quinta-feira, 22 de abril de 2010

A formação do cânon do Novo Testamento

por Fernando D. Saraví


1. Resumo
2. Introdução
3. Nos inícios do cristianismo
4. O nosso Novo Testamento
5. Testemunho de Paulo e Pedro
6. Os Padres Apostólicos
7. Progresso para a determinação do cânon no século II
7.1  Os apologistas gregos
7.2  O desafio das heresias
7.3  A Igreja responde aos hereges
8. Aproximação a um consenso no século III
8.1  Tertuliano apela a argumentos legais
8.2  A ameaça do montanismo
8.3  Orígenes é a autoridade dominante no século III
8.4  Cipriano brilha em Cartago
9. Alcança-se virtual unanimidade no século IV
9.1  Eusébio resume a situação sobre o cânon
9.2  Atanásio dá a primeira lista completa e exclusiva
9.3  Jerónimo e Agostinho
10. A Reforma Protestante e o Concílio de Trento
10.1  A posição de Lutero
10.2  O Concílio de Trento ratifica o Novo Testamento
11. Apêndice: Os apócrifos do Novo Testamento
12. Bibliografia
12.1  Fontes
12.2  Estudos e obras de referência

                     __________________________________________________________


1. Resumo

O cânon do Novo Testamento é o conjunto exclusivo de livros escritos pelos Apóstolos de Jesus Cristo e seus colaboradores imediatos, que as igrejas cristãs reconheceram historicamente como possuidores de uma autoridade suprema em questões de doutrina e prática, proveniente do facto de terem sido inspirados por Deus de maneira singular.

Embora o cânon tenha ficado na realidade completo no próprio momento em que se terminou de escrever o último livro que o compõe, o reconhecimento definitivo do cânon por parte da Igreja universal foi um processo que precisou de vários séculos.

O reconhecimento e a delimitação do cânon do Novo Testamento não foi o resultado da decisão de uma autoridade única nem de uma decisão conciliar. Alguns fatores que influíram na delimitação cada vez mais precisa do cânon foram o desaparecimento dos Apóstolos, a correspondência verificada entre a doutrina recebida oralmente e o conteúdo dos livros que seriam canónicos, o surgimento de heresias que pretendiam tirar ou acrescentar livros, e as perseguições nas quais se pretendia obrigar os cristãos a entregar os seus livros sagrados.

Em princípios do século II já era admitida de forma geral a autoridade dos quatro Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, assim como das cartas do Apóstolo Paulo às igrejas. Antes de terminar tal século, os Atos, as cartas de Paulo a Timóteo, Tito e Filemom e as primeiras cartas de Pedro e João faziam parte da coleção.

As epístolas 2 e 3 João, Judas, Tiago e 2 Pedro demoraram mais em ser reconhecidas geralmente, em parte pela sua brevidade e em parte pela sua circulação limitada geograficamente. A epístola aos Hebreus encontrou certa resistência, ao passo que Apocalipse era geralmente admitido pelos ocidentais mas – em parte pela ameaça do montanismo – era visto com receio no Oriente. Em contrapartida, certos livros que não fazem parte do cânon – como a carta de Clemente aos coríntios, a Didaquê e O Pastor – eram considerados de autoridade apostólica em algumas regiões.

Desde meados do século II começa a formar-se um amplo e heterogéneo corpo de literatura hoje conhecido como os livros "apócrifos do Novo Testamento". Embora a maioria deles afirmasse ter autoridade apostólica, pela sua própria natureza, origem sectária e conteúdo fantasioso ou herético, nunca foram candidatos sérios para a sua inclusão entre as Escrituras da antiga Igreja universal.

Embora durante o século III não tenha havido grandes avanços, observa-se um avanço para um consenso geral, especialmente devido à influência do grande biblista Orígenes. No século IV, o bispo Atanásio de Alexandria proporciona a primeira lista conhecida contendo exclusivamente os 27 livros do nosso Novo Testamento. Este cânon foi adotado e ratificado mais tarde por Jerónimo e Agostinho, por concílios regionais e diversas sedes episcopais.

No Ocidente a questão do cânon foi reformulada no século XVI, na época anterior e posterior à Reforma protestante. No entanto, apesar de algumas hesitações de Martinho Lutero, os reformadores admitiram a cânon histórico e, no Concílio de Trento, os católicos fizeram o mesmo.  

2. Introdução

O vocábulo grego kanon significa "vara" ou "cana", e por extensão regra ou instrumento de medida. Em sentido figurado, "norma", "modelo" ou "princípio". Aplicado às Sagradas Escrituras, refere-se ao seu caráter de "regra da fé". As Escrituras canónicas são aquelas reconhecidas como inspiradas por Deus e portanto normativas para os cristãos. O cânon da Bíblia é o conjunto dos livros reconhecidos como normativos pelas igrejas, possuidores de uma autoridade única e vinculante para todos os cristãos.

Ridderbos observa que, ao reconhecer este cânon, a Igreja agiu conforme à autoridade que o próprio Cristo concedeu aos seus primeiros discípulos, os apóstolos, e que pela sua própria natureza singular como testemunhas do Senhor, a tarefa deles foi única, insubstituível e irrepetível. O seu trabalho cristalizou definitivamente na sua forma escrita: 

Tal cânon só pode ser permanente se for fixado escrituralmente. Nos começos não existia diferença alguma entre a tradição oral e a escrita (2 Tessalonicenses 2:15). A fixação do cânon tem então um caráter temporal e qualitativo: limita-se ao que leva o selo do poder especial que Cristo conferiu aos apóstolos mas que não se tinha concretizado ainda numa limitação da quantidade de escritos. Um círculo amplo teve que estreitar-se para que a tradição fosse preservada de excessos devido a erros e lendas (...) a igreja diferenciou desde o princípio entre o que sim e o que não pertencia à tradição [apostólica] e finalmente optou unicamente por um cânon escrito limitado.

(Herman Ridderbos, História da salvação e Santa Escritura. A autoridade do Novo Testamento. Tradução de Juan L. van der Velde. Buenos Aires: Editorial Escaton, 1973, p. 54-55). 

Não obstante, como veremos, o reconhecimento do cânon não foi um acontecimento instantâneo, produto da decisão de uma autoridade centralizada, nem tampouco de um consenso formal como o proveniente de uma decisão conciliar. 

 3. Nos inícios do cristianismo

A Bíblia cristã consta de duas grandes partes, chamadas Antigo Testamento e Novo Testamento. O conjunto dos livros que compõem o Antigo Testamento foi escrito ao longo de várias centúrias e concluído séculos antes do tempo de Jesus. A evidência disponível indica que a existência de um corpo de Escrituras hebraicas normativas, ou cânon do Antigo Testamento, era geralmente reconhecido pelos judeus no tempo de Jesus.

A Bíblia que Jesus Cristo citou, e a dos seus primeiros discípulos, era precisamente o que hoje chamamos "Antigo Testamento". Convém insistir em que tanto Jesus e os seus discípulos, como os seus interlocutores hebreus, tinham uma clara noção de quais eram os livros tidos por Escritura sagrada, sem necessidade de pronunciamentos oficiais sobre a extensão do cânon do Antigo Testamento. Não obstante, para os cristãos o texto do Antigo Testamento resultava intrinsecamente incompleto sem a sua culminação na revelação de Deus em Cristo, sua vida, obra e ressurreição.

O ensino de Jesus foi, até onde sabemos, exclusivamente por via da palavra falada e do exemplo. Durante 15 ou 20 anos depois da morte e ressurreição de Jesus Cristo, os seus discípulos pregaram o evangelho da mesma forma. Diversas circunstâncias levaram os apóstolos e alguns dos seus colaboradores a pôr por escrito os ensinos do mestre.

Primeiro, a ampla região coberta por Paulo durante as suas viagens missionárias fez que tivesse que comunicar-se por escrito com algumas das congregações que tinham problemas ou expunham dúvidas. Os primeiros livros do Novo Testamento a escrever-se foram provavelmente as epístolas aos gálatas e a primeira aos tessalonicenses. Outras epístolas, como as dirigidas por Paulo aos romanos e aos efésios, foram motivadas pelo desejo de expor com clareza as crenças e práticas cristãs.

Segundo, a necessidade de fornecer registos dos feitos e ditos de Jesus levou à composição dos Evangelhos, começando pelo de Marcos, cujo conteúdo se vincula tradicionalmente com o ensino oral do Apóstolo Pedro.

