sábado, 28 de julho de 2012

Os Reformadores alguma vez retiraram livros ao Novo Testamento?


Em princípios do século XVI, com o impulso dado ao estudo pela invenção (no século anterior) da imprensa de tipos móveis, e pela edição impressa do Novo Testamento em grego por Erasmo de Roterdão em 1516, eruditos de diversas tendências discutiram a importância relativa dos livros canónicos.

Qual é a verdade em relação aos Reformadores?

Na sua primeira edição da Bíblia, Lutero numerou os livros do Novo Testamento de Mateus a 3 João, e deixou separados, sem numeração, quatro livros: Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse. Sem dúvida, Lutero não os punha ao mesmo nível que o resto (dentro dos quais, por outro lado, atribuía mais importância ao Evangelho de João e 1 João, Romanos, Gálatas, Efésios e 1 Pedro que às outras cartas paulinas, Atos, 2 Pedro, e 2 e 3 João). Em todo o caso, e pese as suas próprias reservas ante os quatro livros citados, insistiu em que tal era a sua opinião, a qual não desejava impor a outros, e que não pretendia tirar esses livros do Novo Testamento. (Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 243).

O contemporâneo de Lutero, Karlstadt, numa obra sobre o Cânon distinguiu uma hierarquia algo diferente mas também de três níveis: 1) Os Evangelhos e Atos; 2) As cartas de Paulo com 1 Pedro e 1 João; e 3) Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse.

William Tyndale, na sua versão do Novo Testamento de 1525, seguiu a mesma disposição que Lutero, assim como mais tarde as Bíblias de Coverdale de 1535 e de Matthew de 1537. Na Grande Bíblia de 1539 voltou-se à ordem tradicional. Por seu lado, Calvino aceitou o Novo Testamento tal como havia sido recebido. (F.F. Bruce, “The Canon of Scripture”. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, p. 243-247).

O que deve notar-se é que, contrariamente à calúnia difundida por apologistas católicos inescrupulosos, os Reformadores nunca retiraram algum livro canónico do Novo Testamento das suas edições; simplesmente sugeriram a existência de um “cânon dentro do cânon” numa época de transição.

“Entre as subsequentes declarações de fé formuladas por protestantes, várias identificam pelo nome os vinte e sete livros do cânon do Novo Testamento, incluindo a Confissão Francesa de Fé (1559), a Confissão Belga (1561), e a Confissão de Fé de Westminster (1647). Os Trinta e Nove Artigos, publicados pela Igreja de Inglaterra em 1563, embora identifique pelo nome os livros do Antigo Testamento separadamente dos Apócrifos, conclui ambas as listas com a afirmação: «Todos os Livros do Novo Testamento, como são comummente recebidos, os recebemos e os consideramos canónicos» (Art. VI)”. (Metzger, o.c., p. 247).

A ideia de um “cânon dentro do cânon” entre eruditos católicos contemporâneos de Lutero

Erasmo de Roterdão, na sua edição do Novo Testamento grego dedicada ao papa Leão X, negava a autoria paulina de Hebreus e questionava a autoria tradicional das cinco epístolas disputadas do Novo Testamento, a saber, Tiago, 2 e 3 João, Judas e 2 Pedro. Também opinava por razões de estilo que o Apocalipse não podia atribuir-se ao autor do quarto Evangelho.

O Cardeal Tomás de Vio (São Caetano) também questionou a paternidade literária de 2 e 3 João, Tiago e Judas (embora não a de 2 Pedro). Destas cartas diz o Cardeal canonizado: "são de menor autoridade do que aquelas que são certamente Sagradas Escrituras". (B. F. Westcott, A General Survey of the History of the Canon of the New Testament, 6th ed. Wipf and Stock, 2005, p. 475).

Diz a Catholic Encyclopedia, em relação à carta de Tiago, que "no século XVI Erasmo e Caetano contestaram a sua natureza inspirada" (Camerlynck, Achille. "Epistle of St. James". The Catholic Encyclopedia. Vol. 8).

Caetano despachou o Apocalipse numa só frase, onde dizia que não conseguia interpretá-lo, e que o fizesse quem conseguisse.

Transcrevo agora o que São Caetano afirmou em relação à epístola aos Hebreus (negrito é meu):

"Já que recebemos a regra de Jerónimo, não erremos na separação dos livros canónicos (pois aqueles que ele entregou como canónicos os sustentamos como tais, e aqueles que ele separou dos livros canónicos os consideramos fora do cânon); portanto, como o autor desta epístola é duvidoso na opinião de Jerónimo, a própria epístola também se torna duvidosa, já que a menos que seja de Paulo não é claro que seja canónica. Daí se depreende que se surgir qualquer coisa duvidosa na fé, não pode determinar-se somente da autoridade desta epístola". (Westcott, o.c., p. 475).

Ora, eu creio que nisto Caetano se enganava, como também se enganava Lutero. Mas é uma deslealdade apresentar Lutero como um escandaloso caso isolado e calar hipocritamente que as mesmas dúvidas suscitavam-se noutros destacados biblistas muito fiéis ao papado.

Para completar o panorama, faço saber que vinte anos depois do infeliz decreto tridentino, ou seja, em 1566, o dominicano Sisto de Siena publicou uma obra intitulada Bibliotheca Sancta. O livro era dedicado a Pio V, elogiado por Sisto como "principal autor do Índice de Livros Proibidos e o purificador da literatura cristã".

Ora, Sisto de Siena foi o proponente dos termos "protocanónico" e "deuterocanónico" para os livros do Antigo Testamento que, respetivamente, correspondem aos do cânon hebraico e aos outros livros que se declararam canónicos em Trento. É um tributo à sua obra o facto de a maioria dos autores católicos terem adotado esta nomenclatura.

O que não é tão conhecido é que Frei Sisto não somente fez a distinção para o Antigo, como também fez para o Novo Testamento. Dizia que Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas, Apocalipse, e também Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11, "antigamente tidos pelos padres da Igreja como apócrifos e não canónicos, cuja leitura ao princípio se permitiu somente perante catecúmenos (como testemunha Atanásio) ... depois (como escreve Rufino) se permitiu que fossem lidos perante todos os fiéis, não para a confirmação de doutrinas, mas meramente para edificação do povo; e ... finalmente quiseram que fossem adotados entre as Escrituras de irrefragável autoridade".

Quer dizer que, duas décadas depois de Trento, dentro da Igreja católica ao que parece não era delito distinguir um "cânon dentro do cânon" mesmo no Novo Testamento.

