sexta-feira, 12 de julho de 2013

Sola Scriptura e a Igreja Primitiva


A Reforma foi responsável por restaurar na Igreja o princípio de sola Scriptura, um princípio que tinha estado em vigor dentro da Igreja desde o início da era pós-apostólica. Inicialmente os apóstolos ensinaram oralmente mas com o fim da era apostólica toda a revelação especial que Deus quis preservada para o homem foi registada nas Escrituras. Sola Scriptura é o ensino e a crença de que há apenas uma revelação especial de Deus que o homem hoje possui, as Escrituras ou a Bíblia, e que, por conseguinte, as Escrituras são materialmente suficientes e são pela sua própria natureza de inspiradas por Deus a autoridade final para a Igreja. Isto significa que não há nenhuma parte da revelação que tenha sido preservada na forma de tradição oral independente da Escritura. O Concílio de Trento no século XVI, por outro lado, declarou que a revelação de Deus não estava contida somente nas Escrituras. Ela estava contida em parte nas Escrituras e em parte na tradição oral e, portanto, as Escrituras não eram materialmente suficientes. Este tem sido o ponto de vista universal dos teólogos católicos romanos por séculos após o Concílio de Trento e é o ponto de vista predominante hoje. É interessante notar, porém, que em círculos Católicos Romanos hoje há um debate em curso entre teólogos sobre a natureza da Tradição. Não há um entendimento claro do que é a Tradição no Catolicismo Romano. Alguns concordam com Trento e outros não. Mas o ponto de vista defendido por Trento contradiz e rejeita a crença e a prática da Igreja da época patrística. A Igreja primitiva sustentava o princípio de sola Scriptura uma vez que acreditava que toda a doutrina devia ser provada a partir da Escritura e se tal prova não pudesse ser produzida a doutrina deveria ser rejeitada.
 
Desde o início da era pós-apostólica com os escritos dos que conhecemos como Padres Apostólicos encontramos um apelo exclusivo às Escrituras para o ensino positivo da doutrina e para a sua defesa contra a heresia. Os escritos dos Padres Apostólicos literalmente respiram com o espírito do Antigo e Novo Testamentos. Com os escritos dos Apologistas tais como Justino Mártir e Atenágoras na primeira metade do segundo século encontramos a mesma coisa. Não há apelo em qualquer destes escritos para a autoridade da Tradição como um corpo separado e independente de revelação. É com os escritos de Ireneu e Tertuliano na segunda metade do segundo século que pela primeira vez encontramos o conceito de Tradição Apostólica que é preservada na Igreja de forma oral. A palavra Tradição significa simplesmente ensino. Mas o que estes padres querem dizer quando afirmam que este Ensino Apostólico ou Tradição é preservado oralmente? Tudo o que eles querem dizer é que os Bispos da Igreja pregam a verdade oralmente e qualquer pessoa interessada em aprender a verdadeira Tradição Apostólica poderá aprender simplesmente ouvindo o ensino oral dos Bispos de qualquer Igreja ortodoxa da época. Ireneu e Tertuliano declaram enfaticamente que todo o ensino dos Bispos que era dado oralmente estava enraizado na Escritura e podia ser provado a partir das Escrituras. Ambos os padres nos dão o conteúdo doutrinal real da Tradição Apostólica que era oralmente pregada nas Igrejas e todas as doutrinas são derivadas da Escritura. Não há doutrina nesta Tradição Apostólica que não seja encontrada na Escritura. E não há apelo nos escritos destes padres a uma Tradição que seja de natureza oral para uma defesa do que eles chamam de Tradição Apostólica. A Tradição Apostólica para Ireneu e Tertuliano é simplesmente a Escritura. Foi Ireneu quem afirmou que embora os apóstolos primeiramente tenham pregado oralmente, o seu ensino foi mais tarde colocado por escrito nas Escrituras e as Escrituras desde esse dia tornaram-se a coluna e o fundamento da nossa fé. A sua afirmação exata é a seguinte: "Não aprendemos de nenhuns outros o plano da nossa salvação, senão daqueles por quem o evangelho nos chegou, o qual eles num tempo proclamaram em público e, num período posterior, pela vontade de Deus, o transmitiram a nós nas Escrituras, para ser o fundamento e a coluna da nossa fé" (Alexander Roberts & W.H. Rambaugh Translators, The Writings of Irenaeus, Against Heresies (Edinburgh: T & T Clark, 1874), 3.1.1). A Tradição, quando se refere à proclamação oral tal como pregação ou ensino, era vista essencialmente como a apresentação oral da verdade Escritural, ou a codificação da verdade bíblica na expressão de credo.
 
