quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O APÓSTOLO PEDRO: MÁRTIR EM ROMA, MAS NÃO FUNDADOR DA IGREJA ALI


Apesar de Pio XII ter declarado que uns ossos encontrados debaixo do altar da Basílica de São Pedro pertenciam ao apóstolo, e mais tarde, a 26 de junho de 1968, Paulo VI ter anunciado que o túmulo de Pedro tinha sido identificado, tal identificação não é segura. O seu sítio tradicional é na colina vaticana, onde em 330 Constantino mandou construir uma basílica depois de um complexo nivelamento do terreno, e hoje assenta a basílica de São Pedro cuja construção se iniciou em 1503. A suposta sepultura de São Pedro encontra-se debaixo do altar.

Independentemente da certeza que possa haver acerca do sepulcro do Apóstolo Pedro, o propósito desta nota é comentar dois assuntos estreitamente relacionados mas certamente diferentes, a saber: a evidência de que o Apóstolo Pedro tenha ensinado e morrido em Roma, e a evidência de que tenha sido o fundador e primeiro bispo da Igreja de tal cidade.

I. A evidência de que Pedro morreu em Roma

Acerca do primeiro, ou seja, da morte de Pedro em Roma, o autor católico romano J.P. Kirsch diz:

Citação:
É um facto histórico indisputavelmente estabelecido que São Pedro trabalhou em Roma durante a última parte da sua vida, e aí concluiu a sua carreira terrenal com o martírio. Em relação à duração da sua atividade apostólica na capital romana, à continuidade ou não da sua residência aí, aos detalhes e ao êxito dos seus trabalhos, e à cronologia da sua chegada e morte, todas estas questões são incertas, e podem ser resolvidas somente com base em hipóteses mais ou menos bem fundamentadas. O facto essencial é que Pedro morreu em Roma: isto constitui o fundamento histórico para que os bispos de Roma reclamem a Primazia Apostólica de Pedro.

A residência e morte de São Pedro em Roma está estabelecido indiscutivelmente como factos históricos por uma série de diferentes testemunhos que se estendem desde o final do primeiro século até ao final do segundo, e que provêm de diferentes regiões."

(s.v. Peter, Saint. Em The Catholic Encyclopedia, vol. 11, 1911; negrito acrescentado).

O autor sustenta que a morte de Pedro em Roma é um facto histórico indisputável. Na realidade trata-se de um facto muito provável; "indisputável" é uma palavra muito forte. Por outro lado, o autor do artigo sobre o túmulo de Pedro na mesma obra inicia o seu opúsculo com as seguintes confissões: "A história das relíquias dos Apóstolos Pedro e Paulo está envolta em considerável dificuldade e confusão. As autoridades primárias a ser consultadas estão em oposição umas com as outras, ou pelo menos o parecem estar." (Arthur S. Barnes, s.v. Tomb of St. Peter). A seguir apresento um resumo da evidência apresentada por Kirsch, com os meus comentários entre colchetes:

1. A alusão ao martírio de Pedro em João 21:18-19 parece pressupor que os leitores do Evangelho conheciam o facto.

[Fernando Saraví: Sim, mas não diz nada acerca do lugar onde ocorreu; portanto, tal alusão não apoia a tese defendida].

2. A saudação em 1 Pedro 5:13, "A [igreja] que está em Babilónia, eleita juntamente convosco, e [também] meu filho Marcos, vos saúdam", parece uma alusão a Roma (comparado com Apocalipse 17:5; 18:10). A antiga Babilónia estava então em ruínas.

[Fernando Saraví: Embora Babilónia não existisse como império, a região estava habitada; não é impossível – embora possa discutir-se quão provável - que Pedro escrevesse a partir daí. A tese romana baseia-se na identificação de Babilónia com Roma com base na referência ao Apocalipse, o que é obviamente uma conjetura. Além disso, o facto de que Pedro se encontrasse em Roma por volta de 64 não demonstraria que foi o primeiro bispo da Igreja ali].

3. Segundo o testemunho de Papias, bispo de Hierápolis na Ásia Menor, Marcos teria escrito o seu Evangelho em Roma a partir dos ensinamentos de Pedro. Clemente de Alexandria disse, baseado numa tradição, que depois que Pedro anunciou o Evangelho em Roma, os cristãos dali rogaram a Marcos que pusesse por escrito o que os Apóstolos lhes haviam pregado (Ireneu, Adv. Haer. 3:1; Eusébio, Hist. Eccl. 2,15; 3,40; 4:14; 6,14).

[Fernando Saraví: O testemunho de Papias é pouco confiável em muitos aspectos que se conhecem melhor, e portanto pouco digno de crédito. Por exemplo, diz umas coisas muito pitorescas sobre o milénio e a morte de Judas. Além disso, em ambos os testemunhos, chamativamente se trata de bispos que viviam longe de Roma: um na Ásia Menor (Papias) e outro em África (Clemente)].

4. Na sua carta à igreja de Corinto (escrita entre 95 e 97), o bispo de Roma Clemente menciona os sofrimentos e o martírio de Pedro e Paulo.