4. O nosso Novo Testamento

Na Tabela 1 apresenta-se uma lista de livros do Novo Testamento, segundo o seu género literário e na ordem em que aparecem nas Bíblias modernas. Note-se que os Atos e o Apocalipse são únicos no seu género.

Os mais antigos documentos do Novo Testamento são ao que parece as cartas de Paulo, aos gálatas e a primeira aos tessalonicenses (embora a epístola de Tiago possa disputar essa primazia), as quais são datadas antes do ano 50. Antes de sofrer o martírio em 67, Paulo continuou a escrever cartas: a segunda aos tessalonicenses, as cartas aos coríntios, romanos, filipenses, efésios, colossenses; e quatro cartas chamadas Pastorais, a cristãos individuais, a saber, duas a Timóteo, uma a Tito e outra a Filemom.  

O Evangelho de Marcos foi escrito em 65, umas três décadas depois da ascensão de Cristo. A este livro se seguiram os Evangelhos de Mateus e Lucas, que contêm quase todo o material presente em Marcos, mais outro de uma possível fonte tradicional compartilhada, talvez escrita, que não se conservou.


Tabela 1: O cânon do Novo Testamento
Evangelhos
Actos
Epístolas
Apocalipse
Mateus
Marcos
Lucas
João
Atos dos Apóstolos
De Paulo
Romanos
1 Coríntios
2 Coríntios
Gálatas
Efésios
Filipenses
Colossenses
1 Tessalonicenses
2 Tessalonicenses
1 Timóteo
2 Timóteo
Tito
Filemom
Católicas
Hebreus
Tiago
1 Pedro
2 Pedro
1 João
2 João
3 João
Judas
Apocalipse de João

Além disso, tanto Mateus como Lucas aportaram ditos e feitos que não aparecem em Marcos nem na suposta fonte comum. É provável que Mateus e Lucas se tenham completado antes do ano 67.  Na realidade, Lucas escreveu uma obra em duas partes: a primeira é o Evangelho e a segunda o livro dos Atos dos Apóstolos, que finaliza com Paulo pregando em Roma, e não menciona a morte deste Apóstolo nem a de Pedro, ocorrida no tempo de Nero.

Outros escritos do Novo Testamento, como as epístolas de Pedro e a carta aos Hebreus, provavelmente datam da mesma época. O Evangelho de João, as cartas atribuídas a este apóstolo e o Apocalipse se teriam escrito em finais do mesmo século I.

Em resumo, todo o Novo Testamento foi escrito num intervalo de aproximadamente cinco décadas, quando ainda existiam testemunhas presenciais dos ditos e feitos de Jesus de Nazaré. Os que supõem que o intervalo decorrido entre o tempo de Jesus e a redação do Novo Testamento foi excessivo e levou a uma falta de fidelidade histórica nestas epístolas e relatos esquecem dois factos importantes.

Em primeiro lugar, que durante todo esse período, a memória dos ditos e feitos do Senhor se conservou viva nas congregações cristãs em todo o império, onde tinham sido propagados pelos Apóstolos e seus discípulos, e entesourados pelos crentes.

Em segundo lugar, que as poucas décadas decorridas entre o ministério terrenal de Jesus e a redação dos livros do Novo Testamento é um intervalo muito curto, historicamente falando. Por exemplo, mesmo se hoje não se tivessem registos escritos ou eletrónicos do acontecido sobre o golpe militar que houve na Argentina em 1976, os principais factos poderiam reconstruir-se muito aproximadamente a partir de testemunhas presenciais. Esta ilustração não exclui que, como cristãos, cremos também que os autores humanos do Novo Testamento foram guiados pelo Espírito Santo tal como Jesus mesmo prometeu.

5. Testemunhos de Paulo e Pedro

A certeza sobre a natureza inspirada e, portanto, a autoridade divina dos escritos dos apóstolos e seus discípulos – a par daqueles do Antigo Testamento - aparece já em livros que haveriam de fazer parte do cânon do Novo Testamento. Em 1 Timóteo 5:18 lemos: 

Porque a Escritura diz: Não ligarás a boca ao boi que debulha. E: Digno é o obreiro do seu salário.

A primeira parte desta citação composta provém de Deuteronómio 25:4, mas a segunda são as palavras exatas do Senhor tal como aparecem no Evangelho de Lucas 10:7. Isto indica que o terceiro Evangelho já era considerado Escritura ao escrever-se 1 Timóteo.

Similarmente, na segunda epístola de Pedro, as cartas de Paulo figuram proeminentemente entre as Escrituras que os falsos mestres pretendiam deturpar: 

E considerai a paciência de nosso Senhor como salvação; como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, como também fala disto em todas as suas epístolas, nas quais há algumas coisas difíceis de entender, as quais torcem os indoutos e inconstantes (como também as outras Escrituras), para sua própria perdição (2 Pedro 3:15-16).

É claro que estas referências não constituem evidência de um cânon no sentido de uma lista fechada de livros com autoridade divina. Não obstante, sugerem fortemente que os escritos dos Apóstolos e seus colaboradores imediatos foram desde cedo considerados a par com as Escrituras do Antigo Testamento. A mesma noção se infere das obras dos denominados "Padres Apostólicos", que a seguir se reveem.

6. Os Padres Apostólicos

Com este nome se conhece hoje os autores cristãos de finais do século I e princípios do seguinte, que representam o testemunho escrito mais antigo depois do próprio Novo Testamento.  Entre eles se incluem Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Papias de Hierápolis, Policarpo de Esmirna, e os autores da Didaquê e da Epístola de Barnabé. Sobre o conjunto de autores desta era, na realidade pós-apostólica, observa Wescott: 

Os sucessores imediatos dos Apóstolos não perceberam (...) que as memórias do Senhor, e os escritos dispersos dos Seus primeiros discípulos, formariam uma segura e suficiente fonte ou prova de doutrina quando a tradição de então se tornasse pouco definida ou corrupta (...) Mas ainda assim, eles certamente tiveram um sentido indistinto de que a sua própria obra era essencialmente diferente daquela dos seus predecessores (...) Já começaram a separar os Apóstolos dos escritores do seu próprio tempo, como possuidores de um poder originador (...) Este facto é do mais significativo, pois mostra de que maneira a formação de um Novo Testamento foi um ato intuitivo do corpo cristão, não derivado de raciocínio algum, mas realizado no seu crescimento natural, como um dos primeiros resultados da sua autoconsciência.

(Brooke Foss Wescott, The Bible in the Church. 3rd Ed. London & Cambridge: Macmillan & Co., 1870, p. 87-88, negrito acrescentado).  

Na Didaquê ou "Doutrina dos Doze Apóstolos", talvez o mais antigo tratado cristão de instrução moral e litúrgica, aparecem duas citações explícitas do Evangelho de Mateus, e possíveis alusões ao Evangelho de João. Não há citações nem referências claras às epístolas de Paulo. O autor se baseia em grande medida na tradição oral, o que é compreensível num tempo quando, segundo a evidência interna, ainda existiam apóstolos e profetas itinerantes.  

Clemente de Roma foi um bispo que em 96 escreveu uma extensa carta à Igreja de Corinto, por causa de alguns distúrbios que ali se tinham produzido. Do texto se infere que Clemente considerava Escritura o Antigo Testamento. Põe as palavras de Jesus num nível de autoridade não inferior ao dos profetas, embora não as cite como Escritura. Também conhece, cita e alude às epístolas de Paulo, em particular Romanos, Gálatas, Efésios e Filipenses, como dotadas de autoridade, embora de novo, sem chamá-las Escritura. A mesma coisa ocorre com Hebreus, epístola que influiu muito em Clemente (ver especialmente 36:2-5; cf. Hebreus 1:1-3). Um sermão destinado a inculcar a santidade de vida é conhecido como a Segunda epístola de Clemente mas não pertence ao bispo romano e é datada em meados do segundo século. Mostra conhecer os Evangelhos de Mateus e Lucas, 1 Coríntios e Efésios, mas o seu uso livre destes com palavras de Jesus que não aparecem nos Evangelhos sugere a ausência de uma clara noção de canonicidade. 

Inácio de Antioquia foi um bispo que fez uma longa viagem até Roma, onde morreu como mártir sob Trajano, em 110. Durante a sua travessia, escreveu em Esmirna quatro cartas e outras três em Troas. Em apenas três ocasiões escreveu Inácio "Está escrito", e em todas elas se refere ao Antigo Testamento. Em relação ao Novo Testamento, conheceu o evangelho de Mateus e provavelmente o de João, além de várias epístolas de Paulo.