Claro, a coisa é muito diferente se Lutero faz o mesmo...

sexta-feira, 27 de julho de 2012

«Se dependesse da Inquisição viveríamos tempos maravilhosos»


Numa troca de comentários com um jovem católico romano, ele dirigiu-me estas palavras:

«Nisso você tem razão, infelizmente a inquisição acabou, queria que ainda tivesse ativa, pois aprendi várias coisas com os inquisidores, principalmente com Bernardo de Gui (séc. XIV) tido como um dos mais severos inquisidores, que dava as seguintes normas aos seus colegas:

O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação das heresias. Em meio às dificuldades permanecerá calmo, nunca cederá à cólera nem à indignação... Nos casos duvidosos, seja circunspeto, não dê fácil crédito ao que parece provável e muitas vezes não é verdade; também não rejeite obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece improvável freqüentemente acaba por ser comprovado como verdade... O amor da verdade e a piedade que devem residir no coração de um juiz, brilhem em seus olhos, a fim de que suas decisões jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade.” (Prática VI p... ed. Douis 232 s).

Se dependesse da Inquisição viveríamos tempos maravilhosos, a não ser que você esteja falando da lenda da inquisição inventada por ai né? Mas isso é outro assunto!»

Estas palavras foram ditas por um jovem católico brasileiro em pleno século XXI. E o mais preocupante é que não é o único a pensar assim.

Mas não é este jovem que, em primeiro lugar, deve ser responsabilizado por esta barbaridade, mas sim os responsáveis morais, aqueles que o doutrinaram até este ponto de fanatismo e obscurantismo, com sistemáticas campanhas de mentira e distorção da verdade histórica.

O catolicismo romano está embebido de uma ideologia totalitária. Quando se sente ameaçado torna-se violento e perigoso na proporção directa do poder que tem na sociedade. 

Há coisas que não devem ser esquecidas. A Inquisição é uma delas. Para que não volte a acontecer.

As máquinas mortais da Inquisição


quinta-feira, 26 de julho de 2012

O cânon de Lutero


Alguém quer refutar o último artigo sofístico do site apologistas católicos "Lutero tinha o mesmo canôn bíblico que seus seguidores protestantes? " ?

Pois aqui tem a informação que precisa, especialmente a partir do capítulo - Luther's Comments About Particular Biblical Books.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Os livros apócrifos e os Padres da Igreja


O Lucas Banzoli enviou-nos hoje um email, dando-nos a conhecer a sua nova série de artigos sobre os livros apócrifos e os Padres da Igreja.

Pela forma exaustiva e aprofundada com que trata o tema, gostaríamos de partilhar estes artigos também com os leitores deste blogue. O primeiro artigo da série pode ser encontrado aqui e o segundo artigo aqui.

A série é acompanhada por um suplemento intitulado Díálogo entre evangélico e católico sobre o cânon, onde o autor expõe de forma divertida e didática os argumentos mais comuns dos católicos e a resposta evangélica a eles.

Aguardamos com entusiasmo e interesse a terceira e quarta parte do seu trabalho.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Lutero: “Há tantas seitas e opiniões como cabeças. Este nega o batismo, aquele crê que há outro mundo no nosso e no dia do juízo. Uns dizem que Jesus Cristo não é Deus; outros dizem o que lhes apetece. Não há rústico ou palerma que não considere inspiração do céu o que não é mais que sonho e alucinação sua.”


Lutero tinha razão, e as suas palavras continuam a ser verdadeiras até hoje. A correta aplicação do princípio da Sola Scriptura exige responsabilidade, fidelidade, conhecimento e caridade. O facto de se poder abusar dele não o torna menos verdadeiro, do mesmo modo que o facto de alguns homens cometerem delitos não justifica prender todas as pessoas. Abusar da liberdade que Cristo nos deu, como fizeram alguns grupos derivados de Igrejas protestantes, é tão grave como abusar da autoridade do modo em que historicamente o fez e o continua a fazer a Igreja de Roma.
Os romanistas não cessam de acusar a Reforma do século XVI pela desunião da Igreja universal. No entanto, Roma já havia quebrado a unidade da Igreja universal desde há séculos. Não foi a Reforma que privou de autoridade a Igreja de Roma. O que a privou de autoridade foi o cúmulo de falsas doutrinas e práticas antibíblicas que foi incorporando paulatinamente, somado ao seu descuido pelas almas e pela crescente corrupção do episcopado, com o papa à cabeça. Quando ocorreu a Reforma, há séculos que os setores mais lúcidos da Igreja ocidental clamavam por uma reforma radical, “na cabeça e nos membros”. Dada a inveterada contumácia do papado renascentista para ouvir as advertências cada vez mais sérias e generalizadas, o cisma do Ocidente era questão de tempo.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A Igreja de Roma e a unidade da Igreja


Sem dúvida a unidade é um dom apreciado (João 17) mas não à custa da verdade bíblica. Assim o entenderam obviamente também os Padres, pois do contrário não teria havido tantas controvérsias. Por causa do crescimento desmesurado das suas pretensões a partir do século V, a Igreja de Roma não foi capaz de manter a unidade com as Igrejas orientais, e a rutura foi definitiva a partir do século XI. E depois, aliada promiscuamente com o poder temporal e usando do modo mais anticristão que pode conceber-se o infame aparato inquisitorial, somente conseguiu, afogando em sangue os dissidentes quando foi necessário, manter a “unidade” pela força até ao século XVI. A história da Igreja de Roma em matéria de unidade é tão lamentável que me surpreende que os romanistas insistam nela.

sábado, 14 de julho de 2012

LENDAS ROMANAS


LISTA DE TODOS OS PAPAS
Fonte: Anuário Pontifício.

1 - São Pedro, (Simão Bar-Jonas): Betsaida, Galileia; - morte: 64 ou 67 A.D.
Nasceu em Betsaida na Galileia. Recebeu de Jesus Cristo o supremo poder pontifício para ser transmitido aos seus sucessores. Instituiu a primeira ordem eclesiástica e a oração do Pai-Nosso. Preso quis ser crucificado c
om a cabeça para baixo. Morreu em 29-6-67.

Por que a Igreja de Roma insiste nestes desvarios?

Como poderia saber-se a data exata da morte de Pedro se o próprio ano é duvidoso?

Onde está escrito que alguma vez tenha sido bispo de Roma?

A que ordem eclesiástica se referem?

Não foi Jesus quem deu o Pai-nosso como oração modelo?

De que fonte bíblica se tirou a estranha noção de que Pedro "Recebeu de Jesus o supremo poder pontifício para ser transmitido aos seus sucessores", quando o ministério dos Apóstolos não admite sucessão pela sua própria natureza, e o próprio termo "sumo pontífice" é pagão até ao tutano?

Leia-se o que diz o romanista Albert Wucher na sua "Breve historia de los Papas":

"Não deixa de ser significativo que o termo 'diocese' provenha da organização dada ao Império por Diocleciano; e seria longo enumerar todos os conceitos tomados do âmbito romano: desde Pontifex Maximus e Cúria até basílica, passando por vigário, prefeito, praeses e legado ... Forçosamente o bispo de Roma passava a ser o beneficiário da preeminência romana, assim como da adoção de noções do direito romano e da prática administrativa estatal romana ... a religião cristã [romana] tomou a sua forma exterior do Império Romano".

