sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Roma locuta est; causa finita est

 
Os apologistas católicos dizem que os padres da Igreja ensinaram que não era possível ter qualquer certeza do significado objetivo de um texto bíblico determinado, sem recorrer à interpretação do Magistério. Na fundamentação desta afirmação referem-se à alegada citação de Santo Agostinho "Roma locuta est, causa finita est".
 
Esta declaração é dita provir do Sermão 131 de Agostinho proferido em 23 de setembro de 417. Primeiro, estas palavras não aparecem em nenhuma das obras de Agostinho, ele simplesmente não disse estas palavras ... pelo menos todas elas. Ele disse "Causa finita est" em Sermo 131:10 [1]. Segundo, estas palavras não têm nada a ver com a interpretação de Roma da Bíblia.

Ironicamente, estas palavras são frequentemente usadas por apologistas católicos para demonstrar que Agostinho acreditava que as declarações de Roma eram a palavra final em assuntos doutrinários, mas Agostinho disse estas palavras num contexto que diretamente contradiz este uso apologético delas.

Agostinho e os bispos de Cartago excomungaram Pelágio e o seu principal seguidor Celéstio num Sínodo. O papa Inocêncio I concordou com esta decisão e oficialmente apoiou-a. O sucessor de Inocêncio, Zósimo, enganado por confissões de fé ambíguas, revogou as decisões de Inocêncio e exigiu a Agostinho e aos bispos Cartagineses que aprovassem esta revogação. Agostinho e os Cartagineses responderam com outro Sínodo de cerca de 200 bispos que ignoraram a revogação das decisões de Inocêncio e condenaram Pelágio. Após indagações posteriores, Zósimo revogou a sua revogação e apoiou a decisão dos Cartagineses. Antes de todas estas reviravoltas Agostinho tinha dito o seguinte:

Sermão 131 de Migne, PL 38:734:

"Jam enim de hac causa duo concilia missa sunt ad sedem apostolicam; inde etiam rescripta venerunt; causa finita est: Utinam aliquando finiatur error."

Tradução =

"Já sobre esta causa dois concílios foram enviados à Sé Apostólica, donde também rescritos chegaram. A causa está terminada. Que o erro possa igualmente terminar."

Para dar um pouco mais de credibilidade à minha extremamente sucinta descrição do evento ...

Como o historiador católico romano Hefele disse,

"No início de 417, ele (Inocêncio) enviou respostas para os bispos que se tinham reunido em Cartago e os que se tinham encontrado em Milevi ... Ele concordou plenamente com a sentença pronunciada contra Celéstio e Pelágio pelos bispos Cartagineses, elogiou os africanos pelo seu discernimento, confirmou a sentença de excomunhão pronunciada contra Celéstio, ameaçando com a mesma punição todos os seus adeptos, e encontrou na obra de Pelágio muitas blasfémias e doutrinas censuráveis. O sucessor de Inocêncio, Zósimo, que no início do seu reinado em 417 foi enganado pela ambígua confissão de fé de Pelágio e Celéstio, adotou outra linha. Ele tinha há não muito tempo assumido o seu posto quando Celéstio ... deu-lhe uma confissão de fé ... Zósimo imediatamente reuniu um Sínodo Romano, em que Celéstio em termos gerais condenou o que o Papa Inocêncio já tinha condenado. Ele influenciou tanto o Papa em seu favor, que, numa carta aos bispos Africanos, declarou Celéstio ortodoxo, censurou a conduta deles anterior, e representou Heros e Lázaro, os principais opositores de Celéstio, como homens extremamente malvados, a quem ele punia com a excomunhão e deposição. Pouco depois disto Zósimo também recebeu a confissão de fé que Pelágio já tinha enviado, juntamente com uma carta, ao Papa Inocêncio I. Zósimo ... imediatamente enviou uma segunda carta aos africanos, para dizer que tanto Pelágio como Celéstio, se tinham completamente justificado, e que ambos reconheceram a necessidade da graça. Heros e Lázaro, pelo contrário, eram homens malvados, e os africanos eram bastante culpados por se terem deixado influenciar por tais caluniadores desprezíveis." (1)

A propósito da reação dos africanos à primeira revogação de Zósimo...