Na sua carta aos cristãos de Esmirna se refere a hereges que "não foram persuadidos nem pelas profecias, nem pela lei de Moisés, nem pelo evangelho" (5:1), embora não fique claro se por "evangelho" se refere a um ou mais dos escritos canónicos que levam tal nome. De qualquer modo, Inácio exorta os cristãos de Magnésia a pôr "todo o empenho em vos afirmardes nos decretos do Senhor e dos Apóstolos" (Magnésios XIII:1).

Noutra carta, diz que não se estima a si mesmo tanto ao ponto de pretender dar-lhes "ordens como se fora um apóstolo" (Tralianos III:3). Meztger apresenta o seguinte resumo sobre a posição deste bispo de Antioquia: 

A autoridade primária para Inácio era a pregação apostólica sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, embora não fizesse grande diferença para ele se ela era oral ou escrita. Certamente conheceu uma coleção das epístolas de Paulo, incluindo (na ordem de frequência do seu uso delas) 1 Coríntios, Efésios, Romanos, Gálatas, Filipenses, Colossenses e 1 Tessalonicenses. É provável que conhecesse os Evangelhos segundo Mateus e João, e talvez também Lucas. Não há evidência de que ele considerasse algum destes Evangelhos ou Epístolas como "Escritura".

(Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 49). 

A Epístola de Barnabé é um tratado de autor e lugar de composição desconhecidos (provavelmente escrito em 130), destinado a mostrar como o plano de salvação estabelecido no Antigo Testamento se cumpre em Cristo. Usa uma interpretação fortemente alegórica com um tom singularmente antijudaico. O seu autor reproduz uns poucos textos que aparecem no Evangelho de Mateus, entre eles Mateus 22:14, ao qual antepõe a fórmula "está escrito" (Epístola de Barnabé IV:14).

Os escritos de Papias, bispo de Hierápolis na Ásia Menor (ca. 60-130), se perderam exceto fragmentos conservados por Ireneu de Lyon e Eusébio de Cesareia. Papias amava a tradição oral e escreveu um extenso tratado com o título Exposição das sentenças do Senhor. Nos fragmentos conservados há uma defesa da autoridade dos Evangelhos de Mateus e Marcos, embora sem nenhuma ideia clara de canonicidade.

Policarpo de Esmirna, bispo e mártir (ca. 69-155), foi discípulo do Apóstolo João. Policarpo foi o destinatário de uma das cartas de Inácio e ele próprio escreveu aos cristãos filipenses uma epístola que se conservou, cuja data aproximada (entre 107 e 108) é próxima ao martírio de Inácio.

A carta de Policarpo está cheia de alusões bíblicas, das quais aproximadamente 90% procedem do Novo Testamento (Mateus, Lucas, a maioria das epístolas paulinas, Hebreus, 1 João e 1 Pedro). Embora Policarpo não lhes chame "Escritura" e só use a fórmula "está escrito" em relação a Efésios 4:26 (em XII:4) é evidente a autoridade e inclusive superioridade que estas obras têm para ele. Numa passagem estabelece uma espécie de cadeia de comando ou hierarquia de autoridade, com Cristo à cabeça, depois os Apóstolos "que nos pregaram o Evangelho" e finalmente os profetas do Antigo Testamento "que, de antemão, apregoaram a vinda de nosso Senhor" (6:3). 

Como o seu amigo e colega Inácio antes dele, Policarpo estabelece uma clara diferença entre a autoridade do seu próprio ensino e a do Apóstolo Paulo: 

Tudo isto, irmãos, que vos escrevo sobre a justiça, não o faço por próprio impulso, mas porque vós antes me incitastes a isso. Porque nem eu nem outro algum semelhante a mim pode competir com a sabedoria do bem-aventurado e glorioso Paulo, o qual, morando entre vós, na presença dos homens de então, ensinou pontual e firmemente a palavra da verdade; e ausente depois, vos escreveu cartas, com cuja leitura, se souberdes penetrar nelas, podereis edificar-vos em ordem à fé que vos foi dada. Essa fé é mãe de todos nós, na condição que a acompanhe a esperança e a preceda a caridade...

(Carta de Policarpo aos filipenses, III:1-3. Tradução de Daniel Ruiz Bueno, Padres Apostólicos. Edição bilingue completa, 4ª Edição. Madrid: BAC, 1979, p. 663; negrito acrescentado).

Em resumo, nos Padres Apostólicos se destaca com clareza a autoridade dos ensinamentos do Senhor e dos Apóstolos, e alguns destes autores usam as novas Escrituras cristãs, mas ainda não aparece de maneira definida a noção de um cânon como corpo exclusivo de escritos inspirados. Como observa Bruce: 

Estas citações não são suficientes como evidência de um cânon do Novo Testamento; elas sim mostram que a autoridade do Senhor e dos seus apóstolos era reconhecida como não inferior àquela da lei e dos profetas. A autoridade precede a canonicidade; se não se atribuísse suprema autoridade às palavras do Senhor e dos seus apóstolos, o registo escrito das suas palavras nunca teria sido canonizado.

Sugeriu-se por vezes que a substituição da tradição oral na igreja por uma coleção de escritos devia lamentar-se de certa maneira (...) Porém, numa sociedade como o mundo greco-romano, onde a escritura era o meio normal de preservar e transmitir material considerado digno de recordar, a ideia de confiar na tradição oral para o registo das obras e palavras de Jesus e dos apóstolos não seria geralmente recomendável (sem importar o que pudessem pensar Papias e alguns outros).

(F. F. Bruce, The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, p. 123).

7. Progresso para a determinação do cânon no século II

Que fizeram as congregações cristãs com as novas Escrituras, inestimáveis para elas, cujos autores elas conheciam bem? Com toda a probabilidade as conservaram zelosamente e as compartilharam umas com as outras.

É provável que na primeira metade do segundo século já circulassem os 4 Evangelhos por um lado, e as cartas de Paulo às igrejas por outro, como coleção. Pouco depois começaram a circular juntas ambas as coleções. Numa etapa posterior, os Atos e algumas das cartas chamadas católicas por não estar dirigidas a nenhuma congregação ou indivíduo em particular, formaram uma terceira divisão.

Um fator que provavelmente influiu na formação de coleções foi a transição do uso de rolos para o códice, precursor do livro moderno. O formato de rolo limitava a extensão do escrito que podia copiar-se nele. Por exemplo, pela sua extensão, o Evangelho de Lucas e a sua continuação, os Atos dos Apóstolos, precisariam cada um, de um rolo. Em contrapartida, um códice formado por páginas de papiro ou pergaminho individuais cosidas, permitia incluir volumes manuscritos muito maiores, inclusive toda a Bíblia. Adicionalmente, o formato de códice contribuiu para estabelecer a ordem tradicional dos livros.

Também durante o século II, a maioria das Igrejas admitiram Atos, 1 Pedro e 1 João como parte das Escrituras. Não obstante, alguns escritos do Novo Testamento não eram universalmente aceites ainda; concretamente as cartas mais breves de João (2 e 3 Jo), Tiago, Judas e 2 Pedro. Os ocidentais admitiam o Apocalipse mas muitos orientais não. Com Hebreus ocorria ao contrário: os orientais a aceitavam mas não os ocidentais. Por seu lado, as cartas pastorais (1 e 2 Timóteo, Tito) também não eram universalmente admitidas, e pode ser que não fossem conhecidas nalgumas igrejas.

O reconhecimento do cânon do Novo Testamento não foi um acontecimento, mas um processo, não isento de tentativa e erro. Alguns livros como O Pastor de Hermas, a Epístola de (Pseudo) Barnabé, a Didaquê, a primeira carta de Clemente aos coríntios e o Apocalipse de Pedro são algumas das obras que eram estimadas por alguns como dignas de ser contadas entre as Escrituras. Em contraste, como antes se disse, alguns livros que compõem o Novo Testamento ainda não tinham sido aceites universalmente. Por outro lado, também se gerou, a partir de meados do segundo século, um caudal de escritos de grupos cristãos marginais, que nunca foram competidores sérios para ser incluídos no cânon da Igreja universal (veja-se o Apêndice: Apócrifos do Novo Testamento).