Ireneu e Tertuliano tiveram de enfrentar os Gnósticos que foram os primeiros a sugerir e ensinar que possuíam uma Tradição Apostólica oral que era independente da Escritura. Estes padres primitivos rejeitaram tal noção e apelaram somente à Escritura para a proclamação e defesa da doutrina. A historiadora da Igreja, Ellen Flesseman-Van Leer confirma este facto:
 
Para Tertuliano a Escritura é o único meio para refutar ou validar uma doutrina quanto ao seu conteúdo ... Para Ireneu, a doutrina da Igreja certamente nunca é puramente tradicional; pelo contrário, o pensamento de que poderia haver alguma verdade, transmitida exclusivamente de viva voz (oralmente), é uma linha Gnóstica de pensamento ... Se Ireneu quer provar a verdade de uma doutrina materialmente, ele vira-se para a escritura, porque é aí que o ensino dos apóstolos é objetivamente acessível. A prova da tradição e da escritura serve um e o mesmo fim: identificar o ensino da Igreja como o ensino apostólico original. A primeira estabelece que o ensino da Igreja é este ensino apostólico, e a segunda, o que este ensino apostólico é (Ellen Flesseman-van Leer, Tradition and Scripture in the Early Church (Van Gorcum, 1953, pp. 184, 133, 144).
 
A Bíblia era a autoridade final para os padres da época patrística. Era materialmente suficiente e o árbitro final em todas as matérias de verdade doutrinal. Como JND Kelly apontou:
 
A mais clara demonstração do prestígio desfrutado pela (Escritura) é o facto de que quase todo o esforço teológico dos Padres, quer os seus objetivos fossem polémicos ou construtivos, foi despendido no que equivalia à exposição da Bíblia. Além disso, estava em toda parte dado como certo que, para qualquer doutrina ganhar aceitação, tinha primeiro que estabelecer-se a sua base Escritural (Early Christian Doctrines (San Francisco: Harper & Row, 1978), pp. 42, 46).
 
Heiko Oberman faz estes comentários sobre a relação entre Escritura e Tradição na Igreja primitiva:
 
Escritura e Tradição para a Igreja primitiva em nenhum sentido eram mutuamente exclusivas: kerygma (a mensagem do evangelho), Escritura e Tradição coincidiam inteiramente. A Igreja pregava o kerygma que se encontra na totalidade na forma escrita nos livros canónicos. A Tradição não era entendida como uma adição ao kerygma contido na Escritura mas como transmissão desse mesmo kerygma em forma viva: em outras palavras, tudo se encontrava na Escritura e ao mesmo tempo tudo estava na Tradição viva (The Harvest of Medieval Theology (Cambridge: Harvard University, 1963), p. 366).
 
