivesse comprometido a operar através de restos ou objetos de santos defuntos. O problema é que a Igreja de Roma vai no seu ensino muito mais além da reverência devida às relíquias ao ensinar que é lícito e proveitoso prestar-lhes culto, com a desculpa que com isso se honra na realidade a Deus: “posto que de tal maneira adoramos e veneramos as relíquias dos mártires e confessores, que adoramos Aquele de quem são mártires e confessores; honramos os servos para que a honra redunde no Senhor, que disse: O que a vós recebe, a mim me recebe [Mt. 10,40]” (João XV, 985-996 e Concílio Romano de 993; Denzinger 342). No entanto, nem os apóstolos nem os anjos de Deus (Apocalipse 22:8-9) aceitaram algum tipo de veneração.

    Assim da legítima prática de lembrar os nossos predecessores na fé e honrar os seus restos e objetos, passou-se gradualmente ao culto deles e das suas relíquias, assim como à abominação de pedir a eles o que somente deve solicitar-se a Deus. Portanto, não houve uma continuidade da prática antiga, mas um desenvolvimento ilegítimo dessa prática para algo totalmente diferente.

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  12. Mas como delimitar a "honra" legítima e o "culto" ilegítimo? (Pois é preciso evitar disputas de palavras.) Muitos católicos diriam que o "culto" defendido pela Igreja não vai além da devida "reverência" ou "honra" (aos mártires, ou suas relíquias).

    Por exemplo, você falou em "esperar por seu intermédio milagres, como se Deus se tivesse comprometido a operar através de restos ou objetos de santos defuntos". Mas acho difícil dizer que isso seja doutrina católica. O católico acredita que Deus PODE operar milagres por intermédio de uma relíquia, mas não acredita que Deus se COMPROMETEU a fazê-lo (tanto que muitas relíquias nunca trouxeram milagres).

    Da mesma formar, beijar ou orar perante uma relíquia seria indevido? E ajoelhar-se perante ela? Como delimitar isso? No Antigo Testamento, havia um tipo de "reverência" tributada à Arca da Aliança e aos Reis e Profetas, que envolviam prostrar-se, por exemplo. Onde você localizaria o excesso na prática católico-romana?

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  13. A Igreja Católica usa as palavras "adoração" "veneração", "reverência", "honra" como sinónimos de um culto que é QUALITATIVAMENTE DIFERENTE do significado primário e normal que estas palavras têm em português.

    E isto fica bem evidente na prática. A reverência ou a honra de que são alvo os santos, as imagens e as relíquias católicas é bem diferente da honra e reverência que se deve a qualquer pessoa viva ou objeto.

    Ninguém para honrar e respeitar uma pessoa santa ainda viva, lhe oferece incenso ou acende velas, ou constrói imagens artísticas suas, e as leva em procissão, marca uma festa anual em sua homenagem, invoca os seus méritos nas suas orações, etc etc.

    Porquê? Porque o que a Igreja Católica entende por veneração, honra e reverência tributada aos santos, às imagens e relíquias é um culto religioso. Não é a afetividade, a honra ou reverência similar à que se tem ou deve a qualquer objeto de valor afetivo ou pessoa viva.

    Na Igreja católica existe uma distinção de cultos (latria, hiperdúlia, dúlia), criada no II Concílio de Niceia.

    http://www.portal.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=503

    E para não evidenciar claramente a falta de justificação e artificialidade destas distinções, usa estas palavras para criar uma certa ambiguidade que obscurece esta distinção bizantina de cultos que pratica.

    Eu não disse que o católico acredita que Deus se comprometeu a operar milagres por intermédio de uma relíquia, mas que a atitude de esperar milagres através das relíquias só tem sentido se Deus se tivesse comprometido a fazê-lo. Precisamente porque não o fez, não tem sentido esperar que Deus opere milagres através das relíquias em particular.

    O que é indevido é a intenção e a prática de conservar relíquias para prestar-lhes culto. De modo que não importa muito a atitude que se tem com elas.