[Fernando Saraví: Sim, mas por certo que Clemente não diz que o martírio destes Apóstolos tenha ocorrido em Roma. A carta de Clemente demonstra que, além do Antigo Testamento, conhecia provavelmente os Evangelhos de Mateus e Lucas, e certamente várias das cartas de Paulo, como 1 Coríntios, Romanos, Filipenses, Efésios; também Hebreus. Em contrapartida, é bastante notável e significativo que não haja nenhuma citação textual das epístolas de Pedro].

5. Inácio, bispo de Antioquia, a caminho do seu martírio em Roma escreveu por volta de 117 aos cristãos dessa cidade: "Não vos dou eu ordens como Pedro e Paulo. Eles foram Apóstolos; eu não sou mais que um condenado à morte" (4:3). Isto sugere que Pedro havia trabalhado em Roma.

[Fernando Saraví: Para a época em que escrevia Inácio, princípios do segundo século, é possível que os romanos conhecessem os ensinamentos de Pedro em forma escrita, como já a epístola de Clemente demonstra que conheciam as cartas de Paulo].

6. O bispo Dionísio de Corinto escreveu à Igreja de Roma quando Sóter era bispo ali (165-174). Eusébio comenta e cita esta carta como se segue: "Que os dois [Pedro e Paulo] sofreram martírio na mesma ocasião o afirma Dionísio, bispo de Corinto, em sua correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos: « Nisto também vós ... fundistes as plantações de Pedro e de Paulo, a dos romanos e a dos coríntios, porque depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos instruíram, e depois de ensinarem na Itália no mesmo lugar, os dois sofreram o martírio na mesma ocasião»." (Hist. Eccl. 2, 25:8).

[Fernando Saraví: De novo, é curioso que esta tradição atestada na segunda metade do século II tenha sido conservada por um bispo de Corinto e não pela própria Igreja de Roma].

7. Por volta de finais do século II Ireneu de Lyon afirma que a Igreja de Roma tinha sido "fundada e organizada" "pelos mais gloriosos Apóstolos, Pedro e Paulo" (Adv. Haer. 3:3). Pouco antes tinha escrito: "Mateus também publicou um Evangelho entre os hebreus, no seu próprio dialeto, enquanto Pedro e Paulo estavam pregando em Roma, assentando os alicerces da Igreja." (Adv. Haer. 3:1.1).

[Fernando Saraví: Ireneu obviamente estava enganado, como o reconhecem muitos autores católicos. Paulo certamente não fundou essa igreja, e Pedro dificilmente esteve em Roma antes de 60; ver mais abaixo; além disso, o que diz sobre Mateus, baseado em Papias, é quase seguramente erróneo].

8. Pela mesma época Tertuliano de Cartago, em seus escritos contra os hereges, se refere à Igreja de Roma como aquela "pela qual os Apóstolos derramaram todo o seu ensino com o seu sangue, onde Pedro emulou a paixão do Senhor, onde Paulo foi coroado com a morte de João" [Batista] (De Praescript. 35). O mesmo, contra Marcião apela ao testemunho dos cristãos de Roma, aos quais "Pedro e Paulo legaram o Evangelho selado com o seu sangue" (Adv. Marc 4:5). Em Scorpiace 15 menciona a crucificação de Pedro sob Nero; e em De Baptismo 5 há uma alusão a Pedro batizando no Tibre.

[Fernando Saraví: desta vez é um bispo africano quem refere estas tradições. Roma parece não ter tido conhecimento até então de tão notáveis antecedentes].

9. Eusébio também cita Caio, cristão de Roma em tempos do bispo Zeferino (198-217). Depois de notar a tradição conservada por Tertuliano, no sentido de que Paulo foi decapitado e Pedro crucificado sob Nero, diz que segundo Caio em Roma estão os restos dos Apóstolos mencionados. A citação de Caio diz: "Eu, por outro lado, posso mostrar-te os troféus dos Apóstolos, porque se queres ir ao Vaticano ou ao caminho de Ostia, encontrarás os troféus dos que fundaram esta igreja" (Hist. Eccl. 2:7).

[Fernando Saraví: se supõe que Caio se refere aos sepulcros de Pedro e Paulo, uma vez que indica os lugares tradicionais das suas sepulturas. Contudo, não é claro a que se refere com "troféus"; seria um modo muito peculiar de referir-se a um sepulcro].

10. Havia em Roma, a partir do século II, uma tábua que comemorava a morte dos Apóstolos.

[Fernando Saraví: Uma tábua de origem desconhecida, que data de quase um século depois dos supostos factos].

11. O fragmento de Muratori, uma antiga lista de livros sagrados proveniente de Roma (século II) diz acerca de Atos: "Além disso, os atos de todos os Apóstolos foram escritos num livro. Para o 'excelentíssimo Teófilo' Lucas compilou os acontecimentos individuais que ocorreram na sua presença, como o demonstra claramente ao omitir o martírio de Pedro como também a partida de Paulo da cidade [de Roma], quando viajou até Espanha." (34-39).