Que os padres eram crentes firmes no princípio de sola Scriptura é claramente visto a partir dos escritos de Cirilo de Jerusalém, o bispo de Jerusalém em meados do século IV. Ele é o autor do que é conhecido como Leituras Catequéticas. Este trabalho é uma extensa série de leituras dadas aos catecúmenos expondo as principais doutrinas da fé. É uma explanação completa da fé da Igreja da sua época. E o seu ensino é exaustivamente fundamentado na Escritura. Não , de facto, um apelo na totalidade das Leituras a uma Tradição Apostólica oral que seja independente da Escritura. Ele afirma em termos inequívocos que se ele apresentasse qualquer ensino a estes catecúmenos que não pudesse ser validado a partir da Escritura, eles deveriam rejeitá-lo. Isto diz-nos que a sua autoridade como Bispo estava sujeita à sua conformidade com as Escrituras em seu ensino. A seguir estão algumas das suas afirmações extraídas das Leituras sobre a autoridade final da Escritura:
 
Este selo tem sempre na tua mente; o qual já em jeito de resumo foi abordado nos seus pontos principais, e se o Senhor permitir, será daqui em diante estabelecido segundo o nosso poder, com provas Escriturais. Porque a respeito dos divinos e sagrados mistérios da Fé, nem mesmo uma observação ocasional devemos proporcionar sem as Sagradas Escrituras; nem devemos ser desviados por meras probabilidades e artifícios de argumentos. Não acreditem pois em mim porque eu vos digo estas coisas, a menos que recebam das Sagradas Escrituras a prova do que é apresentado: porque esta salvação, que é da nossa fé, não é por raciocínios engenhosos, mas por prova das Sagradas Escrituras (A Library of the Fathers of the Holy Catholic Church (Oxford: Parker, 1845), The Catechetical Lectures of S. Cyril 4.17).
 
Mas toma e sustenta essa fé somente como um aprendiz e em profissão, que é pela Igreja entregue a ti, e é estabelecida a partir de toda a Escritura. Por nem todos poderem ler a Escritura, alguns por serem indoutos, outros por afazeres, são impedidos de ter conhecimento dela; a fim de que a alma não pereça por falta de instrução, nos Artigos que são poucos incluímos toda a doutrina da Fé... E no presente, confia à memória a Fé, apenas ouvindo as palavras; e espera na época oportuna a prova de cada uma das suas partes das Escrituras Divinas. Pois os artigos da Fé não foram compostos ao agrado dos homens: mas os pontos mais importantes escolhidos a partir de todas as Escrituras, formando o único ensino da . E, como a semente de mostarda num pequeno grão contém muitos ramos, assim também esta Fé, em poucas palavras, abrange no seu seio todo o conhecimento da piedade contido no Antigo e Novo Testamentos. Observai, pois, irmãos e conservai as tradições que agora recebeis, e escrevei-as sobre a tábua dos vossos corações (Ibid., Lecture 5.12).
 
Note-se aqui que Cirilo afirma que estes catecúmenos estão a receber Tradição e exorta-os a manter as tradições que eles estão agora a receber. Donde é que esta Tradição deriva? Ela obviamente deriva das Escrituras. O Ensino ou Tradição ou Revelação de Deus que foi confiado aos Apóstolos e repassado à Igreja está agora acessível na Escritura SOMENTE. É significativo que Cirilo de Jerusalém, que está comunicando a totalidade da fé a estes catecúmenos, não fez um único apelo a uma Tradição oral para apoiar os seus ensinamentos. A totalidade da fé está fundamentada nas Escrituras e nas Escrituras somente. Este princípio também é enunciado por Gregório de Nissa:
 
A generalidade dos homens ainda flutua nas suas opiniões acerca disto, as quais são tão erradas como são numerosas. Quanto a nós, se a filosofia gentílica, que trata metodicamente todos estes pontos, fosse realmente adequada para uma demonstração, seria com certeza supérfluo adicionar uma discussão acerca da alma a tais especulações, mas enquanto as últimas prosseguiram, sobre o assunto da alma, na direção das supostas consequências como ao pensador aprouve, nós não estamos autorizados a tal permissão, quero dizer que não nos está permitido afirmar o que nos aprouver; nós fazemos das Sagradas Escrituras a regra e a medida de cada doutrina (dogma); nós necessariamente fixamos os nossos olhos sobre isto, e aprovamos somente aquilo que se harmoniza com a intenção destes escritos. (Philip Schaff and Henry Wace, Nicene and Post-Nicene Fathers (Peabody: Hendrikson, 1995), Second Series: Volume V, Philosophical Works, On the Soul And the Resurrection, p. 439).
 