(Buenos Aires: El Ateneo, 1963, p. 29; Nihil Obstat - O Censor, R.P. Santiago Lichius; Imprimatur - Dr. Antonio Rocca, Vigário Geral do Arcebispado, por mandato de Sua Excia. Rvma. Monsenhor Raúl A. Castellá)

Seria interessante ver a reação de Pedro e Paulo se Deus lhes concedesse visitar o Vaticano e ver no que se tornou a Igreja daquela grande cidade onde provavelmente ambos morreram pela sua fé.

Era bom que os fiéis da Igreja de Roma que partilham estas coisas refletissem e não continuassem faltando à verdade em nome da sua fidelidade a Roma.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Jerónimo mudou de opinião a respeito do cânon do Antigo Testamento? - II


Os apologistas romanos voltaram à carga.

Desta vez é o apologista Rafael Rodrigues, que no seu artigo “São Jerônimo rejeitou os deuterocanônicos?” tenta sugerir que Jerónimo aceitava os livros apócrifos/deuterocanónicos ao mesmo nível que os livros do cânon Hebraico. Mas como veremos a seguir, todo o seu artigo não passa de uma enorme sugestão de falsidade, ou seja, de uma mentira. 

Passemos a analisá-lo. Começa assim o artigo:

“São Jerônimo viveu entre os séculos IV e V, e foi secretário do Papa Damaso, a pedido deste começou a traduzir a Vulgata Latina (Tradução das escrituras do original para o Latim). Em 11 de dezembro de 384 o Papa Damaso morreu, então se mudou para Jerusalém onde fundou dois mosteiros e lá pôde continuar seu trabalho de tradução. (LIMA, 2007)”.

Dámaso não pediu a Jerónimo que traduzisse a Vulgata Latina (Tradução das escrituras do original para o Latim).

Dámaso pediu a Jerónimo DUAS coisas:

1. Uma revisão dos Salmos

Jerónimo o fez; foi a primeira das três revisões, chamada Romana. Mais tarde, já na Palestina, fez outra chamada Galicana, e mais tarde outra mais, com base no texto hebraico.

2. Uma revisão do NOVO TESTAMENTO

Os eruditos discutem se se tratava somente dos Evangelhos ou de todo o NT; há argumentos a favor e contra ambas as opiniões, mas o que está fora de discussão é que não se tratava do Antigo Testamento.

De facto, Dámaso morreu em 384, depois disso Jerónimo passado um tempo radicou-se em Belém em 386. Aí começou motu proprio e sem mandato episcopal algum a rever o texto latino do AT com a Septuaginta.

“São Jerônimo é o Padre da Igreja mais freqüentemente usado pelos protestantes para dizer que, os pais negavam a inspiração do deuterocanônicos. Sua atitude em relação ao Deuterocanônicos é realmente, a primeira vista, a mais dura entre os Padres. Vamos aos seus relatos:”

Muito bem. Vamos aos seus relatos:

Jerônimo aceitou o cânon hebraico de 22 livros (ou 24, dependendo da convenção).

 "E assim há também vinte e dois livros do Antigo Testamento; isto é, cinco de Moisés, oito dos profetas, nove dos hagiógrafos, embora alguns incluam Ruth e Kinoth (Lamentações) entre os hagiógrafos, e pensam que estes livros devem contar-se por separado; teríamos assim vinte e quatro livros da Antiga Lei". (Prefácio a Samuel e Reis)

e  rejeitou a canonicidade dos escritos apócrifos ou que tivessem a mesma autoridade que os textos hebraicos.

"Este prólogo às Escrituras pode servir como um prefácio com elmo para todos os livros que vertemos do hebraico para o latim, para que possamos saber – os meus leitores tanto como eu mesmo - que qualquer [livro] que esteja para lá destes deve ser reconhecido entre os apócrifos. Portanto, a Sabedoria de Salomão, como se a titula comummente, e o livro do Filho de Sirá [Eclesiástico] e Judite e Tobias e o Pastor não estão no Cânon. (Prefácio a Samuel e Reis)

Ninguém deve ser incomodado pelo fato de a minha edição ser composta por apenas um livro, nem ninguém deve se deleitar nos sonhos encontrados no terceiro e quarto livros apócrifos. Pois entre os hebreus os textos de Esdras e Neemias constituem um único livro, e aqueles textos que não são usados por eles e não se ocupam com os vinte e quatro anciãos devem ser rejeitados. (Prefácio a Esdras)

"Portanto, como a Igreja lê os livros de Judite e Tobite e Macabeus, mas não os recebe entre as Escrituras canónicas, assim também lê Sabedoria e Eclesiástico para a edificação do povo, não como autoridade para a confirmação da doutrina Igreja" (Prefácio aos escritos de Salomão)

Portanto, Jerónimo acreditava que o cânon hebraico de 22 livros (ou 24 livros, dependendo de como eles são contados) devia ser o cânon autorizado do Antigo Testamento.

“Constata-se aqui, mais uma vez, que a Igreja da palestina não rejeitava estes livros, ou os tinha como heréticos, assim como os protestantes acusam, mas os tinha como de serventia para a “edificação das pessoas”, logo vemos que desde sempre estes livros estavam em posse da Igreja e amplamente usados.”

Claro que se constata que a Igreja da Palestina não rejeitava estes livros e que estavam na sua posse. Que grande novidade nos dá o apologista católico!!! Estes livros não caíram do céu na Igreja antiga. Eles estavam incluídos nos códices da Septuaginta que eram utilizados pelos cristãos de língua grega. Mas isso por si só não garante que estes livros não ensinem heresias nem a sua canonicidade. Aliás, nestes mesmos códices também estavam incluídos livros que a igreja romana hoje não aceita como canónicos.

“No entanto, se formos ver na prática tempo depois de ter feitos essas declarações, São Jerônimo cita todos esses livros, que ele negou a canonicidade, como Escritura, e os mantém no mesmo nível de inspiração dos outros. Procuramos em suas obras, a que tivemos acesso, e encontramos diversas vezes ele se referindo aos deuterocanônicos como inspirados e faz menção a eles cerca de 55 vezes”

Comecemos pelo fim. Rafael Rodrigues afirma que Jerónimo faz menção aos livros deuterocanónicos "... cerca de 55 vezes". Isto é fácil de refutar. Se Paulo citou escritores pagãos, como Menandro, Epiménides, ou Arato, por que motivo Jerónimo não poderia citar estes livros que ele disse serem bons para a edificação da igreja, bem como outros? O facto de se fazer menção a um livro não quer dizer que se o considere canónico. Mas Rafael Rodrigues vai mais longe e diz que ele citou-os como Escritura na prática. E que conclusão tira disto? Sugere imediatamente que Jerónimo mudou de opinião em relação às suas afirmações anteriores, mas tal pode não ser o caso. Veremos isto mais abaixo.