[Fernando Saraví: Embora Paulo tivesse intenção de viajar até Espanha (Romanos 15:24,28) não há evidência de que efetivamente o tenha feito. Além disso, não diz o lugar do martírio de Pedro, e aparentemente o dissocia do de Paulo; em resumo, este testemunho de finais do século II serve de bem pouco].

12. Os Atos apócrifos de Pedro, e de Pedro e Paulo também testemunham esta tradição.

[Fernando Saraví: os escritos apócrifos, rejeitados pelos cristãos ortodoxos, são tardios e as suas tradições pouco confiáveis, em particular no que diz respeito às suas referências históricas].

Em todo o caso, o conjunto da evidência, embora de modo algum concludente, indica que o Apóstolo Pedro morreu em Roma no tempo de Nero. Um dado negativo mas importante em relação a isto, é que embora todas as sedes importantes procurassem traçar a sua origem a algum Apóstolo, nenhuma outra Igreja antiga reclamou para si a honra de ser o sítio do martírio de Pedro.

II. A evidência de que Pedro tenha sido o primeiro bispo de Roma

Por outro lado, não existe evidência de que Pedro tenha fundado a Igreja de Roma, nem de que tenha sido o seu primeiro bispo. Já que a ser isto verdade deveria ter ocorrido não mais tarde que 64 a 67, datas prováveis do martírio de Pedro, o documento fundamental para a nossa avaliação tem que ser o Novo Testamento. Eis aqui os dados:

1. A conversão de Paulo ocorreu provavelmente entre 34 e 37. Em Gálatas 1:13-18 Paulo diz que três anos depois da sua conversão viajou até Jerusalém e permaneceu com Pedro durante 15 dias; portanto, em 37 ou 40 Pedro ainda estava em Jerusalém.

2. Em Atos 9 a 11 narra-se a atividade missionária de Pedro em Lida, Jope e Cesareia (Atos 9-11); portanto não estava por então em Roma.

3. Depois da citada digressão, Pedro voltou a Jerusalém (Atos 11:2). Em Atos 12:1-3 Lucas nos diz que por esse tempo Herodes (Agripa) fez matar o Apóstolo Tiago, irmão de João, e encarcerar vários cristãos, entre eles Pedro. A milagrosa libertação de Pedro enfureceu Herodes Agripa (Atos 12:19). Ora bem, este rei morreu pouco depois (12:23). Segundo Flávio Josefo isso ocorreu durante o quarto ano do reinado do imperador Cláudio, ou seja em 45, e Pedro ainda estava em Jerusalém.

4. Em Gálatas 2:1, Paulo diz que 14 anos depois da sua primeira visita à igreja de Jerusalém, retornou e esteve com Tiago (o irmão do Senhor), Pedro e João (2:9). Pedro ainda permanece em Jerusalém. Depois disso, Pedro retribui a visita, viajando até Antioquia (ocasião em que Paulo o repreende por judaizar); portanto se encontra ainda no Próximo Oriente, longe de Roma.

5. Pedro tem um papel destacado no chamado "Concílio de Jerusalém" registado em Atos 15, a propósito do problema dos judaizantes, que teve lugar provavelmente por volta de 48 ou 49; portanto nessas datas também não se encontrava em Roma. Depois disso, possivelmente viajou pelas províncias orientais do império com a sua esposa (1 Coríntios 9:5).

6. A carta de Paulo aos Romanos é datada entre 54 e 57. Escreve-lhes para "confirmá-los" e "anunciar-lhes o Evangelho" (1:11-15), coisa estranha se se supõe que Pedro já estava ali ensinando, sobretudo quando se recorda que Paulo não queria gloriar-se do feito por outros (2 Coríntios 10:15-16), e "edificar sobre o fundamento de outro" (Romanos 15:20). Além disso, no capítulo 16 Paulo saúda pelo nome 26 pessoas que conhecia na Igreja de Roma, mas não menciona em lado nenhum Pedro. Portanto, é razoável pensar que por volta de 57 Pedro também não estava em Roma.

7. Paulo foi feito prisioneiro e permaneceu em Roma entre 58 e 60 (ou 60 a 62), e permaneceu ali não menos de 2 anos (Atos 28:30). A partir dali escreveu Efésios, Colossenses, Filemom e Filipenses. Em nenhuma destas epístolas menciona a presença de Pedro em Roma em finais dos anos 50 ou princípios dos anos 60.

8. Depois Paulo foi libertado e visitou as igrejas do Oriente. Foi feito prisioneiro e martirizado por volta de 67. Pouco antes escreveu 2 Timóteo, onde diz expressamente, "Só Lucas está comigo", e envia saudações de vários irmãos ("Pudente, Lino, Cláudia e todos os irmãos"), mas novamente Pedro está ausente.

Diante do aqui exposto, é razoável pensar que se as tradições acerca da morte de Pedro em Roma estiverem corretas, a sua estadia e atividade deve ter sido relativamente breve, possivelmente coincidindo com a libertação transitória de Paulo (ou seja, entre 60 e 66 no máximo, antes que fosse escrito 2 Timóteo). As epístolas de Pedro datariam de aproximadamente 64. Portanto, se bem que pareça muito provável que Pedro tenha pregado e morrido em Roma, não há evidência que tenha fundado a Igreja romana, nem que tenha sido o seu primeiro bispo.

