sábado, 28 de julho de 2012

Os Reformadores alguma vez retiraram livros ao Novo Testamento?


Em princípios do século XVI, com o impulso dado ao estudo pela invenção (no século anterior) da imprensa de tipos móveis, e pela edição impressa do Novo Testamento em grego por Erasmo de Roterdão em 1516, eruditos de diversas tendências discutiram a importância relativa dos livros canónicos.

Qual é a verdade em relação aos Reformadores?

Na sua primeira edição da Bíblia, Lutero numerou os livros do Novo Testamento de Mateus a 3 João, e deixou separados, sem numeração, quatro livros: Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse. Sem dúvida, Lutero não os punha ao mesmo nível que o resto (dentro dos quais, por outro lado, atribuía mais importância ao Evangelho de João e 1 João, Romanos, Gálatas, Efésios e 1 Pedro que às outras cartas paulinas, Atos, 2 Pedro, e 2 e 3 João). Em todo o caso, e pese as suas próprias reservas ante os quatro livros citados, insistiu em que tal era a sua opinião, a qual não desejava impor a outros, e que não pretendia tirar esses livros do Novo Testamento. (Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 243).

O contemporâneo de Lutero, Karlstadt, numa obra sobre o Cânon distinguiu uma hierarquia algo diferente mas também de três níveis: 1) Os Evangelhos e Atos; 2) As cartas de Paulo com 1 Pedro e 1 João; e 3) Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse.

William Tyndale, na sua versão do Novo Testamento de 1525, seguiu a mesma disposição que Lutero, assim como mais tarde as Bíblias de Coverdale de 1535 e de Matthew de 1537. Na Grande Bíblia de 1539 voltou-se à ordem tradicional. Por seu lado, Calvino aceitou o Novo Testamento tal como havia sido recebido. (F.F. Bruce, “The Canon of Scripture”. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, p. 243-247).

O que deve notar-se é que, contrariamente à calúnia difundida por apologistas católicos inescrupulosos, os Reformadores nunca retiraram algum livro canónico do Novo Testamento das suas edições; simplesmente sugeriram a existência de um “cânon dentro do cânon” numa época de transição.

“Entre as subsequentes declarações de fé formuladas por protestantes, várias identificam pelo nome os vinte e sete livros do cânon do Novo Testamento, incluindo a Confissão Francesa de Fé (1559), a Confissão Belga (1561), e a Confissão de Fé de Westminster (1647). Os Trinta e Nove Artigos, publicados pela Igreja de Inglaterra em 1563, embora identifique pelo nome os livros do Antigo Testamento separadamente dos Apócrifos, conclui ambas as listas com a afirmação: «Todos os Livros do Novo Testamento, como são comummente recebidos, os recebemos e os consideramos canónicos» (Art. VI)”. (Metzger, o.c., p. 247).

A ideia de um “cânon dentro do cânon” entre eruditos católicos contemporâneos de Lutero

Erasmo de Roterdão, na sua edição do Novo Testamento grego dedicada ao papa Leão X, negava a autoria paulina de Hebreus e questionava a autoria tradicional das cinco epístolas disputadas do Novo Testamento, a saber, Tiago, 2 e 3 João, Judas e 2 Pedro. Também opinava por razões de estilo que o Apocalipse não podia atribuir-se ao autor do quarto Evangelho.

O Cardeal Tomás de Vio (São Caetano) também questionou a paternidade literária de 2 e 3 João, Tiago e Judas (embora não a de 2 Pedro). Destas cartas diz o Cardeal canonizado: "são de menor autoridade do que aquelas que são certamente Sagradas Escrituras". (B. F. Westcott, A General Survey of the History of the Canon of the New Testament, 6th ed. Wipf and Stock, 2005, p. 475).

Diz a Catholic Encyclopedia, em relação à carta de Tiago, que "no século XVI Erasmo e Caetano contestaram a sua natureza inspirada" (Camerlynck, Achille. "Epistle of St. James". The Catholic Encyclopedia. Vol. 8).