“Perceba o leitor que ele não coloca o livro de Baruc entre os não canônicos, logo significa que ele aceitava a inspiração de Baruc."

Perceba o leitor o erro de lógica elementar aqui cometido. Ora, o facto de ele não colocar o livro de Baruc entre os não canónicos não implica que o considerasse canónico. Significa apenas que a lista não é exaustiva e omitiu Baruc da mesma forma que omitiu outros livros não canónicos para a Igreja de Roma hoje, como a Oração de Manassés, 1 Esdras ou o salmo 151.

Além disso, Jerónimo antes já tinha dito que qualquer livro que estivesse para lá dos que ele verteu do hebraico para o latim (os 24 livros do cânon hebraico) devia ser reconhecido entre os apócrifos. Como Baruc é um dos que está para lá destes livros, logo implicitamente o colocou também entre os apócrifos.

E, por fim, Jerónimo diz explicitamente que não traduziu o livro de Baruc por considerar que não tinha lugar entre as Escrituras canónicas. No seu prefácio a Jeremias, ele diz: "O livro de Baruc, o escriba de Jeremias, não é lido em hebraico, nem estimado canónico, portanto, passei à frente."

"Disse que Judite não era canônico, porém mais tarde ele mesmo vem reconhecer como canônico como podemos ler em seu relato”

Quanto a Judite vejamos:

Jerónimo diz que “Mas porque este livro é encontrado, pelo Concílio de Nicéia, sendo contados entre o número das Sagradas Escrituras, concordei com o seu pedido” (Prólogo ao livro de Judite)

E Rafael Rodrigues diz  Ou seja, ele reconhece o canonicidade de Judite devido uma promulgação do Concílio de Nicéia, tal citação não foi preservada nos cânones, cartas ou atas do concílio, só tomamos conhecimento disto através de Jerônimo. Portanto podemos ver, até agora, que ele aceitava Judite e Baruc como canônicos.”

Há alguns problemas evidentes com este argumento:

1) Jerónimo aceitou traduzir Judite depois de isso lhe ser pedido por dois bispos amigos. Para essa aceitação contribuiu a ideia de que este livro tinha sido aceite pelo concílio de Niceia entre as Sagradas Escrituras. Daqui, ao contrário do que faz o Rafael Rodrigues, não se pode tirar a conclusão que Jerónimo reconheceu a canonicidade de Judite.

2) O Concílio de Niceia reuniu-se em 325. Ou seja, vinte anos antes de Jerónimo ter nascido, trinta e oito anos antes de ser batizado, e sessenta e seis anos antes de ter começado a traduzir a Vulgata. É muito improvável que Jerónimo, que já tinha traduzido Eusébio, não estivesse intimamente familiarizado com o Concílio de Niceia antes de escrever o prefácio a Samuel e Reis, quando disse “Judite e Tobias e o Pastor não estão no Cânon”.

3) Não existe uma lista das Sagradas Escrituras saída de Niceia. Este concílio não tratou do conteúdo do cânon das Sagradas Escrituras mas sim de outras questões. Não me alongarei sobre o que terá levado Jerónimo a pensar que Judite foi aceite em Niceia. Limito-me a sublinhar que foi um engano o que contribuiu para Jerónimo aceitar o pedido de tradução. Não havia nenhum cânon de Niceia que confirmava Judite como canónico. Os cânones do Concílio de Niceia são de fácil leitura, assim como as histórias de Eusébio, e em nenhum lugar o livro de Judite é encontrado na discussão sobre a divindade de Cristo e na resposta à heresia Ariana.

4) Se Jerónimo reconheceu o livro de Judite como canónico na altura em que o traduziu, então muito rapidamente mudou de opinião outra vez ao negar a sua autoridade. Em 394, um ano depois de traduzir Tobias e Judite a pedido dos bispos Cromácio e Heliodoro, traduziu novamente a pedido dos mesmos bispos os livros de Salomão (traduziu Provérbios, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos em três dias, e incluiu ao trabalho o livro da Sabedoria e Eclesiástico que também eram atribuídos a Salomão, embora falsamente como o próprio Jerónimo reconhece no prefácio). Cito a parte pertinente do prefácio já mencionado acima, mas acredito que vale a pena repetir.

Portanto, como a Igreja lê os livros de Judite e Tobite e Macabeus, mas não os recebe entre as Escrituras canónicas, assim também lê Sabedoria e Eclesiástico para a edificação do povo, não como autoridade para a confirmação da doutrina da Igreja" (Prefácio aos escritos de Salomão)

5) Por fim, uma vez que as datas dos prefácios não são rigorosas mas aproximadas e envolvem um certo grau de incerteza, alguém pode objetar que o prefácio ao livro de Judite foi escrito posteriormente ao prefácio aos livros de Salomão. Por conseguinte, e como argumento concludente e definitivo, afirmamos que no próprio prefácio ao livro de Judite, sem importar se foi escrito antes ou depois do prefácio aos livros de Salomão, Jerónimo começa por negar que o livro seja canónico.

Entre os judeus o livro de Judite lê-se como um hagiógrafo (apócrifo). A sua autoridade é considerada menos idónea para corroborar o que se discute.” (Prefácio ao livro de Judite)

A obra Nicene and Post-Nicene Fathers confirma:

"O Prefácio é para Cromácio e Heliodoro. É reconhecido que os livros (Tobias e Judite) são apócrifos." (NPNF2, Vol. 6, St. Jerome, Prefaces to Jerome's Works, Tobit and Judith, p. 916).

“Vejamos agora os que ele fala sobre os acréscimos de Daniel:

“Livro II, 33. Em Referencia a Daniel minha resposta será que eu não disse que ele não era profeta; ao contrário eu confesso, no próprio início do prefácio, que ele era um profeta. Mas eu desejei mostrar qual era a opinião sustentadas pelos Judeus; e quais eram os argumentos que eles usavam para provar. Eu também disse ao leitor que a versão lidas nas Igrejas Cristãs não era a da septuaginta mas a se Teodocião. É verdade, Eu disse que a versão da septuaginta era neste livro muito diferente do original, e que foi condenada pelo justo julgamento das Igrejas de Cristo; Mas o erro não foi meu que relatei o fato, mas daqueles que lêem a versão. Nós temos 4 versões para escolher: aquelas de Áquila, Simáco, Septuaginta, e Teodocião. As Igrejas escolheram ler Daniel na versão de Teodocião. Que pecado eu cometi se segue o julgamento das igrejas? Mas quando eu repeti o que os judeus dizem contra história de Susana, o hino dos 3 Jovens, e a estória de Bel e o Dragão, que não estão contidos na bíblia hebraica, o homem que fez esta acusação contra mim prova que ele mesmo é um tolo e um caluniador. Pois eu expliquei não o que eu pensava, mas o que eles comumente diziam contra nós. Eu não refutei a opinião deles no prefácio por que eu sendo breve, e cuidadoso para não parecer que eu não estava escrevendo um prefácio e sim um livro. Eu disse, portanto, ‘aqui não agora não é o momento para entrar em discussão sobre isto.’” (JERONIMO, 420)

Aqui é necessário fazer algumas notas prévias sobre este texto de Jerónimo (Contra Rufino, II; 33)[www.ccel.org]) apresentado pelo Rafael Rodrigues:

O autor trocou a palavra «fábulas» por «estória» de Bel e o dragão, trocou «não respondi à opinião» por «não refutei a opinião» e data o texto de 420, quando o texto é de 402. Jerónimo morreu em 419.