Portanto, do ponto de vista histórico a pretensão do bispo romano de ser o "sucessor de Pedro", com o primado, a infalibilidade e qualquer outra prerrogativa singular, carece por completo de fundamento sólido. Trata-se de um gigantesco edifício construído sobre areia.

Bênçãos em Cristo,
Fernando D. Saraví

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Supremacia papal nos escritos antenicenos?


A suposta "supremacia papal" antes do Concílio de Niceia

Segundo o Cardeal John Henry Newman (1801-1890), na sua obra Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã que publicou imediatamente depois de deixar a Igreja de Inglaterra e ingressar na Igreja de Roma (1845), os textos patrísticos pré-nicenos sobre a supremacia do Papa, embora escassos, são mais numerosos e precisos do que aqueles que permitem defender a presença real na eucaristia.

Esta confissão é bastante significativa vindo do Cardeal Newman, cujo domínio da patrística era assinalável. Em todo o caso, os textos antenicenos que supostamente tratam da supremacia papal (ou seja, do bispo de Roma) também não são muito prometedores para a posição romanista.

A Epístola de Clemente aos coríntios

O documento patrístico mais antigo devido a um bispo de Roma é sem dúvida a Primeira Carta aos Coríntios de Clemente, que data de finais do século I. O sábio bispo escreveu uma extensa epístola por causa de distúrbios dentro da igreja coríntia contra os seus pastores legítimos. Este documento foi muito apreciado na antiguidade, a ponto que foi um candidato a ser incluído dentro do cânon do Novo Testamento. Pode-se ler a carta de cima abaixo, detalhadamente, e não se encontrará vestígios de nenhuma consciência de supremacia; simplesmente, o desejo fervoroso de um santo bispo de que se restabelecesse a paz na turbulenta igreja coríntia. Clemente ensina, admoesta, exorta; o que nunca faz é ordenar nem apelar à sua investidura como argumento.

Ireneu dá Roma como exemplo, mas nada diz da supremacia do seu bispo

O ilustre bispo susteve contra os hereges do seu tempo que a Igreja universal (católica) de Cristo expressa em todas as congregações locais dispersas pelo mundo, cumpriam fielmente a sua missão de ser "coluna e fundamento da verdade" ao preservar, proclamar e transmitir a autêntica tradição dos Apóstolos, com maior ou menor eloquência mas com uma mesma fidelidade. Diz Ireneu:

"Está portanto dentro da capacidade de todos os que queiram ver a verdade, contemplar claramente em toda a Igreja a tradição dos Apóstolos manifestada no mundo inteiro; e estamos em posição de reconhecer aqueles que pelos apóstolos foram constituídos bispos nas Igrejas, e a sucessão destes homens até aos nossos tempos; aqueles que nem ensinaram nem conheceram nada como os desvarios destes [os hereges]. Pois se os Apóstolos tivessem conhecido mistérios ocultos, os quais costumavam dar aos "perfeitos" privada e separadamente do resto, eles os entregariam especialmente àqueles a quem estavam confiando as próprias Igrejas. Pois eles [os Apóstolos] estavam desejosos de que estes homens fossem perfeitíssimos e irrepreensíveis em tudo, aqueles que deixaram após si como seus sucessores, entregando o seu próprio lugar de governo a estes homens; os quais, se cumprissem as suas funções honestamente, seriam um benefício, mas se apostatassem, a pior calamidade.

Uma vez que seria muito entediante num volume como este enumerar as sucessões em todas as igrejas, indicamos a tradição derivada dos apóstolos e a fé proclamada aos homens, transmitida até aos nossos dias por meio das sucessões de bispos, como se sustenta na grande, antiga e universalmente renomada igreja que foi estabelecida em Roma pelos dois mais gloriosos apóstolos Pedro e Paulo. Deste modo confundimos todos aqueles que de qualquer forma sustentam reuniões não autorizadas por malvada autodeterminação ou vanglória ou cegueira e erróneo juízo. Com esta igreja, por causa da sua superior autoridade, toda a igreja deve concordar – isto é, os fiéis em todos os lugares, toda a igreja na qual a tradição apostólica foi preservada pelos fiéis em todos os lugares" [Adv Haer III, 3:1-2].

Dever-se-á notar aqui que não há ponta de evidência no Novo Testamento de que a Igreja de Roma tenha sido fundada por Pedro ou por Paulo, porém o argumento é válido. Ireneu, que provinha da Ásia Menor e era bispo de Lyon, tomou a Igreja de Roma, de antiguidade e prestígio indiscutíveis, como o paradigma de uma congregação fiel à doutrina dos Apóstolos, como por outro lado o eram todas as demais Igrejas dispersas pelo Império.