Caetano despachou o Apocalipse numa só frase, onde dizia que não conseguia interpretá-lo, e que o fizesse quem conseguisse.

Transcrevo agora o que São Caetano afirmou em relação à epístola aos Hebreus (negrito é meu):

"Já que recebemos a regra de Jerónimo, não erremos na separação dos livros canónicos (pois aqueles que ele entregou como canónicos os sustentamos como tais, e aqueles que ele separou dos livros canónicos os consideramos fora do cânon); portanto, como o autor desta epístola é duvidoso na opinião de Jerónimo, a própria epístola também se torna duvidosa, já que a menos que seja de Paulo não é claro que seja canónica. Daí se depreende que se surgir qualquer coisa duvidosa na fé, não pode determinar-se somente da autoridade desta epístola". (Westcott, o.c., p. 475).

Ora, eu creio que nisto Caetano se enganava, como também se enganava Lutero. Mas é uma deslealdade apresentar Lutero como um escandaloso caso isolado e calar hipocritamente que as mesmas dúvidas suscitavam-se noutros destacados biblistas muito fiéis ao papado.

Para completar o panorama, faço saber que vinte anos depois do infeliz decreto tridentino, ou seja, em 1566, o dominicano Sisto de Siena publicou uma obra intitulada Bibliotheca Sancta. O livro era dedicado a Pio V, elogiado por Sisto como "principal autor do Índice de Livros Proibidos e o purificador da literatura cristã".

Ora, Sisto de Siena foi o proponente dos termos "protocanónico" e "deuterocanónico" para os livros do Antigo Testamento que, respetivamente, correspondem aos do cânon hebraico e aos outros livros que se declararam canónicos em Trento. É um tributo à sua obra o facto de a maioria dos autores católicos terem adotado esta nomenclatura.

O que não é tão conhecido é que Frei Sisto não somente fez a distinção para o Antigo, como também fez para o Novo Testamento. Dizia que Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas, Apocalipse, e também Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11, "antigamente tidos pelos padres da Igreja como apócrifos e não canónicos, cuja leitura ao princípio se permitiu somente perante catecúmenos (como testemunha Atanásio) ... depois (como escreve Rufino) se permitiu que fossem lidos perante todos os fiéis, não para a confirmação de doutrinas, mas meramente para edificação do povo; e ... finalmente quiseram que fossem adotados entre as Escrituras de irrefragável autoridade".

Quer dizer que, duas décadas depois de Trento, dentro da Igreja católica ao que parece não era delito distinguir um "cânon dentro do cânon" mesmo no Novo Testamento.

Claro, a coisa é muito diferente se Lutero faz o mesmo...

2 comentários:

  1. Excelente!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    Lamentável quando a apologética romanista chega ao nível da difamação.

    Eu até iria pedir para você pesquisar esse tema,mas você acabou postando!!!

    Brilhante!!!!

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  2. A apologética romanista me entristece pelo baixo nível!

    Tentaram ridicularizar o blog pelo português pelo "mau uso dos termos",entretanto,eu apareci por "lá" e acabou a brincadeira.

    Eu explico:Aqui no Brasil o termo "calúnia" está definido no Código Penal por fato tipificado como crime.Porém os outros países de língua portuguesa não adotam a nossa definição oriunda do Código Penal.Não precisa ser doutor em língua portuguesa para saber que o português deste blog não é o (português)brasileiro.Portanto,o autor não comete nenhum erro ao usar os termos calúnia,injúria e difamação.Primeiro porque não se trata de uma linguagem jurídica penal.Segundo porque este conceito varia entre as culturas e um blog português não tem obrigação de seguir a cultura ou o Código Penal brasileiro.

    É trise ver o nível dos apologistas romanistas hodiernos,a exceção de pouquíssimos,que não estão neste rol.

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