Anteriormente no prefácio a Daniel, Jerónimo já tinha afirmado:

"Digo isso para mostrar como é difícil manejar o livro de Daniel, que em hebraico não contém nem a história de Susana, nem o hino dos três jovens, nem as fábulas de Bel e o Dragão, porque, no entanto, elas podem ser encontradas em qualquer lado, formamos com elas um apêndice, prefixando-lhes um Obelus, e assim dando um destino a elas, de modo a não parecer ao desinformado que cortámos uma grande parte do volume".

Quatro coisas devem ser observadas aqui. A primeira é que os acréscimos de Daniel não estavam nas Escrituras Hebraicas, a segunda é que Jerónimo chama Bel e o Dragão uma "fábula", a terceira é que eles foram anexados à sua Vulgata, e a quarta é que eles foram marcados com um "Obelus" que é um símbolo crítico usado em manuscritos antigos para marcar uma passagem questionável. Nada aqui revela qualquer indicação de que Jerónimo sustentava que esses acréscimos eram Escritura inspirada.

“Veja que ele aqui aceita a canonicidade dos acréscimos de Daniel, diz que as acusações não são suas, mas dos judeus:

“Pois eu não relatei o que eu pensava, mas o que eles comumente diziam contra nós.”.

Ora, aqui temos mais uma conclusão indevida do autor que quer fazer o leitor ver coisas que não existem. Quando Jerónimo diz que as acusações não são suas não significa que aceitasse a canonicidade dos acréscimos de Daniel. Jerónimo fez notar que as acusações não partiram dele, como o acusavam, mas dos Judeus, e foi apenas essas acusações dos Judeus que ele mencionou no prefácio. Portanto, quando Rafael Rodrigues diz “Veja que ele aqui aceita a canonicidade dos acréscimos de Daniel vai além do que Jerónimo escreveu, porque “ele não relatou o que pensava”. 

“Ele também mostra que não quis refutar os judeus para seu prefácio não ficar grande:

“Eu não refutei a opinião deles no prefácio por que eu sendo breve, e cuidadoso […] Eu disse portanto, ‘aqui não agora não é o momento de entrar em discussão sobre isto.’”.

Como já vimos, a palavra «refutar» foi introduzida ilegitimamente pelo autor no texto porque lhe convinha para a sua tese. Jerónimo diz que não respondeu ao que os Judeus diziam para o prefácio não ficar grande. Não quer com isto dizer que não concordasse com eles. Simplesmente nesta ocasião não disse o que pensava sobre o assunto. Ele disse “agora não é o momento para entrar em discussão sobre isto." Ele entrou em discussão sobre isto 5 anos depois (em 407) no comentário que fez sobre Daniel e aí diz claramente que não aceita os acréscimos de Daniel como parte das Sagradas Escrituras. Veja-se os textos relevantes na parte final do meu artigo “Jerónimo mudou de opinião a respeito do cânon do Antigo Testamento? – I”

“Até Aqui constatamos, portanto, que São Jerônimo aceitava como canônicos Judite, Baruc, e os acréscimos de Daniel e Ester.”

Até aqui constatamos precisamente o contrário. São Jerónimo não aceitava como canónicos Judite, Baruc e os acréscimos de Daniel.

Agora Rafael Rodrigues começa a dar algumas citações selecionadas de Jerónimo para mostrar que ele citou os livros apócrifos como Escritura. Vejamos:

A Escritura não diz: ‘não te sobrecarregue acima do teu poder’? (Eclesiástico 13, 2)” (A Eustóquio, Epístola CVIII)

Rafael Rodrigues aqui está correto, Jerónimo chama este versículo de Eclesiástico “Escritura”, mas deve questionar-se se o que ele quer dizer é no sentido “inspirado”. Considerando que ele já afirmou que "Eclesiástico" não é para ser usado doutrinalmente (ver acima), é razoável assumir que este não é o caso.

“Não, meu querido irmão, estime meu valor pelo número de meus anos. Cabelos brancos não são sabedoria, é sabedoria, que é tão boa quanto os cabelos brancos Pelo menos é isso que Salomão diz: ‘a sabedoria que faz as vezes dos cabelos brancos’ (Sabedoria 4, 9). Moisés também na escolha dos setenta anciãos disse para tirar aqueles a quem ele sabia que eram anciãos de fato, que não para selecionar-los por seus anos, mas por sua discrição (Números 11, 16) E, como um menino, Daniel, julgou os homens de idade e na flor da juventude condenou a incontinência da idade (Daniel 13, 55-59)” (A Paulino, Epístola 58).

Aqui Rafael Rodrigues está a ler demais nesta citação. Embora Jerónimo "cite" estes livros, citando-os não significa que ele os via como "Escritura", especialmente à luz do facto dele ter afirmado que os livros podiam ser usados ​​"eclesiasticamente".

"Gostaria de citar as palavras do salmista: ‘os sacrifícios de Deus são um espírito quebrado’, (Salmos 51, 17) e o de Ezequiel ‘Eu prefiro o arrependimento de um pecador ao invés de sua morte’, (Ezequiel 18, 23) e as de Baruc, ‘Levanta-te, levanta-te, ó Jerusalém’ (Baruc 5, 5) e muitos outras proclamações feitas pelas trombetas dos profetas.” (A Oceanus, Epístola 77, 4).

Jerónimo aqui não chama Baruc “Escritura”. Nem necessariamente o chama “profeta”. Uma vez que começou por distinguir a sua primeira citação como “do salmista”. Portanto, o que Jerónimo diz é que poderia continuar citando as proclamações dos profetas, não que as três citações anteriores pertençam aos profetas.

[É verdade que um festival como o aniversário de São Pedro deve ser temperado com mais alegria do que o habitual;] “ainda a nossa alegria não se deve esquecer o limite definido pela Escritura, e não devemos ficar muito longe da fronteira da nossa luta. Seus presentes, de fato, lembram me dos livros sagrados, pois nele Ezequiel adorna Jerusalém com braceletes, (Ezequiel 16, 11) Baruc recebe cartas de Jeremias (Baruc 6) e o Espírito Santo desce na forma de uma pomba no batismo de Cristo (Mateus. 3, 16)” (A Eustóquio, Epístola XXXI, 2 ).