7.1 Os apologistas gregos

No século II, vários autores – conhecidos como apologistas – redigiram obras que defenderam o cristianismo contra as injustas acusações dos pagãos. O de maior interesse em relação ao cânon é Justino Mártir (ca. 100-165). De origem palestina, se converteu ao cristianismo em 130. Ensinou primeiro em Éfeso e depois em Roma. Escreveu uma primeira Apologia dirigida ao imperador António Pio em 150, o Diálogo com Trifão o judeu pouco depois, e mais tarde uma segunda Apologia dirigida ao senado romano. Além do seu extenso uso do Antigo Testamento no Diálogo, destinado a mostrar que Cristo e a sua igreja são o cumprimento das profecias de Israel, Justino menciona as "Memórias dos apóstolos"  ou simplesmente "as Memórias" (tois genomenois). Falando da Eucaristia diz: 

E é assim que os Apóstolos nas Memórias, por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram que assim foi a eles mandado, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: Fazei isto em minha memória, este é o meu corpo. E igualmente, tomando o cálice e dando graças, disse: Este é o meu sangue, e que só a eles deu parte.

(Justino Mártir, I Apologia 66:3. Tradução de Daniel Ruiz Bueno, Padres Apologetas Griegos (s. II). 2ª Ed. Madrid: BAC, 1979, p. 257; negrito acrescentado). 

Justino cita sobretudo os Evangelhos, com maior frequência o de Mateus, depois o de Lucas; existem algumas citações de João, e obviamente considerava que o Apocalipse era um livro profético dotado de autoridade apostólica. Há algumas alusões às cartas de Paulo, mas quase nenhuma citação. Uma exceção são as palavras "se revistam da incorruptibilidade" (I Apologia 19:4; cf. 1 Coríntios 15:53).

O discípulo de Justino, Taciano o Sírio, deu testemunho da autoridade dos quatro Evangelhos canónicos ao compor o Diatessaron, termo musical que significa "harmonia de quatro". O Diatessaron compila com grande engenho os relatos dos quatro Evangelhos canónicos, seguindo basicamente o marco de referência do Evangelho de João. Praticamente não contém outro material, exceto uns poucos textos provenientes do apócrifo conhecido como Evangelho dos Hebreus. Na Síria, o uso eclesiástico do Diatessaron foi tão amplo e importante, que no século III houve resistência a substituí-lo pelos quatro Evangelhos individuais, segundo o estabelecido pelas demais igrejas.

7.2 O desafio das heresias

Um fator que influiu no estabelecimento do cânon foi a aparição de heresias que pretendiam redefinir a fé cristã. Duas das mais influentes na metade do século II foram lideradas por Marcião e Valentim.

Marcião era originário da Ásia Menor, nascido em 100 de pais cristãos. Emigrou para Roma e aí propagou as suas ideias numa obra chamada Antíteses, que pretendia estabelecer uma incompatibilidade total entre a Lei e o Evangelho. Marcião rejeitou todo o Antigo Testamento, retendo das novas Escrituras o que chamava Evangelho e Apóstolo, que correspondia somente ao Evangelho de Lucas e às Cartas de Paulo, com exceção das pastorais.  Além disso, extraiu dos escritos de Lucas e Paulo tudo quanto pudesse considerar-se favorável ao Antigo Testamento.

Valentim chegou a Roma em 135, procedente de Alexandria, e inicialmente esteve em plena comunhão com a Igreja romana. Não obstante, desenvolveu uma doutrina gnóstica incompatível com a fé apostólica. À diferença de Marcião, Valentim não rejeitou o Antigo Testamento nem os escritos apostólicos, mas os reinterpretou radicalmente mediante uma exegese alegórica. A sua obra mais importante, acessível (em copta) a partir do descobrimento da biblioteca gnóstica de Nag Hammadi em 1945, é O evangelho da verdade. O livro é uma espécie de meditação sobre a natureza do evangelho, de uma perspetiva inequivocamente gnóstica, que faz uso de escritos neotestamentários. Bruce observa que "o tratado alude a Mateus e Lucas (possivelmente com Atos), o evangelho e a primeira carta de João, as cartas paulinas (exceto as pastorais), Hebreus e Apocalipse, e (...) os cita em termos que pressupõem que têm autoridade."  

A igreja antiga reconheceu de imediato os empreendimentos de Valentim e Marcião como as inovações que eram, o primeiro principalmente pelas suas doutrinas alheias às crenças e práticas básicas das igrejas apostólicas e o segundo pela sua tentativa radical de fixar um cânon extremamente restrito.

7.3 A Igreja responde aos hereges

A resposta da igreja católica antiga à heresia marcionita foi reafirmar a autoridade do Antigo Testamento, dos quatro Evangelhos, das epístolas pastorais de Paulo, das epístolas atribuídas a outros apóstolos, denominadas católicas, e do livro dos Atos.

Um texto que exemplifica a referida resposta é o denominado Cânon de Muratori, uma lista "em latim bárbaro" com comentários sobre os livros aceites e rejeitados, que foi publicada por Ludovico Antonio Muratori em 1740. O original dataria da década entre 160 e 170. Segundo Bruce, este documento deve considerar-se "uma lista de livros do Novo Testamento reconhecidos como possuidores de autoridade na Igreja de Roma daquele tempo".

O fragmento que se conservou começa com uma frase referente ao Evangelho de Marcos, depois do qual fala de Lucas como o terceiro Evangelho, e de João como o quarto (seguramente Mateus era o primeiro). A seguir reconhece os Atos "de todos os apóstolos", as dez cartas de Paulo às igrejas, e as Pastorais. Menciona também as cartas de Judas e duas de João mais o Apocalipse. Em contrapartida, rejeita O Pastor de Hermas, pois foi "escrito em Roma muito recentemente", e supostas cartas de Paulo aos laodicenses e alexandrinos. Embora diga que a Igreja recebe o apócrifo Apocalipse de Pedro, acrescenta que alguns não admitem que este "seja lido na igreja". Em resumo, o Cânon de Muratori menciona a maior parte dos 27 livros do nosso Novo Testamento; faltam as duas cartas de Pedro, Tiago, uma carta de João (a terceira?) e Hebreus. 

Deve observar-se que o tom de todo o tratado não é tanto o de uma legislação, mas o de uma declaração explicativa respeitante a um estado de coisas mais ou menos estabelecido, com apenas um único caso de diferença de opinião entre os membros da igreja católica (a saber, o uso que devia fazer-se do Apocalipse de Pedro). A validade exclusiva dos quatro Evangelhos (...) é perfeitamente clara.

(Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 200). 

Embora não exista uma lista de livros canónicos nas obras do prolífico Hipólito de Roma (ca. 170-236) que chegaram a nós, dos seus escritos conservados se depreende que admitia um cânon essencialmente similar ao de Muratori. Está composto por os quatro Evangelhos, Atos, as treze epístolas de Paulo1 Pedro, 1 e 2 João, e Apocalipse, cuja autoria pelo Apóstolo João defendeu Hipólito num tratado contra um tal Gaio. A sua descrição da Escritura como constando de três partes, os Profetas, o Senhor e os Apóstolos, mostra que colocava os escritos do Novo Testamento a par com os do Antigo, e permite inferir que tinha em mente um corpo definido de livros.

Originário da Ásia Menor e discípulo de Policarpo, Ireneu (ca. 130-200), bispo de Lyon nas Gálias, foi um importante vínculo na unidade de pensamento e ação entre as igrejas do Oriente e Ocidente, em particular na refutação das heresias. A sua obra em cinco livros Exposição e refutação da falsamente chamada gnose, mais conhecida pelo seu nome latino Adversus omnes Haereses, apresentava pela primeira vez uma filosofia cristã da história e constituiu Ireneu no "principal porta-voz da resposta católica ao gnosticismo e outros desvios do século II" (Bruce). Os gnósticos pretendiam ser os autênticos preservadores dos ensinamentos de Jesus, os quais teriam sido transmitidos secretamente a discípulos considerados dignos. Contra esta concepção esotérica do cristianismo, Ireneu susteve que a autêntica tradição apostólica se encontrava viva e manifesta em todas as igrejas fundadas pelos apóstolos, nas quais existia uma sucessão ininterrupta de bispos.