"Os africanos estavam demasiado certos da sua causa, para aceitar submeter-se a um tão fraco juízo, que, aliás, estava em manifesto conflito com o de Inocêncio. Num concílio em Cartago, em 417 ou 418, eles protestaram, respeitosamente mas decididamente, contra a decisão de Zósimo, e lhe deram a entender que ele estava a deixar-se ser grandemente enganado pelas indefinidas explicações de Celéstio. Num concilio geral Africano realizado em Cartago, em 418, os bispos, mais de 200 em número, definiram a sua oposição aos erros pelagianos, em oito (ou nove) Cânones, que são inteiramente conformes à visão agostiniana.... Estas coisas produziram uma mudança nas opiniões de Zósimo, e a meio do ano 418, ele emitiu uma carta encíclica para todos os bispos do Oriente e do Ocidente, pronunciando o anátema sobre Pelágio e Celéstio… e declarando a sua concordância com as decisões do concílio de Cartago na doutrina da corrupção da natureza humana, do batismo e da graça. Quem se recusasse a subscrever a encíclica, devia ser deposto, expulso da sua igreja, e privado dos seus bens" (2)

A eclesiologia de Agostinho

O exposto acima prova sem sombra de dúvida que a visão eclesiológica de Agostinho é precisamente a que W.H.C. Frend diz que é:

A sua visão de governo da Igreja é que as questões menos importantes devem ser resolvidas por concílios provinciais, e os assuntos de maior dimensão em concílios gerais. (3)

A conclusão a que chegamos à luz dos factos sobre a eclesiologia de Agostinho demonstrada pela sua exegese e pela sua prática é que no seu entendimento, e para os bispos norte-africanos como um todo, a mais alta autoridade e tribunal de apelação não é o bispo de Roma, mas um concílio plenário e geral. Como vimos com a controvérsia pelagiana, Agostinho e os bispos norte-africanos não viram o decreto do bispo de Roma ser o juízo final e vinculativo para a Igreja universal. Quando Zósimo, o bispo de Roma, revogou a decisão da Igreja norte-africana e a do seu antecessor, o Papa Inocêncio I, os norte-africanos opuseram-se a Zósimo e recusaram submeter-se aos seus decretos. Demasiado para Roma locuta est, causa finita est.

Agostinho decisivamente não é defensor de uma eclesiologia papal como a do Vaticano I.

Conclusão

Como mencionado acima o famoso dito atribuído a Santo Agostinho: Roma locuta est, causa finita est, é uma completa invenção. Ele nunca disse isso. A única parte da frase que ele disse é causa finita est (o caso está encerrado). Os apologistas romanos, no entanto, continuam a deturpar este eminente padre da Igreja atribuindo falsamente esta declaração a ele.

Em lado nenhum nos escritos de Agostinho ou na sua prática se encontra a crença no bispo de Roma como critério último da ortodoxia, ou que o seu juízo era a autoridade final em qualquer controvérsia. A controvérsia com o papa Zósimo e Pelágio prova isso sem qualquer sombra de dúvida. Abbé Guettée aponta que na controvérsia pelagiana a sentença do bispo de Roma não era a autoridade final. 
Guettée faz o seguinte resumo da controvérsia com Zósimo e a atitude de Agostinho e dos bispos norte-africanos:

"Além de tudo isso, outra prova de que mesmo em Roma, bem como em outras partes da igreja, a sentença de Inocêncio I não foi considerada como encerrando o caso encontra-se no facto de, após a sua sentença, o caso ter sido reexaminado na própria Roma por Zósimo, o sucessor de Inocêncio, por várias igrejas num grande número de sínodos, e finalmente pelo Concílio Ecuménico de Éfeso, que julgou o caso e confirmou a sentença dada em Roma e em todos os outros lugares onde havia sido examinado.