Não é verdade que São Jerônimo cita em referência às Escrituras, os Livros Sagrado”. Entre parêntesis iniciais, adicionei o que o Rafael Rodrigues deixou de fora, visto que isso acrescenta contexto à passagem. Se deixasse exatamente como ele citou, então, pareceria que isto era um único pensamento que justificaria a sua afirmação inicial. No entanto, primeiro "Escritura" está dentro do contexto da festa de São Pedro. Depois, não “os livros sagrados” mas "o volume sagrado (sacred volume)”, que é o que diz o texto, está no contexto dos presentes dados a Jerónimo. Estes são dois pensamentos e não um. Assim, quando ele cita Baruc, não está especificamente a chamá-lo de Escritura e, novamente, Jerónimo pode estar a citá-lo pelo seu valor eclesiástico.

Chamei a atenção para a tradução correta ser "volume sagrado" e não "livros sagrados",  porque esta diferença é importante para entender corretamente o texto e a ideia que lhe está subjacente. Faço um exemplo. A Bíblia luterana contém os livros apócrifos.  Quando um luterano se refere a ela como "Bíblia sagrada", não significa que considere os apócrifos/deuterocanónicos incluídos nela com o mesmo valor que os outros livros. O mesmo se pode dizer de Jerónimo quando chama "volume sagrado", a um volume que contém livros apócrifos/deuterocanónicos. Designa-se o todo pela parte. Chama-se a isto uma sinédoque.

“Como nas boas obras é Deus quem lhes traz a perfeição, pois não é do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece e dá-nos ajuda para que possamos ser capazes de alcançar a meta: então em coisas ímpias e pecadoras, as sementes dentro de nós dão o impulso, e estes são trazidos à maturidade pelo demônio. Quando ele vê que estamos construindo sobre o fundamento de Cristo com feno, madeira, palha, então ele se aplica no jogo. Vamos, então, construir com ouro, prata, pedras preciosas, e ele não vai se aventurar a tentar-nos: apesar de mesmo assim não há certeza e posse segura. Pois o leão espreita a emboscada para matar os inocentes. ‘ Os vasos do oleiro são provados pela fornalha, e os homens justos, pelo julgamento da tribulação’ (Eclesiástico 27, 5). E em outro lugar está escrito: ‘Meu filho, quando tu vires a servir ao Senhor, prepara-te para a tentação.’ (Eclesiástico 2, 1) Novamente, o mesmo Tiago diz: ‘Sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes. Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante a um homem que contempla seu rosto natural no espelho, pois ele contempla a si mesmo, e vai embora, e logo se esquece que tipo de homem ele era’ .(Tiago 3, 22). Seria inútil avisá-los para adicionar obras a fé, se não pudessem pecar depois do batismo.” (Contra Joviniano, Livro 2, 3)  

Rafael Rodrigues supõe que Jerónimo está a usar a frase "está escrito" no sentido bíblico - que há um ar de credibilidade Escritural nesta frase - mas ele nunca pára para pensar se Jerónimo simplesmente queria dizer que estas citações estavam "escritas", nada mais e nada menos.

“No entanto, o Espírito Santo no trigésimo nono Salmo, enquanto lamentando que todo homem anda numa vã aparência, e que eles estão sujeitos aos pecados, fala assim: ‘Porque todo homem anda à imagem’ (Salmo 39, 6). Também após o tempo de Davi, no reinado de seu filho Salomão, lemos uma referência um tanto similar à semelhança divina. Pois no livro da Sabedoria, que está escrito com o nome dele, Salomão diz:. ‘Deus criou o homem para ser imortal, e o fez ser uma imagem de sua própria eternidade.’ (Sabedoria 2, 23) e mais uma vez, cerca de mil cento e onze anos depois, lemos no Novo Testamento que os homens não perderam a imagem de Deus. Pois Tiago, um apóstolo e irmão do Senhor, que eu mencionei acima – que não podemos ser enredado nas armadilhas de Orígenes – nos ensina que o homem possui a imagem e semelhança de Deus. Pois, depois de um breve discurso sobre a língua humana, ele passou a dizer dela: ‘É um mal incontrolável … Com ela bendizemos a Deus, o Pai e com ela amaldiçoamos os homens, que são feitos à semelhança de Deus.’ (Tiago 3, 8-9) Paulo, também, o ‘vaso escolhido’ (Atos 9, 15), que em sua pregação foi totalmente mantida a doutrina do evangelho, nos instrui que o homem é feito à imagem e à semelhança de Deus. ‘Um homem’, diz ele, ‘não devem usar cabelos longos, porquanto ele é a imagem e glória de Deus.’ (I Cor. 11, 7). Ele fala da ‘imagem simplesmente’, mas explica a natureza da semelhança com a palavra ‘glória’.

Em vez de três provas da Sagrada Escritura que você disse que iria satisfazê-lo se eu pudesse dá-las, eis que eu te dei sete …” (Carta LI, 6-7).

Neste contexto, Jerónimo dá mais de sete Escrituras dentro desta passagem e não há forma de dizer se a citação da Sabedoria está entre as "sete", mas por causa do argumento, vamos dar-lhe o benefício da dúvida.

Seu argumento é engenhoso, mas você não vê que é contra a Sagrada Escritura, que declara que, mesmo a ignorância não é sem pecado. Por isso, foi que Jó ofereceu sacrifícios por seus filhos, teste, por acaso, eles tinham involuntariamente pecado em pensamento. E se, quando se está cortando madeira, a cabeça de machado salta do punho e mata um homem, o proprietário é ordenado a ir para uma das cidades de refúgio e ficar lá até o sumo sacerdote morrer (Num. 35, 8); isto é, até que ele ser redimido pelo sangue do Salvador, seja no batistério, ou em penitência que é uma cópia da graça do batismo, através da inefável misericórdia do Salvador, que não quer ninguém pereça (Ezequiel 18, 23), nem se deleita na morte dos pecadores, mas sim que eles se convertam e vivam. [...]

Você espera que eu explique os objetivos e planos de Deus? O Livro da Sabedoria dá uma resposta à sua pergunta tola: “Não olhe para as coisas acima de ti, e não procure coisas fortes demais para ti’ (Eclesiástico 3, 21). E em outro lugar ‘Não te faça exageradamente sábio, e não argumente mais do que é necessário.’(Eclesiastes 7, 16) E no mesmo lugar ‘em sabedoria e simplicidade de coração busca a Deus.’ Você talvez negará a autoridade deste livro […]” (Contra os Pelagianos, Livro I, 33)

Ele submete estas citações juntas, mas qualquer um pode ver que quando Jerónimo se refere à Escritura na passagem, ele está se referindo à Escritura canónica (Jó, Números e Ezequiel). A citação de Eclesiástico é independente da citação de cima e não há nenhuma indicação de que Jerónimo o cite como Escritura.