Note-se que não há apelação a alguma autoridade única e suprema do bispo de Roma. Já antes na mesma obra, Ireneu tinha esgrimido essencialmente o mesmo argumento acerca da ortodoxia da igreja universal ou católica:

"A Igreja, apesar de dispersa por todo o mundo, até aos confins da terra, recebeu dos apóstolos e dos seus discípulos esta fé: num Deus, o Pai Omnipotente, Fazedor do céu, e da terra, e do mar, e de todas as coisas que neles há; e num Cristo Jesus, o Filho de Deus, que encarnou para nossa salvação; e no Espírito Santo, que proclamou através dos profetas as dispensações de Deus, e as vindas, e o nascimento de uma virgem, e a paixão, e a ressurreição dentre os mortos, e a ascensão na carne aos céus do amadíssimo Cristo Jesus, nosso Senhor, e a sua manifestação desde o céu na glória do Pai, "para reunir todas as coisas numa" e para ressuscitar toda a carne da raça humana inteira, de forma que perante Cristo Jesus, nosso Senhor, e Deus, e Salvador, e Rei, segundo a vontade do Pai invisível, "todo o joelho se dobre, das coisas no céu, e das coisas na terra e das coisas debaixo da terra, e toda a língua o confesse" a Ele, e que Ele execute o justo juízo de todos; que Ele possa enviar as impiedades espirituais e os anjos que prevaricaram e se tornaram apóstatas, juntamente com os ímpios, e injustos, e malvados, e profanos de entre os homens, para o fogo eterno; mas possa, em exercício da sua graça, conferir imortalidade aos justos, e santos, e àqueles que guardaram os seus mandamentos, e perseveraram no seu amor, alguns desde o princípio e outros desde o seu arrependimento, e possa rodeá-los com sempiterna glória.

Como já observei, a Igreja, tendo recebido esta pregação e esta fé, apesar de dispersa pelo mundo inteiro, mesmo assim, como se não ocupasse senão uma casa, a preserva cuidadosamente. Ela também crê estes pontos exatamente como se possuísse uma só alma, e um e idêntico coração, e ela os proclama, e os ensina, e os transmite, com perfeita harmonia, como se possuísse uma só boca. Pois ainda que as linguagens do mundo sejam distintas, o conteúdo da tradição é um só e idêntico. Pois as igrejas que foram plantadas na Germânia não creem nem transmitem nada diferente, nem aquelas de Espanha, nem aquelas nas Gálias, nem aquelas do Oriente, nem aquelas do Egito, nem aquelas na Líbia, nem aquelas que foram estabelecidas nas regiões centrais do mundo. Mas como o sol, essa criatura de Deus, é um só em todo o mundo, assim também a pregação da verdade resplandece em todos os lugares, e ilumina todos os homens que estão dispostos a vir a um conhecimento da verdade. Nem nenhum dos governantes das Igrejas, sem importar quão dotado possa ser no tocante à eloquência, ensina doutrinas diferentes destas (pois ninguém é maior do que o Mestre); nem, por outro lado, quem seja deficiente em poder de expressão infligirá dano à tradição. Pois sendo sempre a fé uma só, nem alguém que é capaz de dissertar sobre ela lhe fará adição alguma, nem a diminuirá quem possa dizer pouco" [Adv Haer I, 10, 1-2].

Aqui é interessante observar o resumo que Ireneu formula da fé apostólica e católica; coisas todas elas que se ensinam claramente nas Escrituras e que são cridas hoje nas Igrejas evangélicas. Em outro lado apresenta também uma espécie de credo, e depois continua com uma exposição do ensino cristão baseado nas Escrituras [Adv Haer III, 4, 2ss]. Por último, Ireneu não se cansa de afirmar que é nas Igrejas cristãs, estabelecidas pelos Apóstolos e por aqueles que lhes sucederam no pastorado, onde se achará a exposição fiel da doutrina apostólica que se encontra nas Escrituras.

"O verdadeiro conhecimento é a doutrina dos Apóstolos, e a antiga constituição da Igreja em todo o mundo, e a manifestação distinta do Corpo de Cristo conforme as sucessões dos bispos, pelas quais eles transmitiram aquela Igreja que existe em todos os lugares, e chegou até nós, sendo guardada e preservada sem nenhuma falsificação de Escrituras, por um sistema muito completo de doutrina, e sem receber adição nem subtração; e a leitura [da Palavra] sem falsificação, e uma exposição lícita e diligente em harmonia com as Escrituras, sem perigo nem blasfémia, e o preeminente carisma do amor, o qual é mais precioso do que o conhecimento, mais glorioso do que a profecia, e que excede todos os outros dons" [Adv Haer IV, 33,8].

Ora, o que Ireneu dizia no século II não é sustentável depois dos cismas do Oriente e Ocidente, pelo menos não no sentido que o nobre bispo lhe deu. Para além disso, as igrejas evangélicas acreditam nas coisas que segundo Santo Ireneu eram o núcleo da fé sustentada em todos os lugares.

A controvérsia pascal do século II e como o bispo de Roma teve que reconsiderar

O testemunho de Ireneu acerca da Igreja de Roma pode entender-se melhor à luz desta controvérsia e do papel que coube ao bispo de Lyon em restaurar a paz.