Basílio, o Grande, o bispo de Cesareia de 370 a 379 dC, atesta a sua crença na natureza toda-suficiente das Escrituras nestas palavras tiradas de uma carta que ele escreveu a uma viúva:
 
Desfrutando como você faz da consolação das Sagradas Escrituras, você não precisa nem da minha assistência, nem da de ninguém para ajudá-la a compreender o seu dever. Você tem o conselho todo-suficiente e a orientação do Espírito Santo para levá-la ao que é certo (Philip Schaff and Henry Wace, Nicene and Post-Nicene Fathers (Peabody: Hendrikson, 1995), Second Series: Volume VIII, Basil: Letters and Select Works, Letter CCLXXXIII, p. 312). 
 
Estes padres são simplesmente representativos dos padres como um todo. Cipriano, Orígenes, Hipólito, Atanásio, Firmiliano, Agostinho são apenas alguns dos padres que poderiam ser citados como proponentes do princípio de sola Scriptura, em adição a Tertuliano, Ireneu, Cirilo e Gregório de Nissa. A Igreja primitiva operou com base no princípio de sola scriptura e foi este princípio histórico que os Reformadores procuraram restaurar na Igreja.
 
O uso extensivo da Escritura pelos padres da Igreja primitiva desde o início é visto nos seguintes factos:
 
Ireneu: Conheceu Policarpo que foi discípulo do apóstolo João. Viveu entre 130-202 dC. Ele cita 24 dos 27 livros do Novo Testamento. Ele faz mais de 1800 citações do Novo Testamento somente.
 
Clemente de Alexandria: Viveu entre 150 e 215 dC. Citou todos os livros do Novo Testamento, exceto Filemom, Tiago e 2 Pedro. Ele dá 2400 citações do Novo Testamento.
 
Tertuliano: Viveu entre 160 e 220 ​​dC. Ele faz mais de 7200 citações do Novo Testamento.
 
Orígenes: Viveu entre 185-254 dC. Sucedeu a Clemente de Alexandria na escola Catequética de Alexandria. Ele faz cerca de 18000 citações do Novo Testamento.
 
Pelo fim do século III praticamente todo o Novo Testamento poderia ser reconstruído a partir dos escritos dos Padres da Igreja. Norman Geisler e William Nix resumem a posição das Escrituras do Novo Testamento na Igreja primitiva nestas palavras: "Em resumo, os primeiros cem anos da existência dos vinte e sete livros do Novo Testamento revelam que praticamente cada um deles foi citado como autoritário e reconhecido como canônico por homens que eram eles próprios os contemporâneos mais jovens da época apostólica (Norman Geisler and William Nix, A General Introduction to the Bible (Chicago: Moody, 1980), p. 190).
 
B.F. Wescott chega a uma conclusão semelhante: "Com exceção da Epístola aos Hebreus, das duas Epístolas mais curtas de São João, da segunda Epístola de São Pedro, das Epístolas de São Tiago e São Judas, e do Apocalipse, todos os outros livros do Novo Testamento são reconhecidos como Apostólicos e autorizados em toda a Igreja em finais do século II. A evidência dos grandes Padres pelos quais a Igreja é representada varia em relação a estes livros disputados, mas o Cânon dos livros reconhecidos é estabelecido pelo seu consentimento comum. Portanto o testemunho em que assenta não é recolhido a partir de uma fração mas de muitos, e dos mais largamente separados pela posição e caráter. Ele é dado, não como uma opinião particular, mas como um facto inquestionável: não como uma descoberta tardia, mas como uma tradição original (B.F. Westcott, A General Survey of the History of the Canon of the New Testament (Cambridge: Macmillan, 1889), pp. 337-338).
 