Na verdade, continuando a citação Jerónimo nega a autoridade de Eclesiástico ao dizer:Você talvez negará a autoridade deste livro. Ouça então o apóstolo [Rom.11:33-34; 2 Tim 2:23]. E em Eclesiastes (Um livro sobre o qual não pode haver dúvida) lemos…”. Indicando que, ao contrário do livro de Eclesiastes sobre o qual não havia dúvida e cuja autoridade estava fora de questão, a autoridade de Eclesiástico como Escritura era duvidosa (para dizer o mínimo).

“E os provérbios de Salomão nos dizem que como ‘O vento norte traz chuva, e a língua fingida, o rosto irado.’ (Provérbios. 25, 23) Às vezes acontece que uma flecha quando é dirigida a um objeto duro ricocheteia sobre o arqueiro, ferindo o atirado, e assim, as palavras são cumpridas ‘viraram-se como um arco enganador’ (Salmo 78, 57) e em outra passagem: ‘aquele que lança uma pedra ao alto, lança-a sobre sua própria cabeça’(Eclesiástico 27, 25)” (A Rusticus, Epístola 125, 19)

Novamente, embora Eclesiástico seja usado no contexto a par da Escritura, isso não prova nada, especialmente à luz do uso eclesiástico.

“Deixe-me chamar em meu auxílio o exemplo dos três Jovens que, em meio ao fogo, fresco de cerco, cantava hinos, (Daniel 3, 14-94 ) em vez de chorar, e em torno daqueles turbantes e cabelos santos as chamas jogado sem causar danos. Deixe-me lembrar, também, a história do abençoado Daniel, em cuja presença, embora fosse sua presa natural, os leões agachados, com caudas abanando e bocas assustadas. (Daniel 6). Deixe Susanna também subir na nobreza de sua fé ante os pensamentos de todos, que, depois de ter sido condenada por uma sentença injusta, foi salva por um jovem inspirado pelo Espírito Santo (Daniel 13, 45). Em ambos os casos a misericórdia do Senhor foi também mostrada, por enquanto Susanna foi libertada pelo juiz, de modo a não morrer pela espada, essa mulher, embora condenada pelo juiz, foi absolvida pela espada.” (Carta I, 9)

Jerónimo cita as adições a Daniel, mas isso não significa que citou isto como Escritura inspirada e não eclesiasticamente.

“Essas coisas, querida filha em Cristo, eu te impressiono e freqüentemente repito, que você pode esquecer as coisas que estão para trás e chegar-vos as coisas que estão diante (Filipenses 3, 12). Você tem viúvas, como você dignas de serem modelos, Judite de renome na história hebraica (Judite 13) e Ana, filha de Fanuel (Lucas 2), famosa no evangelho. Ambas Tanto de dia como de noite viviam no templo e preservado o tesouro de sua castidade pela oração e pelo jejum. Uma delas era tipo a Igreja, que corta a cabeça do diabo (Judite 13, 8) e a outro primeiro recebeu nos braços o Salvador do mundo e lhe foi revelado os santos mistérios que estavam por vir (Lucas 2 , 36-38).” (A Salvina, Carta 79, 10).

O texto traduzido corretamente diz: "Você tem viúvas, como você dignas de serem modelos, Judite renomada na história Hebraica (Judite 13) e Ana, filha de Fanuel (Lucas 2), famosa no evangelho".

Jerónimo explicitamente chama o relato de Judite uma "história Hebraica", mas o relato de Fanuel em Lucas 2 ele chama "o evangelho”. Se ele estivesse citando ambos como Escritura, por que razão classifica Judite desta maneira e a contrasta com um relato do evangelho? Acho que a resposta é óbvia.

Resumindo, o Rafael Rodrigues tem apenas um caso onde Jerónimo chama um livro apócrifo "Escritura", talvez dois se formos um pouco benevolentes e incluirmos a Carta LI, 6-7. Mas no primeiro caso, Jerónimo expõe o mesmo livro (Eclesiástico) como duvidoso numa citação semelhante, e no segundo caso é uma conjetura. Por isso, em nenhum destes casos temos algo que possa convencer o leitor a acreditar que ele aceitava estes livros como Escritura inspirada. J.N.D. Kelly lança luz sobre o uso de Jerónimo destes livros e o seu uso da palavra Escritura:

A conversão de Jerónimo à “verdade Hebraica" [i.e., em contraste com a LXX] trazia consigo um importante corolário - a sua aceitação também do cânon Hebraico, ou lista dos livros propriamente pertencentes ao Antigo Testamento. Uma vez que a Igreja primitiva leu o seu Velho Testamento em grego, assumiu sem questionar o chamado cânon Alexandrino usado nas comunidades judaicas de língua grega fora da Palestina. Este incluiu esses livros (Sabedoria, Eclesiástico, Judite, etc) que são variavelmente descritos como deuterocanónicos ou como Apócrifos. Por volta do final do primeiro século, no entanto, o judaísmo oficial excluiu formalmente estes, limitando o cânon aos livros que figuram nas Bíblias inglesas como propriamente o Antigo Testamento. Desde a época de Orígenes que foi reconhecido que havia uma diferença entre o cânon Judaico e a lista reconhecida pelos Cristãos, mas a maioria dos escritores preferiu colocar os populares e amplamente usados livros deuterocanónicos numa categoria especial (e.g, chamando-os "eclesiásticos") ao invés de descartá-los. Jerónimo agora assume uma linha muito mais firme. Depois de enumerar os "vinte e dois" (ou possivelmente vinte e quatro) livros reconhecidos pelos Judeus, ele decreta que todos os livros fora desta lista devem ser considerados “apócrifos”: ​​“Eles não estão no cânon". Em outros lugares, embora admitindo que a Igreja lê livros como Sabedoria e Eclesiástico que são estritamente não canónicos, ele insiste na sua utilização somente 'para edificar o povo, não para a comprovação das doutrinas da Igreja". Esta foi a atitude que, com concessões temporárias por razões táticas ou outras, ele manteve para o resto da sua vida - na teoria pelo menos, pois na prática ele continuou a citá-los como se fossem Escritura. De novo o que o moveu foi principalmente o embaraço que sentia ao ter que argumentar com Judeus com base em livros que eles rejeitaram, ou mesmo (por exemplo, as histórias de Susana, ou de Bel e o Dragão) que achava francamente ridículos. (J. N. D. Kelly, Jerome: His Life, Writings, and Controversies (Peabody: Hendrickson Publishers, 2000), pp. 160-161 )

Portanto, só porque Jerónimo na prática citou os livros apócrifos como se fossem Escritura, não significa que ele os visse como "Escritura". Faço um exemplo para que se perceba. Se eu estiver a discutir com um católico romano, eu posso citar um livro apócrifo como se fosse Escritura contra ele, porque sei que ele aceita estes livros como Escritura fortalecendo assim o meu argumento, mas isso não significa que eu reconheço tal livro como Escritura. Ora, é isto que Jerónimo faz “na prática”. Quando o seu oponente tinha estes livros como Escritura então “na prática” ele cita-os como se fossem Escritura por uma razão tática mas isso não implica que os reconhecesse como Escritura.