No Livro V, Capítulos 23 ao 25, da sua História Eclesiástica, Eusébio de Cesareia apresenta um relato da controvérsia pascal, por causa das diferenças entre a forma de observar a Páscoa dos bispos asiáticos e outros, incluído o de Roma, Vítor. O asiático Polícrates escreveu a Vítor:

"Nós, pois, celebramos intacto este dia, sem acrescentar nem tirar nada. Porque também na Ásia repousam grandes luminárias ... Felipe ... João, o que se recostou sobre o peito do Senhor ...repousa em Éfeso. E em Esmirna, Policarpo, bispo e mártir. E Traseas, também ele bispo e mártir ... repousa em Esmirna. E é preciso falar de Sagaris, bispo e mártir, que descansa em Laodiceia, assim como do bem-aventurado Papírio e de Melitão, o eunuco, que ... repousa em Sardes esperando a visita que vem dos céus no dia em que ressuscitará dentre os mortos? Todos estes celebraram como dia da Páscoa o da décima quarta lua, conforme o Evangelho, e não transgrediam, mas seguiam a regra da fé.

E eu mesmo, Polícrates, o menor de todos vós, [sigo] a tradição de meus parentes ... Sete parentes meus foram bispos, e eu sou o oitavo... Portanto, irmãos, eu, com os meus sessenta e cinco anos no Senhor, que conversei com irmãos procedentes de todo o mundo e que recorri toda a Sagrada Escritura, não me assusto com os que tratam de impressionar-me, pois os que são maiores do que eu disseram: Importa mais obedecer a Deus do que aos homens... Poderia mencionar os bispos que estão comigo, que vós me pedistes que convidasse e que eu convidei. Se escrevesse os seus nomes, seria demasiado grande o seu número. Eles, mesmo conhecendo a minha pequenez, deram o seu comum assentimento à minha carta, sabendo que não é em vão que trago os meus cabelos brancos, mas que sempre vivi em Cristo Jesus".

Eusébio diz que em resposta Vítor, bispo de Roma, "tentou separar em massa da união comum todas as comunidades da Ásia e as igrejas limítrofes, alegando que eram heterodoxas, e publicou a condenação por meio de cartas proclamando que todos os irmãos daquela região, sem exceção, estavam excomungados. Mas esta medida não agradou aos bispos, que por sua parte exortavam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que repreendem Vítor com bastante energia".

Uma de tais enérgicas cartas foi escrita por Ireneu, bispo de Lyon, admirador da Igreja de Roma (ver mais acima) e partidário da posição de Vítor quanto à celebração pascal mas não do seu procedimento contra os asiáticos. Eis aqui o que cita Eusébio:

"Efetivamente, a controvérsia não é somente sobre o dia, mas também sobre a própria forma do jejum, porque uns pensam que devem jejuar durante um dia, outros que dois e outros que mais; e outros dão a seu dia uma medida de quarenta horas do dia e da noite. E uma tal diversidade de observantes não se produziu agora, em nossos tempos, mas já muito antes, sob nossos predecessores, cujo forte, segundo parece, não era a exatidão, e que forjaram para a posteridade o costume em sua simplicidade e particularidade. E todos eles nem por isso viveram menos em paz uns com os outros, tanto quanto nós; o desacordo quanto ao jejum confirma o acordo quanto à fé. ... Entre eles, também os presbíteros antecessores de Sotero, que presidiram a igreja que tu reges agora, quero dizer Aniceto, Pio e Higino, assim como Telésforo e Sisto: nem eles mesmos observaram o dia nem permitiam aos que estavam com eles escolher, e nem por isso eles mesmos, que não observavam o dia, viviam menos em paz com os que procediam das igrejas em que se observava o dia... E nunca se rechaçou ninguém por causa desta forma, antes, os próprios presbíteros, teus antecessores, que não observavam o dia, enviavam a Eucaristia [em sinal de comunhão] aos de outras igrejas que o observavam. E encontrando-se em Roma o bem-aventurado Policarpo nos tempos de Aniceto, surgiram entre os dois pequenas divergências, mas em seguida estavam em paz, sem que sobre este capítulo se querelassem mutuamente, porque nem Aniceto podia convencer Policarpo a não observar o dia – como sempre o havia observado, com João, discípulo de nosso Senhor, e com os demais apóstolos com quem conviveu -, nem tampouco Policarpo convenceu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que devia manter o costume dos presbíteros seus antecessores. E apesar de estarem assim as coisas, mutuamente comunicavam entre si, e na Igreja Aniceto cedeu a Policarpo a celebração da eucaristia, evidentemente por deferência, e em paz se separaram um do outro; e toda a Igreja tinha paz, tanto os que observavam o dia como os que não o observavam".

(Citações da edição preparada por Argimiro Velasco Delgado; Madrid: BAC, 1973).