Na resposta de Ireneu, o apelo às Escrituras, conservadas nas igrejas apostólicas, tem um papel fundamental. É claro que considera fechado o cânon dos Evangelhos, pois para a Igreja universal existem apenas quatro Evangelhos ou, nas suas próprias palavras, um só Evangelho em quatro formas (to euangelion tetramorfon). Dizia Ireneu: 

Os Evangelhos não podem ser nem menos nem mais de quatro; porque são quatro as regiões do mundo em que habitamos, e quatro os principais ventos da terra, e a Igreja foi disseminada sobre toda a terra; e coluna e fundamento da Igreja [1 Timóteo 3:15] são o Evangelho e o Espírito de vida; por isso quatro são as colunas nas quais se funda o incorruptível e dão vida aos homens. Porque, como o artista de todas as coisas é o Verbo, que se senta sobre os querubins [Sal 80 (79):2] e contém em si todas as coisas [Sab 1,7], nos deu a nós um Evangelho em quatro formas, compenetrado de um só Espírito. Como diz David, rogando-lhe que venha: «Mostra-te tu, que te sentas sobre os querubins» [Sal 80 (79):2]. Os querubins, com efeito, se manifestaram sob quatro aspectos que são imagens da atividade do Filho de Deus [Apocalipse 4:7]: «O primeiro ser vivente, diz [o escritor sagrado], se assemelha a um leão», para caracterizar a sua atividade como dominador e rei; «o segundo é semelhante a um bezerro», para indicar a sua orientação sacerdotal e sacrificial; «o terceiro tem cara de homem» para descrever a sua manifestação ao vir no seu ser humano; «o quarto é semelhante a uma águia em voo», sinal do Espírito que faz sobrevoar a sua graça sobre a Igreja.

(Ireneu de Lyon, Adversus omnes Haereses III, 11:8; negrito acrescentado).
http://www.multimedios.org/docs/d001092/p000021.htm#h31

A argumentação de Ireneu é evidência do reconhecimento geral dos quatro Evangelhos canónicos no seu tempo. A sua justificação explícita é tão fraca e indireta que só poderia apelar a quem já estivesse convencido, por outras razões, de que não havia senão quatro Evangelhos. Portanto, este consenso devia estar firmemente estabelecido, tanto no Oriente como no Ocidente, na segunda metade do século II.

É destacável que Ireneu é o primeiro autor cristão que cita mais o Novo Testamento do que o Antigo. Em Adversus omnes Haereses há 1075 citações do NT: 626 dos Evangelhos, 54 de Atos, 280 das cartas de Paulo (não cita Filemom), 15 citações das epístolas católicas (não se refere a 2 Pedro, 3 João e Judas mas sim a Hebreus), e 29 do Apocalipse. Metzger diz:

A modo de sumário, em Ireneu temos evidência de que por volta do ano 180, no sul de França se conhecia um Novo Testamento  (...) de aproximadamente vinte e dois livros (...) Ainda mais importante que o número de livros é o facto de que Ireneu tinha uma coleção claramente definida de livros apostólicos que considerava como iguais ao Antigo Testamento em significado. O seu princípio de canonicidade era duplo: a apostolicidade dos escritos e o testemunho da tradição mantida nas igrejas.

(Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 155-156). 

Pela mesma época, no norte de África, começa a ganhar forma a ideia de um cânon definido. Embora tenha citado livremente muitas fontes, tanto cristãs como pagãs, além de numerosas tradições orais, Clemente de Alexandria (ca. 150-215) considerava Escrituras basicamente os mesmos livros do Novo Testamento que Ireneu.

8. Aproximação a um consenso no século III

No século III verifica-se uma coincidência crescente no sentir de diversos autores eclesiásticos. Também no norte de África, mas em território de fala latina, Tertuliano de Cartago (ca. 160-220), nascido de pais pagãos, advogado de profissão e convertido ao cristianismo em 195, foi o primeiro grande teólogo que escreveu em latim. Escreveu extensamente sobre muitos temas.

8.1 Tertuliano apela a argumentos legais

Uma das muitas obras de Tertuliano, na qual pôs ao serviço da fé os seus conhecimentos jurídicos, é A prescrição dos hereges (De praescriptione Haereticorum). A prescrição era uma figura jurídica mediante a qual o advogado defensor podia parar o processo iniciado pelo demandante, que devia ser apresentada de antemão (pré-escrever) à substanciação do processo. No caso das disputas entre a Igreja de Cristo e os hereges, ambas as partes argumentavam a partir da Bíblia. A prescrição consiste basicamente em que os hereges não podem apelar às Escrituras, simplesmente porque não pertencem a eles. 

... este é o ponto a que queríamos chegar (...) para pôr hoje fim à luta a que nos convidam os nossos adversários. Armam-se com as Escrituras (...) cansam os fortes, triunfam dos fracos e semeiam inquietude no coração dos indecisos. Por isso tomamos esta decisão contra eles antes de dar algum outro passo: negar-lhes o direito a discutir sobre as Escrituras. Este é o seu arsenal; mas antes de tirar armas dele deve examinar-se a quem pertencem as Escrituras, a fim de que não possa usá-las ninguém que não tenha direito a elas.

(Tertuliano, A prescrição dos hereges, 15. Texto segundo J. Quasten, Patrologia I. Até ao Concílio de Niceia. Versão espanhola de Ignacio Oñatibia. Madrid: BAC, 1978, p. 569). 

Para Tertuliano, a tradição e autoridade das igrejas determinavam a regra de fé (regula fidei, um termo jurídico), ou seja as genuínas crenças cristãs, baseadas nas Escrituras e encapsuladas no credo batismal. Portanto, esta regra de fé oral e as Escrituras concordavam e se sustentavam mutuamente.

Tertuliano considerava os Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipse com igual autoridade que o Antigo Testamento. Defendeu contra Marcião a autoridade dos quatro Evangelhos, dos Atos, das epístolas Pastorais e de Hebreus (que cria ser obra de Barnabé). Nas suas obras cita quase todos os livros do Novo Testamento, com exceção de 2 Pedro, Tiago e as duas cartas breves de João. Uma contribuição distintiva de Tertuliano acerca da importância do Novo Testamento foi que o considerou com uma autoridade de caráter judicial, empregando para ele termos próprios do direito romano como Instrumentum e Testamentum.

8.2 A ameaça do montanismo

Um facto curioso da história do cristianismo é que em 207 Tertuliano abraçou o montanismo, um movimento apocalíptico de moral muito estrita, fundada por Montano na Frígia, entre 156 e 172. Embora Tertuliano tenha permanecido doutrinalmente ortodoxo, ficou fora da comunhão católica pelo que ele considerava lassidão na disciplina eclesiástica. Por sua própria natureza, no entanto, o montanismo representava uma ameaça doutrinal: 

Vivia na expectação do rápido derramamento do Espírito Santo sobre a Igreja, do qual via a primeira manifestação nos seus próprios profetas e profecias. O próprio Montano (...) proclamou que a Jerusalém celestial em breve desceria perto de Pepuza, na Frígia. Duas mulheres, Prisca e Maximila, estavam estreitamente associadas com ele.

(F. L. Cross, Editor, The Oxford Dictionary of the Christian Church. London: Oxford University Press, 1958, p. 918-919, s.v. Montanism). 

As profecias dos líderes montanistas começaram a pôr-se por escrito e eram consideradas pelos seus seguidores a par do Antigo Testamento e dos escritos apostólicos; Maximila chegou a dizer que depois dela não haveria mais profecia, mas viria o fim. Uma reação ao montanismo foi, sobretudo no Oriente, pôr em dúvida toda a literatura apocalíptica, incluído o Apocalipse de João (defendido, como vimos, por Hipólito).

Em geral, as igrejas apostólicas não estavam, porém, dispostas a aceitar novas escrituras de origem duvidosa, por mais que os seus defensores as atribuíssem ao Espírito Santo. Um bispo cujo nome se desconhece exemplifica esta posição. Dirigindo-se a outro bispo, diz que hesitou em escrever contra os montanistas, 

...não por dificuldade em poder refutar a mentira e dar testemunho da verdade, mas por temor de que (...) parecesse a alguns que de certo modo acrescento ou junto algo novo à doutrina do Novo Testamento, ao qual não pode juntar nem tirar nada quem tenha decidido viver conforme este mesmo Evangelho.

(Citado por Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, V, 16:3. Versão de Argimiro Velasco Delgado. Madrid: BAC, 1973, 1:309).

Os escrúpulos expressos nesta carta, que é datada entre 192 e 193, indicam que antes de finalizar o século II havia consciência de que o cânon estava fechado e não era lícito acrescentar-lhe nem tirar-lhe nada. Além disso, esta é a menção mais antiga que se conhece da expressão grega kainês diathêkês (novo testamento) em relação aos Evangelhos e demais escritos genuínos dos apóstolos.