Além disso, J. N. D. Kelly não o diz abertamente, mas a expressão "continuou a citá-los como se fossem Escritura", sugere que na prática Jerónimo dissimulava, isto é,  ele apesar de saber que determinado livro não era Escritura, fazia passá-lo como tal numa discussão, para com isso sair favorecido. Ninguém é perfeito.

Não é lendo os escritos de Jerónimo entrelinhas, ou considerando o que fez "na prática", que se avalia a correta posição de Jerónimo em relação aos livros apócrifos, mas sim considerando aquilo que ele disse ponderada e explicitamente sobre o assunto, e aí não deixa dúvidas. 

Por outro lado, o facto de a sua opinião ter influenciado outros estudiosos da Bíblia, como Caetano e Jiménez, e eles terem negado todos estes livros, atribuindo a sua opinião a Jerónimo, prova ainda mais que ele não reconheceu estes livros como verdadeira Escritura, mas somente que “na prática” continuou a citá-los como se fossem tal, como Kelly afirma acima.

Cardeal Caetano

Aqui concluímos nossos comentários sobre os livros históricos do Antigo Testamento. Pois o resto (isto é, Judite, Tobite, e os livros de Macabeus) são contados por Jerónimo fora dos livros canónicos. E são postos entre os apócrifos. Juntamente com Sabedoria e Eclesiástico, como é evidente do Prólogo com Elmo. E não te preocupes, como um erudito principiante, se acharem em qualquer lado, seja nos sagrados concílios ou nos sagrados doutores, estes livros reconhecidos como canónicos. Pois as palavras tanto dos concílios como dos doutores devem ser reduzidas à correção de Jerónimo. Ora, segundo o seu juízo, na carta aos bispos Cromácio e Heliodoro, estes livros (e quaisquer outros como eles no cânon da Bíblia) não são canónicos, isto é, não são da natureza de uma regra para confirmar assuntos de fé. Contudo, eles podem ser chamados canónicos, isto é, da natureza de uma regra para a edificação dos fiéis, como tendo sido recebidos e autorizados no cânon da Bíblia para este propósito. Com a ajuda desta distinção tu podes ver o teu caminho claramente através do que diz Agostinho, e do que está escrito no Concílio provincial de Cartago. (Commentary on all the Authentic Historical Books of the Old Testament, In ult. Cap., Esther. Tomado de A Disputation on Holy Scripture by William Whitaker (Cambridge: University, 1849), p. 48. Ver também B.F. Westcott A General Survey of the History of the Canon of the New Testament (Cambridge: MacMillan, 1889), p. 475.

Cardeal Jiménez

O Cardeal Francisco Jiménez de Cisneros foi o editor da famosa Poliglota Complutense. Esta Bíblia, bem como o seu Prefácio, foi publicada pela autoridade e consentimento do Papa Leão X, a quem todo o trabalho foi dedicado. Bruce Metzger descreve brevemente a situação histórica na Igreja do Ocidente pouco antes da Reforma:

Após o tempo de Jerónimo e antes do período da reforma uma sucessão contínua dos Padres e teólogos mais instruídos do Ocidente manteve a distinta e única autoridade dos livros do cânon hebraico. Tal julgamento, por exemplo, foi reiterado na véspera da Reforma pelo Cardeal Jiménez, no prefácio da magnificente edição Poliglota Complutense da Bíblia, que ele editou (1514-17) ... Até o Cardeal Caetano, adversário de Lutero em Augsburgo, em 1518, deu uma aprovação sem hesitação ao cânon hebraico no seu Comentário sobre todos os livros históricos autênticos do Antigo Testamento, que ele dedicou em 1532 ao Papa Clemente VII. Ele expressamente chamou a atenção para a separação de Jerónimo dos livros canónicos dos não canónicos, e sustentou que os últimos não devem ser invocados para estabelecer pontos de fé, mas usados apenas para a edificação dos fiéis (Bruce Metzger, An Introduction to the Apocrypha (New York: Oxford, 1957), p. 180).

O Cardeal Jiménez, o célebre editor da Poliglota Complutense, no prefácio a esse trabalho, adverte o leitor de que Judite, Tobias, Sabedoria, Eclesiástico, Macabeus, como os acréscimos a Ester e Daniel, que são encontrados no grego, não são Escrituras canónicas (retirado do livro de Archibald Alexander, Canon of the Old and New Testaments Ascertained, or The Bible Complete without the Apocrypha and Unwritten Traditions encontrado aqui

Reafirmação da posição de Jerónimo com o testemunho de uma fonte Católica Romana moderna.

Jerónimo classificou os Apócrifos numa categoria separada. Ele distinguiu entre os livros canónicos e os livros eclesiásticos, os quais não reconheceu como Escritura autoritativa. Isto é admitido atualmente pela Igreja Católica Romana:

Jerónimo distinguiu entre livros canónicos e livros eclesiásticos (os apócrifos). Estes últimos circulavam na Igreja como boa leitura espiritual mas não eram reconhecidos como Escritura autoritativa. A situação permaneceu obscura nos séculos seguintes… Por exemplo, João de Damasco, Gregório Magno, Walafrid, Nicolau de Lira e Tostado continuaram a duvidar da canonicidade dos livros deuterocanónicos...  Segundo a doutrina católica, o critério do cânon bíblico é a decisão infalível da Igreja. Esta decisão não foi dada até muito tarde na história da Igreja no Concílio de Trento... O Concílio de Trento definitivamente resolveu a questão do cânon do Antigo Testamento. Que isto não havia sido feito anteriormente é evidenciado pela incerteza que persistiu até ao tempo de Trento” (New Catholic Encyclopedia, Vol. II, Bible, III (Canon), p. 390; Canon, Biblical, p. 29; Bible, III (Canon), p. 390).

Conclusão

Não há nenhuma evidência para sustentar que Jerónimo mudou de opinião e incluiu os apócrifos ao cânon. Jerónimo continuou a escrever comentários sobre os livros do Antigo Testamento até à sua morte. Não há registo de que alguma vez se tenha retratado das suas afirmações iniciais sobre os livros apócrifos. Na sua obra Contra Rufino, escrita em 401-402 dC, ele reiterou e defendeu a sua posição anterior sobre os livros apócrifos. Embora ele não considerasse os livros apócrifos canónicos em sentido estrito, Jerónimo citou-os de acordo com as suas próprias convicções, para fins de edificação. Como vimos, as opiniões de Jerónimo tiveram enorme influência sobre a Igreja nos séculos seguintes e mesmo até ao nosso próprio tempo.
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