    No Antigo Testamento a reverência com a devida vénia tributada à Arca da Aliança, a um Rei ou a um Profeta, certamente não tinha intenção de prestar um culto religioso a esses elementos. Era uma reverência qualitativamente diferente do que entende por reverência (culto de dúlia) a Igreja Católica, como boa e proveitosa a prestar aos santos, imagens e relíquias.

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  14. J.B. Bury, célebre historiador e académico classicista, afirma:

    "Em cem anos o Império transformara-se de um estado em que a imensa maioria dos habitantes era devotada a religiões pagãs, num em que um Imperador podia dizer, com grande exagero, mas sem absurdo manifesto, que não sobreviveu um pagão. Tal mudança não se concretizou pela mera proibição e repressão. Não é exagero afirmar que o sucesso da Igreja na conversão do mundo gentio nos séculos IV e V foi devido a um processo que pode ser descrito como uma transmutação pagã do próprio Cristianismo. Se as crenças Cristãs e o culto tivessem sido mantidos inalterados na simplicidade inicial do seu espírito e forma, pode muito bem questionar-se se um período muito mais longo teria sido suficiente para cristianizar o Império Romano. Mas a Igreja permitiu um compromisso. Todas as religiões da época tinham em comum uma bruta superstição, e a Igreja não encontrou nenhuma dificuldade em oferecer aos convertidos crenças e cultos semelhantes àqueles a que eles estavam acostumados. Foi um problema relativamente pequeno que incenso, velas e flores, os acessórios de vários cerimoniais pagãos, fossem introduzidos no culto Cristão. Foi uma jogada importante e feliz para incentivar a introdução de um politeísmo disfarçado. Uma legião de santos e mártires substituiu a antiga legião de deuses e heróis, e o pagão hesitante podia gradualmente reconciliar-se com uma religião, a qual, enquanto lhe roubou a sua divindade protetora, a quem estigmatizou como um demónio, permitiu-lhe em compensação o culto de um santo protetor. Uma nova e banal mitologia foi criada, de santos e mártires, muitos deles fictícios; os seus corpos e relíquias, capazes de operar milagres como os que costumavam acontecer junto dos túmulos dos heróis, estavam constantemente a ser descobertos" .

    (J.B. Bury, History of the Later Roman Empire, Macmillan & Co., Ltd, Vol. I Cap. XI, pg. 373)

    http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/BURLAT/11*.html#3

    É neste crescente sincretismo religioso que ocorreu entre a Igreja e o paganismo greco-romano, depois da oficialização do Cristianismo como religião do Império Romano, que está a origem da prática do culto aos santos, do culto às imagens e do culto às relíquias.

    Estas doutrinas têm pois origens sincretistas, que pressupõem um desvio para o paganismo greco-romano da prática cristã primitiva.

    E no tempo de Agostinho de Hipona, finais do século IV e princípios do V, no terreno as coisas já não estavam muito bem, daí as suas declarações contra estas práticas, que no entanto até hoje permaneceram em Roma e nas Igrejas orientais …

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  15. Estou entendendo a distinção que você pretende traçar (entre o "culto" indevido e a "honra" devida, aos mártires ou suas relíquias). Concordo que a honra prestada aos santos (especialmente a Maria) no catolicismo romano é frequentemente muito exagerada. Mas não sei se ficou claro quais elementos são permitidos e quais não são.

    Por exemplo, você disse: "Ninguém para honrar e respeitar uma pessoa santa ainda viva, lhe oferece incenso ou acende velas, ou constrói imagens artísticas suas, e as leva em procissão, marca uma festa anual em sua homenagem, invoca os seus méritos nas suas orações, etc etc."

    Deixando o último elemento de lado (invocação), pois já discutimos ele lá em cima, não sei se acender uma vela seria algo errado. É comum ver as pessoas acendendo velas em qualquer situação em que haja um "memorial" ou coisa assim (inclusive civis). Parece um símbolo, não um ato de culto necessariamente.

    Da mesma forma, construir imagens artísticas é algo comum, não? Não estou falando aqui de colocar as imagens nos templos e venerá-las, etc. É que você mencionou simplesmente isso: "constrói imagens artísticas suas". Acho que é mais que normal construir imagens de pessoas vivas ou mortas, como aparece no "Muro dos Reformadores" em Genebra, por exemplo.