8.3 Orígenes é a autoridade dominante do século III

O teólogo, exegeta, e erudito bíblico Orígenes (ca. 185-254) recebeu educação cristã no lar paterno e foi discípulo de Clemente de Alexandria na Escola Catequética dessa cidade. Depois da perseguição de 202, assumiu a direção da mencionada Escola. Viajante e incansável estudioso, em 230 viajou para a Palestina, onde foi ordenado sacerdote e em 231 se estabeleceu em Cesareia, onde fundou uma famosa escola. Orígenes foi um autor extraordinariamente prolífico (diz-se que ditava a vários escribas em simultâneo) mas lamentavelmente muito pouco da sua ampla produção sobreviveu. Comentou virtualmente toda a Bíblia na sua pregação, em notas breves e em comentários extensos e detalhados. Escreveu-se dele: 

Orígenes foi essencialmente um erudito bíblico cujo pensamento se nutria na Escritura, cuja inspiração e integridade defendeu contra os marcionitas. Reconhecia um triplo sentido – literal, moral e alegórico - dos quais preferia o terceiro.

(F. L. Cross, Editor, The Oxford Dictionary of the Christian Church. London: Oxford University Press, 1958, p. 992, s.v. Origen).

Embora a interpretação alegórica de Orígenes seja discutível, é inegável a sua enorme contribuição para os estudos bíblicos. Uma de suas obras foi a Hexapla, uma edição crítica do Antigo Testamento em seis colunas paralelas com 1) o texto hebraico; 2) o texto hebraico em caracteres gregos; 3) a versão grega de Áquila; 4) a versão grega de Símaco; 5) a Septuaginta (tradução judaica pré-cristã, a mais usada pelos cristãos de fala grega) e 6) a versão de Teodocião.

Orígenes foi mais explícito e concreto em relação ao cânon do Antigo Testamento que ao do Novo. Aparentemente, Orígenes não deixou uma lista precisa de livros do Novo Testamento, e é possível que as suas opiniões tenham variado com o tempo. 

É difícil resumir as opiniões sobre o cânon sustentada ao longo dos anos por uma mente tão fértil e ampla como a de Orígenes. Certamente pode dizer-se, porém, que considerava fechado o cânon dos quatro Evangelhos. Aceitou catorze epístolas de Paulo, como também Atos, 1 Pedro, 1 João, Judas e Apocalipse, mas expressou reservas respeitantes a Tiago, 2 Pedro, e 2 e 3 João. Em outras ocasiões Orígenes, como Clemente antes dele, aceita como evidência cristã qualquer material que acha convincente ou atrativo, inclusive designando por vezes como "divinamente inspirados" tais escritos.

(Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 141).

Em todo o caso, o testemunho  de Orígenes sobre o cânon do Novo Testamento foi compilado de várias das suas obras por Eusébio, no Livro Sexto da História Eclesiástica  (25:3-14).

No seu Comentário sobre o Evangelho segundo Mateus, Orígenes afirma reconhecer apenas os quatro Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Na Exposição do Evangelho segundo João, menciona as cartas de Paulo, a primeira de Pedro e "talvez também uma segunda, pois é posta em dúvida". De João, o Evangelho e o Apocalipse, além de "uma Carta de muito poucas linhas, e talvez também uma segunda e uma terceira, pois nem todos dizem que estas são genuínas."

Finalmente, numa homilia sobre Hebreus nota diferenças com o estilo rude de Paulo; mas "os pensamentos da carta são admiráveis e não inferiores aos de cartas que se admitem ser do apóstolo", e acrescenta depois: "pela minha parte (...) diria que os pensamentos sim são do Apóstolo, mas o estilo e a composição são de alguém que evocava de memória os ensinamentos do Apóstolo". 

Noutro lado dá testemunho dos Atos. Orígenes reúne estes escritos sob o título de "Novo Testamento" e diz que são Escrituras divinas. Sobre a carta de Judas diz no seu já mencionado Comentário sobre o Evangelho segundo Mateus que é muito breve, mas está "preenchida com as saudáveis palavras da graça celestial". Menos clara é a sua posição sobre a carta de Tiago. Não obstante, no sermão sobre a queda de Jericó, menciona virtualmente todos os livros do Novo Testamento  - incluída a carta de Tiago - como as "trombetas dos Apóstolos enviados por Cristo".

Apesar de certas dúvidas persistentes em relação a alguns dos escritos mais breves, a contribuição de Orígenes é um avanço para o reconhecimento final do Novo Testamento tal como chegou a nós.

8.4 Cipriano brilha em Cartago

Nascido em princípios do século III numa família de boa posição, Cipriano chegou a ser professor de retórica em Cartago. Desencantado com o paganismo, se converteu ao cristianismo em 246 e se dedicou a estudar profundamente as Escrituras e os escritos de Tertuliano, a quem chamava "o Mestre". O seu prestígio foi tal, que apenas dois anos depois de convertido foi eleito bispo de Cartago por aclamação popular. Nos dez anos do seu bispado, até ao seu martírio em 14 de Setembro de 258, Cipriano escreveu pelo menos seis tratados e 65 longas epístolas de profundo valor doutrinal e sabedoria pastoral.

Cipriano chegou a memorizar grande parte das Escrituras e demonstrou tê-las estudado a fundo. Os livros do Novo Testamento que mais citou foram, em ordem decrescente, Mateus, João, Lucas, 1 Coríntios, Romanos e Apocalipse. Não obstante, citou também os demais livros do Novo Testamento, com exceção de Tiago, Judas 2 Pedro, 2 e 3 João. Embora não tenha citado textos de Hebreus, com toda a probabilidade conhecia esta epístola, primeiro porque o seu admirado Tertuliano a usou e segundo porque parafraseia Hebreus 1:1-2 num de seus tratados (Sobre a oração do Senhor): "Aprouve a Deus que muitas coisas fossem ditas e ouvidas mediante seus servos, os profetas, mas quão maiores são aquelas faladas pelo Filho!"

9. Alcança-se virtual unanimidade no século IV

Um acontecimento que, sendo mau, teve um efeito saudável na fixação do cânon das Escrituras foram as perseguições contra os cristãos. Aos cristãos identificados como tais se lhes exigia que entregassem os seus livros sagrados se quisessem evitar os castigos, ou inclusive a morte. A última grande perseguição teve lugar por causa de um decreto do imperador Diocleciano, publicado em 23 de Fevereiro de 303. O decreto, ao que parece sancionado por instigação do procônsul de Bitínia, Hierócles, dispunha que os templos cristãos fossem arrasados e as suas Escrituras confiscadas para ser queimadas. Este último aspecto tornou importante, tanto para os perseguidores como para os perseguidos, saber exatamente quais documentos cristãos eram parte das Sagradas Escrituras. De igual modo, após concluída a perseguição, os líderes da Igreja deviam saber quem tinha entregue (traditores) cópias das Sagradas Escrituras, e quem tinha evitado o castigo entregando livros menos importantes. 

Num códice do século VI, chamado Claromontanus (catalogado D 06), que contém as epístolas de Paulo e a epístola aos Hebreus, encontra-se entre Filemom e Hebreus uma lista de livros do Novo Testamento, com o número de linhas de cada um. A opinião geral é que a lista foi feita em Alexandria, mais ou menos pela mesma época que a perseguição de Diocleciano. A lista inclui especificamente as epístolas católicas 2 Pedro, Tiago, 2 e 3 João e Judas.

Depois de vários anos de cruenta perseguição contra os cristãos, que havia sido um fracasso e, além disso, era vista com desgosto por muitos pagãos, promulgou-se em 311 o édito de tolerância de Galério. 

...os imperadores concedem perdão e permitem «que haja de novo cristãos e celebrem as suas reuniões religiosas, na condição de que não maquinem nada contra a ordem pública». Promete-se um novo rescrito para os governadores, em que se lhes darão instruções mais concretas sobre a execução do édito. Aos cristãos se lhes manda que roguem ao seu deus pelo bem do imperador, do Estado e do seu próprio.

(Karl Baus, Da Igreja primitiva aos começos da grande Igreja. Em Hubert Jedin, Director: Manual de história da Igreja. Tradução castelhana de Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Editorial Herder, 1980, 1:568). 