É verdade que a Igreja primitiva sustentou o conceito de Tradição referindo-se a costumes e práticas eclesiásticas e que muitas vezes acreditava-se que tais práticas foram realmente transmitidas pelos Apóstolos mesmo que elas não pudessem ser necessariamente validadas a partir das Escrituras. Mas estas práticas não envolvem as doutrinas da fé e eram muitas vezes contraditórias entre diferentes segmentos da Igreja. Um exemplo disto é encontrado no início do segundo século, na controvérsia sobre quando celebrar a Páscoa. Certas Igrejas Orientais celebravam-na num determinado dia, enquanto o Ocidente celebrava-a num dia diferente, mas ambos os lados alegavam que a sua prática particular tinha sido transmitida a eles diretamente dos Apóstolos. Na verdade, isto levou a um conflito com o Bispo de Roma, o qual exigia que os bispos do Oriente se submetessem à prática do Ocidente. Mas eles recusaram-se a fazê-lo, por crerem firmemente que estavam aderindo à Tradição Apostólica. Quem estava correto? Não há maneira de determinar isto, se é que alguma dessas práticas tinha, verdadeiramente, origem Apostólica. É interessante, porém, notar que um dos proponentes da visão do Oriente foi Policarpo, que foi um discípulo do apóstolo João. E há outros exemplos deste tipo de alegação na história da Igreja. Só porque um particular padre da Igreja afirma que uma determinada prática é de origem Apostólica não significa necessariamente que seja. Tudo o que isso significa é que ele acreditava que era. Mas não há nenhuma maneira de verificar se de facto ela realmente era uma tradição dos apóstolos. Há numerosas práticas em que a Igreja primitiva estava envolvida as quais se acreditava serem de origem Apostólica que são enumeradas para nós por Basílio, o Grande, que ninguém pratica hoje na Igreja. De modo que, claramente, tais apelos para a Tradição Apostólica oral não têm sentido.
 
A Igreja Católica Romana afirma que possui uma Tradição Apostólica oral que é independente da Escritura e que é obrigatória para os homens. Ela apela à declaração de Paulo em 2 Tessalonicenses 2:15 para a justificação de tal alegação, onde Paulo afirma que ele transmitiu tradições ou ensinamentos a esta Igreja na forma oral e escrita. Roma afirma que, com base no ensino de Paulo nesta passagem, o ensino de sola Scriptura é falso, já que ele transmitiu ensinamentos aos Tessalonicenses na forma oral e escrita. Mas o que é interessante neste apelo é que os apologistas romanos nunca documentam as doutrinas específicas a que Paulo se está a referir as quais eles alegam possuir e as quais são obrigatórias para os homens. Em todos os escritos dos apologistas desde a Reforma até aos dias de hoje ninguém foi capaz de listar as doutrinas que compõem esta suposta Tradição Oral Apostólica. Desde Francisco de Sales até aos escritos de Karl Keating e Robert Sungenis há esta conspícua ausência. Sungenis é editor de uma obra recentemente lançada em defesa da doutrina católica romana da Tradição intitulada Not By Scripture Alone. Ela é apresentada como a refutação definitiva do ensino protestante de Sola Scriptura. Contém 627 páginas. Mas nem uma vez em todas as 627 páginas o autor define o conteúdo doutrinal desta suposta Tradição Apostólica que é obrigatória para todos os homens. Tudo o que é dito é que ela existe, que a Igreja Católica Romana a possui, e que estamos obrigados, portanto, a nos submetermos a esta Igreja a qual possui em exclusivo a plenitude da revelação de Deus a partir dos Apóstolos. Mas eles não podem nos dizer o que ela é. E a razão é porque ela não existe. Se estas doutrinas são de tal importância por que Cirilo de Jerusalém não as mencionou nas suas Leituras Catequéticas? Eu desafio qualquer um a listar as doutrinas a que Paulo se está a referir em 2 Tessalonicenses 2:15 as quais ele diz que transmitiu oralmente aos Tessalonicenses.
 