    Depois você menciona as procissões. Mas não é isso que fazem com a bandeira nacional, por exemplo? Eu não vejo motivos para pensar que carregar um símbolo em procissão implique (necessariamente) idolatria. O mesmo pode ser dito de "marcar uma festa anual em sua homenagem". Os americanos não tem o "Dia de Martin Luther King"? Nos EUA e na Irlanda, já vi até batistas celebrando o "Dia de São Patrick" (um monge que introduziu o Cristianismo na Irlanda). Na verdade, várias denominações protestantes (inclusive denominações luteranas confessionais) tem um calendário com dias apropriados para a comemoração de cada santo no céu.

    Outro elemento que costumam mencionar é o ato de prostrar-se perante a relíquia, ou orar diante dela. Mas isso é também outro elemento que eu vejo como relativizado na Bíblia. As pessoas se prostram perante Reis e Profetas, e perante a Arca, e eram comum os israelitas orarem diante da Arca ou voltados para ela. Em outras passagens, quando o ato de prostrar-se é ilícito, o texto diz claramente: "prostrou-se PARA O ADORAR".

    Só estou fazendo essa observação porque às vezes não fica clara a distinção para mim. É muito simplismo dizer que o honra prestada aos mártires no catolicismo é idolátrica "porque eles marcam uma festa anual", "porque acendem velas", "porque se prostram", etc, como se esse elemento pura e simplesmente constituísse a idolatria. Talvez a questão toda esteja em torno do grande exagero que existe (a soma de tudo), além da questão da invocação.

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  16. Você está a confundir o culto em si, com a caracterização dos elementos desse culto.

    Insistir nas características que um culto religioso pode ter é desviar-nos do foco da questão principal.

    O que não é lícito é prestar um culto religioso a outra coisa que não seja Deus. Pode haver cultos religiosos muito elaborados como outros muito simples. De modo que é irrelevante as características que esse culto possa ter (se há prostrações, se há beijos, se há cantigas, se se acende velas, etc).

    É evidente que a identificação de um culto religioso não se faz simplesmente pela análise abstrata da atitude que se tem com os objetos. Há todo um contexto que envolve essas atitudes.

    Por exemplo, como é que se distingue um culto prestado a Deus por uma comunidade religiosa, de um show de um cantor profissional? A comunidade canta para Deus e o cantor canta para uma plateia que o acompanha. Em ambas as situações todos cantam, mas os primeiros estão a cultuar Deus, louvando-o pela música, e os segundos estão apenas se divertindo.

    Se um homem dá um beijo à esposa não lhe está a dar um culto religioso, mas se um grupo de pessoas der um beijo a uma imagem, que considera sagrada, está-lhe a dar um culto religioso.

    Isto sabe-se pelo conhecimento que se tem dos grupos e pelo contexto.

    E sabemos que a intenção dos católicos quando têm essas atitudes (dar beijos, construir imagens artísticas, levá-las em procissão, oferecer incenso, etc) com os santos, as imagens e as relíquias, que podem ser muito ou pouco elaboradas, é para prestar-lhes um culto religioso (latria ou dulia ou hiperdulia), e não é para namorar ou erigir um monumento público, ou dar um passeio, ou dar um cheiro agradável de incenso ao ambiente. Todos estes elementos se inserem na prática de um culto religioso, e ESTE CULTO É QUE NÃO É LÍCITO. As suas características é secundário.

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  17. Mais evidência positiva de que Agostinho era contra a invocação dos crentes defuntos.

    Agostinho (354-430): "Nós não erguemos altares nestes monumentos para que possamos oferecer sacrifícios aos mártires, mas sim ao único Deus dos mártires e de nós mesmos; e nestes sacrifícios eles são nomeados no seu próprio lugar e classificados como homens de Deus que venceram o mundo, confessando-O, mas eles não são invocados pelo sacerdote sacrificador. Pois é a Deus, não a eles, que ele sacrifica, embora ele sacrifique nos seus monumentos; pois ele é sacerdote de Deus, não deles".

    NPNF1: Vol. II, The City of God, Livro XXII, Capítulo 10.

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