Embora o cumprimento do que era disposto tenha sido díspar, e na verdade pouco depois recrudesceram as perseguições contra os cristãos orientais, a paz definitiva com o Império chegou com a vitória de Constantino sobre Maxêncio em 312. O posterior acordo entre Constantino, imperador do Ocidente e Licínio, seu par oriental, em 313 (mal chamado o "édito de Milão") iniciou uma política não só de tolerância, mas de franco favor imperial para com os cristãos.

9.1 Eusébio resume a situação sobre o cânon

A situação definitiva começa a perfilar-se depois do acesso ao poder de Constantino e é apresentada pelo historiador da Igreja, Eusébio de Cesareia (ca. 260-340), no Livro Terceiro da sua História Eclesiástica:

Chegando aqui, é hora de recapitular os escritos do «Novo Testamento» já mencionados. Em primeiro lugar deve colocar-se a tétrada santa dos Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos Apóstolos.

E depois deste deve colocar-se na lista as Cartas de Paulo. Depois deve-se dar por certa a chamada Primeira de João, como também a de Pedro. Depois destas, se parece bem, pode colocar-se o Apocalipse de João, sobre o qual exporemos oportunamente o que dele se pensa. Estes são os que estão entre os admitidos.

Dos livros discutidos, por outro lado, mas que são conhecidos da grande maioria, temos a Carta chamada de Tiago, a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se dizem ser segunda e terceira de João, sejam do próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome.

Entre os espúrios sejam listados: o escrito dos Atos de Paulo, o chamado Pastor e o Apocalipse de Pedro, e além destes, a que se diz Carta de Barnabé e a obra chamada Ensinamento dos Apóstolos, e ainda, como disse, se parece bem, o Apocalipse de João; alguns, como disse, rejeitam-no, enquanto outros o contam entre os livros admitidos.

Mas alguns catalogam entre estes inclusive o Evangelho dos Hebreus, no qual se comprazem muitíssimo os hebreus que aceitaram Cristo. Todos estes são livros discutidos.

Mas creio ser necessário que exista um catálogo destes também, distinguindo os escritos que, segundo a tradição da Igreja, são verdadeiros, genuínos e admitidos, daqueles que diferenciando-se destes por não serem testamentários, mas discutidos, ainda assim são conhecidos pela grande maioria dos autores eclesiásticos, de modo que possamos conhecer estes livros e os que com o nome dos apóstolos foram divulgados pelos hereges, alegando que se tratem seja dos Evangelhos de Pedro, de Tomé, de Matias ou mesmo de algum outro, ou ainda dos Atos de André, de João e de outros apóstolos. Jamais um só dentre os escritores ortodoxos julgou digno mencionar estes livros em seus escritos.

Mas ocorre que a própria índole do fraseado difere enormemente do estilo dos apóstolos, e o pensamento e a intenção do que neles está contido destoa ainda mais da verdadeira ortodoxia: claramente demonstram ser invenções de hereges. Por isso não devem ser colocados nem mesmo entre os espúrios, mas devemos rejeitá-los como inteiramente absurdos e ímpios.

(Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, III, 25:1-7. Versão de Argimiro Velasco Delgado. Madrid: BAC, 1973, 1:165-166).

Eusébio propõe três categorias de escritos: Os aceites por todos, os discutidos e as "invenções de hereges". A qualificação de "espúrio" não significa apócrifo ou herético em Eusébio; ele a aplica a escritos que são ortodoxos mas que não são admitidos universalmente como "divinas Escrituras". Os livros heréticos são outra coisa, e devem ser totalmente rejeitados.

Então, em princípios do século IV todos os cristãos reconheciam como Escrituras os quatro Evangelhos canónicos, os Atos, as epístolas paulinas, 1 João e 1 Pedro. Por outro lado, ainda não todos, mas sim a maioria, admitiam 2 Pedro, 2 e 3 João, Tiago e Judas.

A situação do Apocalipse de João é muito curiosa, pois Eusébio não o coloca entre os "discutidos", mas o inclui nas outras duas categorias simultaneamente: entre os reconhecidos e entre os espúrios, esclarecendo em ambos os casos, "se parece bem".

A provável razão desta estranha atitude é que Eusébio sabia que o Apocalipse era de facto geralmente aceite, mas ele próprio tinha reservas sobre o livro, por ser adversário do milenarismo.

Eusébio e Constantino tornaram-se amigos em 325. Alguns anos mais tarde, o imperador encomendou ao bispo, numa carta preservada na "Vida de Constantino" escrita pelo próprio Eusébio, 50 exemplares das Escrituras cristãs (ambos os Testamentos) em grego para as Igrejas da capital imperial, Constantinopla. Dizia o imperador: 

Ocorre (...) que grandes números se uniram à santíssima igreja na cidade que leva o meu nome. Parece, portanto, muito necessário (...) aumentar também o número de igrejas (...) Achei prático (...) ordenar cinquenta cópias das sagradas Escrituras, a provisão e uso das quais, tu sabes, é da maior necessidade para a instrução da Igreja, que sejam escritas em pergaminho preparado de maneira legível, e numa forma portável e conveniente, por amanuenses profissionais muito versados na sua arte (...) Tens autoridade também, em virtude desta carta, para usar duas carruagens públicas para o seu transporte, disposição mediante a qual as cópias, quando estejam adequadamente escritas, serão mais facilmente enviadas para minha inspeção pessoal.

(Eusébio, Vida de Constantino, IV, 36. Em Philip Schaff e Henry Wace, Editors: A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series [1891]. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, Reimpresión, 1991; 1:549). 

As cópias, sufragadas pelo imperador, prepararam-se de imediato na forma de "volumes magníficos e elaboradamente encadernados", no dizer de Eusébio. É provável que, com esta ação, Eusébio tenha contribuído para a formação do cânon, pois com toda a probabilidade as cópias continham os 27  livros que reconhecemos como canónicos até hoje, e possivelmente na mesma ordem que nas Bíblias modernas. Talvez Eusébio estivesse inclinado a omitir o Apocalipse, mas é difícil crer que se atrevesse, conhecendo o apreço que o imperador tinha por este livro, que de resto era geralmente aceite pela maioria.

Deve notar-se que Constantino não teve nenhuma influência direta em determinar quais Escrituras eram canónicas, mas limitou-se a solicitar cópias, sem dar a menor instrução sobre que livros deviam conter ou quais omitir-se. Bruce observa que se, como parece, as 50 cópias continham de facto os 27 livros, isso "forneceria um ímpeto considerável para a aceitação do agora familiar cânon do Novo Testamento". Evidentemente, o uso de uma edição tal nas Igrejas de Constantinopla favoreceria a admissão geral dos livros aceites até hoje. 

9.2 Atanásio dá a primeira lista completa e exclusiva

Tradicionalmente, os bispos de Alexandria anunciavam a data de celebração da Páscoa mediante cartas circulares, que também costumavam conter instruções ou outros ensinamentos. Poucas décadas depois de Eusébio, Atanásio (ca. 296-373) bispo de Alexandria e campeão da ortodoxia nicena, proporciona uma lista de livros do Novo Testamento na sua 39ª Carta pascal no ano 367. A ordem difere do habitual nas nossas Bíblias, mas os livros são exatamente os mesmos. Note-se, além disso, que Atanásio não estabelece nenhuma diferença de hierarquia entre os 27 livros. 

De novo, não devemos hesitar em nomear os livros do Novo Testamento. São como se segue:
Quatro Evangelhos, segundo Mateus, Marcos, Lucas e João. Depois destes os Atos dos Apóstolos e as sete epístolas dos apóstolos chamadas católicas, como se segue: uma de Tiago, duas de Pedro, três de João e, ... uma de Judas.
A seguir há catorze epístolas do Apóstolo Paulo, escritas em ordem como se segue: Primeiro aos romanos, então duas aos coríntios, e depois destas aos Gálatas e depois aos efésios; então aos filipenses; depois aos colossenses e duas aos tessalonicenses e aquela aos hebreus. Depois há duas a Timóteo, uma a Tito e a última a Filemom.
Além disso, o Apocalipse de João.


(Atanásio, Carta Pascal 39. Em Philip Schaff e Henry Wace, Editors: A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series [1891]. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, Reimpresión, 1991; 4:551).

É provável que a visita de Atanásio a Roma em 340 – durante o seu segundo exílio – quando Júlio I era bispo dessa cidade, tenha sido decisiva para a aceitação de Hebreus por parte da Igreja de Roma e daquelas sob a sua influência. A mesma lista é proporcionada mais tarde no norte de Itália por Rufino de Aquileia (345-410).