Cipriano de Cartago

Diversos textos do bispo de Cartago citam-se como supostos testemunhos do século III a favor da supremacia papal; por exemplo, a sua declaração na Epístola 54 a Cornélio acerca de certos hereges:

"Depois de tais coisas como estas, ainda se atrevem – tendo sido nomeado para eles um falso bispo pelos hereges - a embarcar e levar cartas de pessoas cismáticas e profanas ao trono de Pedro, e à Igreja principal onde a unidade sacerdotal tem a sua fonte; e a não considerar que estes foram os romanos cuja fé foi louvada na pregação pelo Apóstolo, aos quais a falta de fé não podia aceder".

Elogiosas palavras que, se forem tomadas fora do contexto, parecem dizer mais do que São Cipriano quis. Com efeito, o bispo e mártir continua dizendo:

"Mas qual foi a razão da sua vinda e anúncio da feitura do pseudobispo em oposição aos bispos? Porque eles ora estão satisfeitos de como fizeram as coisas, e persistem na sua impiedade; ou, se estão descontentes e se retratam, sabem para onde podem voltar. Porque, como foi decretado por todos nós – e é igualmente equânime e justo - que o caso de cada um seja ouvido ali onde o delito foi cometido; e uma porção do rebanho foi confiada a cada pastor individual, a qual ele deve dirigir e governar, devendo dar conta dos seus atos ao Senhor; certamente não corresponde àqueles sobre quem estamos o correr por aí nem quebrantar a unidade dos bispos com a sua artificiosa e enganosa precipitação, mas o apresentar a sua causa ali onde eles podem ter tanto os acusadores como as testemunhas do seu crime; a menos que porventura pareça demasiado pouco a uns poucos homens abandonados e desesperados a autoridade dos bispos de África, que já os julgaram e finalmente condenaram, pela gravidade do seu juízo, estando a consciência daqueles atada em muitas ligaduras de pecado. O seu caso já foi examinado, a sua sentença já foi pronunciada; nem convém à dignidade dos sacerdotes ser culpados pela leveza de uma mente mutável e inconstante, quando o Senhor ensina e diz, "Que o teu sim seja sim, e que o teu não seja não".

Em outras palavras, depois dos seus elogios São Cipriano diz muito claramente que o caso destes hereges não deve ser julgado por Roma, já que isso é, de comum acordo entre os bispos (e não por algum dictum papal) prerrogativa dos bispos em cuja sede foi cometido o delito.

Os bispos africanos retificam um erro do bispo de Roma

E que este e não outro é o sentido das suas palavras não somente se depreende do contexto, fica claramente demonstrado em primeiro lugar por um incidente a propósito da destituição de dois bispos ibéricos. Os bispos depostos apelaram a Estêvão e obtiveram deste o apoio para a sua restauração. No entanto, aqueles que tinham deposto os bispos apelaram a Cipriano e aos bispos africanos, que ratificaram a condenação dos bispos depostos. Este último critério foi o que prevaleceu, e não o do bispo romano Estêvão:

"Consequentemente alguns dos seus companheiros bispos se puseram do seu lado, mas os outros levaram o caso perante São Cipriano. Uma assembleia de bispos africanos convocada por ele renovou a condenação de Basílides e Marcial, e exortou o povo a entrar em comunhão com os sucessores deles. Ao mesmo tempo, [os bispos africanos] se esmeraram em assinalar que Estêvão tinha agido como o tinha feito porque «situado à distância, e ignorante dos verdadeiros factos do caso» tinha sido enganado por Basílides."

Horace K. Mann, Pope St. Stephen I (Catholic Encyclopedia, vol. XIV)

Em bom português, com toda a delicadeza os africanos "desculparam" Estêvão por ter sido vítima de um engano por causa da sua ignorância da verdadeira situação.

A controvérsia batismal

Em segundo lugar, pela atitude que Cipriano e os demais bispos africanos, além do mais célebre bispo da Ásia, Firmiliano, adotaram quando Estêvão, o bispo de Roma, quis impor a sua opinião acerca do batismo dos hereges. Se era Estêvão ou Cipriano quem tinha razão não é relevante; o facto é que a autoridade do bispo de Roma não era tida por inquestionável, nem pouco mais ou menos, pelo resto dos bispos.

Eis aqui o que diz Cipriano:

"... já que quiseste que o que Estêvão, nosso irmão, respondeu às minhas cartas, fosse posto em teu conhecimento, enviei-te uma cópia da sua resposta; ao ler a qual observarás mais e mais o seu erro em esforçar-se por sustentar a causa dos hereges contra os cristãos, e contra a Igreja de Deus... Ele proibiu que alguém que proviesse de qualquer heresia fosse batizado na Igreja; ou seja, julgou o batismo de todos os hereges como justo e legítimo... E insistiu em que nada se inovasse ...; como se fosse um inovador quem, mantendo a unidade, defende para a única Igreja um único batismo; e não manifestamente o fosse quem, esquecendo a unidade, adota as mentiras e o contágio de uma lavagem profana... De onde é esta tradição? Até que ponto descende da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou dos mandamentos e epístolas dos apóstolos? ... De modo que ninguém deve difamar os apóstolos como se eles tivessem aprovado o batismo dos hereges, ou tivessem tido comunhão com eles sem o batismo da Igreja, quando eles, os apóstolos, escreveram semelhantes coisas dos hereges... que obstinação é, ou que arrogância, preferir a tradição humana à ordenança divina, e não observar que Deus fica indignado e furioso todas as vezes que a tradição humana relaxa e substitui os preceitos divinos [cita Isaías 29:13; Marcos 7:13; 1 Ti 6:3-5].