Quando é dito como o Papa Inocêncio I foi chamado para dar uma opinião no caso de Pelágio, vemos claramente que os teólogos romanistas aplicaram erradamente o texto.

Os bispos Africanos condenaram os erros de Pelágio em dois concílios, sem pensar em Roma ou na sua doutrina. Os Pelagianos então expuseram, para opor-se a eles, a alegada fé de Roma, a qual diziam harmonizava-se com a sua. Em seguida, os bispos Africanos escreveram a Inocêncio, a perguntar-lhe se a afirmação dos pelagianos era verdadeira. Eles foram levados a isso porque os pelagianos tinham grande influência em Roma. Eles não escreveram ao Papa para lhe pedir uma sentença que devesse guiá-los, mas para que pudessem silenciar aqueles que afirmavam que a heresia era defendida em Roma. Inocêncio condenou-a e, portanto, Agostinho diz: "Tu fingiste que Roma estava contigo; Roma te condena, tu também foste condenado por todas as outras igrejas, por isso o caso está terminado". Em vez de pedir uma decisão de Roma, os bispos Africanos apontaram ao Papa o percurso que ele devia seguir nesta questão" (4)

Se os Cartagineses tivessem subscrito o uso popular das palavras "Roma locuta est; causa finita est" eles teriam concordado com a condenação de Inocêncio, a seguir com a revogação de Zósimo, e se por qualquer razão Zósimo revogasse isto sem o desprezo norte-africano, concordariam com esta revogação. Não foi isso o que aconteceu.


Notas

[1] Apesar de tudo, ainda se pode encontrar defensores do papado que argumentam que, apesar de Agostinho não ter dito: "Roma locuta est," ele disse "Causa finita est" (a causa está terminada). Isso é verdade.

Eis a parte relevante do Sermão 131 no contexto: 

"Já dois concílios sobre esta causa escreveram à Sé Apostólica. Donde também rescritos chegaram. A causa está terminada: que o erro possa um dia terminar! Portanto, nós admoestamos para que eles possam prestar atenção, nós ensinamos para que eles possam ser instruídos, oramos para que o seu caminho mude."

Embora ele tenha dito "a causa está terminada", este slogan na verdade não ajuda o defensor papal, por pelo menos as seguintes três razões:

1) O apelo é para a autoridade conciliar estabelecida não para a autoridade papal como tal. De modo que, "Roma falou, o caso está encerrado" não é um resumo muito preciso. Um resumo mais exato seria "dois concílios falaram - o caso está encerrado". Isto não significa que os rescritos não eram de Roma – eles eram.

2) A referência aos rescritos é uma referência a uma resposta de Roma a respeito das decisões dos concílios. O rescrito como tal, não tem a sua própria infalibilidade, nem dá infalibilidade aos decretos dos concílios, sejam eles considerados pelos moldes romanos daquele tempo ou de hoje.

3) Note-se que houve dois concílios, e não apenas um. Isso é parte do ponto de Agostinho. O seu ponto é que, em termos de processo judicial da igreja, continuar este debate é ficar a bater em cavalo morto. Agostinho não está a dizer que dois concílios é um número mágico, assim como não está a dizer que obter uma resposta de Roma magicamente torna as decisões conciliares corretas.

Bibliografia

(1) Charles Joseph Hefele, A History of the Councils of the Church (Edinburgh: Clark, 1895), Volume II, pp. 456-457.

(2) Philip Schaff, History of the Christian Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1910), Volume Three, p. 798-799).

(3) W.H.C. Frend, The Early Church (Philadelphia: Fortress, 1965), p. 222).

(4) Abbé Guettée, The Papacy (Blanco: New Sarov, 1866) pp. 180-181).

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