A autoridade Católica Romana sobre Tradição, Yves Congar, faz esta observação interessante sobre a natureza da revelação da dispensação do Antigo Testamento:
 
A Revelação é uma divulgação do seu mistério que Deus faz aos homens ... uma divulgação através de sinais criados, garantida por Deus para não nos enganar, embora eles possam ser muito imperfeitos. Estes sinais são eventos, realidades, ações e palavras; mas em última análise, pelo menos no que diz respeito à Antiga Aliança, os eventos e as ações são conhecidos por nós apenas em palavras, e palavras escritas, a saber: os escritos da Sagrada Escritura (Yves Congar, Tradition and Traditions (New York: Macmillan, 1966), p. 238).  
 
Yves Congar admite prontamente o princípio de sola Scriptura em relação ao Antigo Testamento. A única revelação que possuímos dessa dispensação são as Escrituras, apesar dos profetas desde o início terem pregado e ensinado oralmente. Os protestantes simplesmente dizem que o mesmo princípio se aplica à dispensação do Novo Testamento. Para parafrasear Congar: a revelação de Deus na dispensação do Novo Testamento é conhecida por nós apenas em palavras, e palavras escritas, a saber: os escritos da Sagrada Escritura. A única revelação especial que o homem hoje possui de Deus que foi transmitida aos Apóstolos são as Escrituras do Novo Testamento. Esta foi a crença e a prática da Igreja da época patrística e foi o princípio respeitado pelos reformadores o qual tentaram restaurar na Igreja após a corrupção doutrinal ter entrado pela porta da Tradição. O ensino de um corpo separado de revelação Apostólica conhecido como Tradição que é de natureza oral originou-se, não com a Igreja Cristã, mas com o Gnosticismo. Este foi uma tentativa dos gnósticos de reforçar a sua autoridade afirmando que as Escrituras não eram suficientes. Eles afirmaram que possuíam a plenitude da revelação apostólica porque eles não só tinham a revelação escrita dos apóstolos nas Escrituras mas também a sua tradição oral, e a chave para interpretar e compreender essa revelação. Assim como os padres primitivos repudiaram este ensino e reivindicaram uma dependência exclusiva das Escrituras e apelaram para as Escrituras, assim também devemos fazer.
 
William Webster

2 comentários:

  1. O ortodoxo George Florovsky escreveu um texto muito interessante sobre a relação entre Escritura e Tradição na Igreja antiga:

    http://fatheralexander.org/booklets/portuguese/church_tradition_florovsky_p.htm

    Versão em inglês: http://fatheralexander.org/booklets/english/church_tradition_florovsky.htm

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  2. George Salmon, em The infallibility of the Church resume magistralmente como funciona o estabelecimento das doutrinas na Igreja de Roma:

    “É muito enganoso, portanto representar o catolicismo como baseado numa tradição confiável. Não nos é permitido aplicar uma prova histórica ao seu ensino; pelo contrário, o ensino da Igreja no dia presente é tornado a prova das tradições. Se quaisquer ditos de antigos escritores se trazem à colação, contrariando esse ensino, são postos de lado como falsas tradições ...
    A apelação à tradição pelos católicos romanos não significa mais que isto: que há doutrinas ensinadas pela Igreja de Roma as quais, deve reconhecer-se, não podem encontrar-se na Escritura, e as quais não está disposta a reconhecer que as inventou ou a simular que lhe foram dadas a conhecer como uma nova revelação. O que resta, então, é que deve tê-las recebido por tradição. Mas a falta de base desta pretensão é evidenciado quando vamos procurar o testemunho da antiguidade em relação a cada uma das doutrinas peculiares do romanismo. Pois a tradição é algo que deve tornar-se mais pura quanto mais para trás a seguimos.”

    (The infallibility of the Church, pag. 132, 133).

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