Certamente uma excelente e legítima tradição é disposta diante de nós por nosso irmão Estêvão, a qual pode conceder-nos uma adequada autoridade! Pois no mesmo lugar da sua epístola ele acrescentou e continuou: 'Já que aqueles que são especialmente heréticos não batizam os que vêm a eles de uns para outros, mas os recebem em comunhão'. A este ponto de maldade chegou a Igreja de Deus e Esposa de Cristo, que segue os exemplos dos hereges; que com o propósito de celebrar os sacramentos celestiais, a luz deva obter a sua disciplina das trevas, e os cristãos devam fazer o que fazem os anticristos. Mas o que é esta cegueira da alma, o que é esta degradação da fé, a de recusar-se a reconhecer a unidade que provém de Deus Pai, e da tradição de Jesus Cristo o Senhor e nosso Deus!?

... Mas como nenhuma heresia, e igualmente nenhum cisma, estando fora [da Igreja] pode ter a santificação do batismo que salva, por que é que a amarga obstinação de nosso irmão Estêvão irrompeu até ao ponto de sustentar que nascem filhos de Deus do batismo de Marcião, ou até mesmo, de Valentino e Apeles, e de outros que blasfemam contra Deus o Pai; e de dizer que a remissão dos pecados é concedida no nome de Jesus Cristo onde se vociferam blasfémias contra o Pai e contra Cristo, o Senhor Deus?" [Ep. 73 a Pompeu]

Por seu lado Firmiliano, bispo de Cesareia da Capadócia, concorda de todo o coração com o africano, compara Estêvão com Judas, e afirma como coisa sabida de todos que a Igreja de Roma não mantém em tudo as tradições originais:

"Exceto que podemos neste assunto agradecer a Estêvão, que foi agora através da sua descortesia que recebemos a prova da tua fé e sabedoria. Mas ainda que tenhamos recebido o favor deste beneficio por causa de Estêvão, certamente Estêvão nada fez que mereça amabilidade e agradecimento. Pois Judas também não pode considerar-se digno por sua perfídia e traição com a qual impiamente procedeu em relação ao Salvador, como se ele tivesse sido a causa de tão grandes vantagens, que através dele o mundo e os gentios fossem libertados pela paixão do Senhor.

Mas deixemos de momento estas coisas que foram feitas por Estêvão, não seja que recordando a sua audácia e orgulho tragamos uma tristeza mais duradoura sobre nós por causa das coisas que impiamente fez. E sabendo, em relação a ti, que tu concluíste o assunto... demos graças a Deus por encontrarmos em irmãos tão distantes tal unanimidade de fé e verdade.

E certamente, em relação ao que Estêvão disse, como se os apóstolos proibissem que fossem batizados os que vêm da heresia, e tivessem entregue isto também para ser observado pelos seus sucessores, tu respondeste abundantissimamente, que ninguém é tão tolo para crer que os apóstolos transmitiram isto, quando é bem sabido que estas mesmas heresias, execráveis e detestáveis como são, surgiram posteriormente...

Mas que os que estão em Roma não observam em todos os casos aquelas coisas que foram transmitidas desde o princípio, e vãmente pretendem a autoridade dos apóstolos; qualquer um pode sabê-lo também do facto que, em relação à celebração da Páscoa, e em relação a muitos outros sacramentos de assuntos divinos, pode ver que há algumas diferenças entre eles, e que nem todas as coisas são observadas igualmente entre eles, como são observadas em Jerusalém, do mesmo modo que em muitas outras províncias também muitas coisas são variadas devido à diferença dos lugares e nomes. E no entanto, nem por isso há separação da paz e da unidade da Igreja Católica, como a que Estêvão se atreveu agora a realizar; quebrantando a paz contra vós, a qual os seus predecessores mantiveram sempre convosco em mútuo amor e honra, até difamando, com isto, os benditos apóstolos Pedro e Paulo, como se os mesmos homens que nas suas epístolas execraram os hereges, e nos advertiram que nos apartássemos deles, tivessem transmitido isto. Daí que é uma tradição humana a que defende os hereges, e afirma que eles têm um batismo, que pertence somente à Igreja." [Ep. 74, de Firmiliano a Cipriano (256)].

De modo que, na Igreja Católica antiga, o bispo de Roma tinha sem dúvida um lugar preeminente, mas de modo algum estava por cima de todos, e em mais de uma ocasião teve que ser posto no seu lugar pelos seus colegas.

Finalmente, deve realçar-se que com exceção de Clemente, numa única carta autêntica, os bispos de Roma não tiveram um papel destacado como mestres da cristandade nos primeiros séculos. Distinguem-se os asiáticos e os africanos; mas dentre os que escreveram em Roma, nenhum foi bispo de tal cidade (na verdade, Hipólito foi transitoriamente "antipapa").

Fernando D. Saraví
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