9.3 Jerónimo e Agostinho

O maior erudito bíblico posterior a Orígenes, Jerónimo (ca. 342-420) também admitia como canónicos os 27 livros, como o demonstra, por exemplo, na sua Epístola 53 a Paulino, bispo de Nola, sobre o estudo das Escrituras: 

Tratarei brevemente do Novo Testamento. Mateus, Marcos, Lucas e João são a equipa quádrupla do Senhor, os verdadeiros querubins ou depósito de conhecimento (...)
O Apóstolo Paulo escreve a sete igrejas (pois a oitava epístola, aos hebreus, não é geralmente contada com as outras). Instrui Timóteo e Tito; intercede ante Filemom pelo seu escravo fugitivo...
Os Atos dos Apóstolos parece relatar uma história sem adorno e descrever a infância da igreja recém-nascida, mas uma vez que nos damos conta que o seu autor é Lucas, o médico cujo louvor está no evangelho, veremos que todas as suas palavras são remédios para a alma doente. Os apóstolos Tiago, Pedro, João e Judas produziram sete epístolas, ao mesmo tempo espirituais e concisas.
O Apocalipse de João tem tantos mistérios como palavras. Ao dizer isto, disse menos do que o livro merece ...


(Jerónimo, Carta LIII. Em Philip Schaff e Henry Wace, Editors: A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series [1892]. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, Reimpresión, 1991; 6:101-102). 

Outro que recebeu o cânon do Novo Testamento como se admitia já nessa época foi Agostinho de Hipona, que em 397 enumera os mesmos livros que Atanásio, embora em diferente ordem. Porém, a seguinte instrução do mesmo Agostinho dá testemunho de que o cânon não estava fechado sem lugar para dúvidas. 

Ora, em relação às Escrituras canónicas, [o intérprete] deve seguir o juízo do maior número de igrejas católicas; e entre estas, desde logo, um elevado lugar deve dar-se àquelas consideradas dignas de ser a sede de um apóstolo e de receber epístolas. Consequentemente, entre as Escrituras canónicas julgará conforme a seguinte norma: Preferir aquelas que são recebidas por todas as igrejas católicas àquelas que algumas [igrejas] não recebem. Entre aquelas [Escrituras], de novo, que não são recebidas por todas, preferirá as que tenham a sanção do maior número e daquelas de maior autoridade, àquelas sustentadas por um número menor ou são de menor autoridade. Porém, se verificasse que alguns livros são defendidos pelo maior número de igrejas, e outros pelas de maior autoridade (ainda que não seja muito provável que isto ocorra), penso que em tal caso a autoridade de ambos os lados deve ser considerada como igual.

(...)

O [cânon] do Novo Testamento, de novo, é contido nos seguintes: Quatro livros do Evangelho, segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas, segundo João; catorze epístolas do Apóstolo Paulo – uma aos romanos, duas aos coríntios, uma aos gálatas, aos efésios, aos filipenses, duas aos tessalonicenses, uma aos colossenses, duas a Timóteo, uma a Tito, a Filemom, aos hebreus; duas de Pedro; três de João; uma de Judas; e uma de Tiago; um livro dos Atos dos Apóstolos; e um do Apocalipse de João.

(Agostinho, Sobre a doutrina cristã, II, 8. Em Philip Schaff, Editor: A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, First Series [1886]. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, Reimpresión, 1993; 2:538-539).

A regra enunciada por Agostinho é bastante reveladora sobre o verdadeiro processo de formação do cânon. Por sinal, o cânon do NT não estava reconhecido em finais do século I, mas também não foi a Igreja de Roma que o estabeleceu. Esta última ideia é um anacronismo fatal, já que no século IV a Igreja de Roma, hoje conhecida como Igreja Católica, não tinha a autoridade nem o poder que depois se arrogou. Portanto, não poderia determinar por si mesma nenhum cânon, nem sequer no suposto que o tivesse claro.

A verdade é que o cânon foi reconhecido e proclamado não pela Igreja Católica romana, mas pela igreja católica (ou universal) antiga, que certamente não era governada desde Roma, por mais que esta fosse uma sede apostólica de enorme influência.  

Na verdade, os bispos de Roma não falaram mais alto no tema do cânon, longe disso. Embora segundo o testemunho de Eusébio em princípios do século IV o consenso final estivesse próximo, foi fundamental a intervenção dos bispos africanos, primeiro Atanásio e depois Agostinho, sob cuja influência os sínodos de Hipona (393) e o III e VI de Cartago, respetivamente de 397 e 419, determinaram os limites do cânon.

Não obstante, estes sínodos ou concílios regionais não tinham autoridade sobre toda a Igreja, como sim a teria tido um concílio ecuménico. É por esta razão, e considerando a importância do consenso dos bispos, que os correspondentes cânones foram enviados ao bispo de Roma e a outros bispos para a sua confirmação.

Nenhum decreto papal podia, nesse tempo, substituir o consenso universal. De facto, um sínodo regional asiático, o de Laodiceia de 363, omitiu o Apocalipse tal como o fazia o bispo Cirilo de Jerusalém.

Na realidade, nenhum concílio ecuménico da antiguidade discutiu seriamente o assunto do cânon. É verdade que no Concílio Quinissexto de Constantinopla (553,680) se ratificaram as listas canónicas apresentadas em Cartago e nas Constituições Apostólicas como se tivessem sido uma só, mas estas listas não eram coincidentes. Portanto, esta decisão conciliar, enturvou as águas em vez de clarificá-las.

Em relação aos bispos de Roma, a lista enviada por Inocêncio I ao bispo Exupério em 405 omite Hebreus segundo os melhores manuscritos.

Por vezes menciona-se uma lista atribuída ao papa Dámaso, supostamente de 382 e portanto imediatamente posterior à de Atanásio. É possível, mas em qualquer caso, tal lista na verdade não pôs fim às diferenças. Além disso, a mesma lista, conservada num documento italiano (não de Roma) de princípios do século VI chamado Decreto Gelasiano, é atribuída variavelmente também aos bispos romanos Gelásio (492-496) ou Hormisdas (514-523).

10. A Reforma Protestante e o Concílio de Trento

Nos séculos que vão desde finais do século IV ao século XVI, o cânon do Novo Testamento ficou de facto fixado sem maiores discussões. Em princípios do século XVI, com o impulso dado ao estudo pela invenção (no século anterior) da imprensa de tipos móveis, e pela edição impressa do Novo Testamento em grego por Erasmo de Roterdão em 1516, eruditos de diversas tendências discutiram a importância relativa dos livros canónicos.

10.1 A posição de Lutero

Um deles foi o reformador Martinho Lutero (1483-1546), que pelos seus pontos de vista sobre os livros do Novo Testamento foi excessiva e injustamente criticado. Na sua primeira edição da versão alemã da Bíblia, Lutero numerou os livros do NT de Mateus a 3 João, e deixou separados, sem numeração, quatro livros: Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse. Sem dúvida, Lutero não os colocava ao mesmo nível que o resto (dentro dos quais, por outro lado, atribuía mais importância ao Evangelho de João e 1 João, Romanos, Gálatas, Efésios e 1 Pedro que às outras cartas paulinas, Atos, 2 Pedro, e 2 e 3 João). Em todo o caso, e pese as suas próprias reservas ante os quatro livros citados, insistiu em que tal era a sua opinião, a qual não desejava impor a outros, e que não pretendia tirar esses livros do NT.

Deve recordar-se que esta posição de considerar uma hierarquia dentro dos escritos canónicos (um "cânon dentro do cânon") era também sustentada por alguns eruditos católicos, como o dominicano Tomás de Vio ("Caetano", 1469-1534) sem que ninguém os caluniasse. Por outro lado, a maioria dos demais reformadores, incluído Calvino, assim como as grandes confissões protestantes, admitiram sem discussão os 27 livros do Novo Testamento.

10.2 O Concílio de Trento ratifica  o Novo Testamento

O Concílio de Trento não realizou nenhuma inovação em relação ao cânon do Novo Testamento, mas admitiu o que era um consenso de largos séculos. Muito distinto foi o seu triste papel em relação ao cânon do Antigo Testamento, como o observámos noutro lado.

Finalmente, sobre a razão pela qual os livros que compõem o nosso Novo Testamento são esses e não outros, podemos de bom grado assentir o afirmado pela Igreja Católica nada menos que no Concílio Vaticano I, sobre os livros do cânon:

Ora, a Igreja os tem por sagrados e canónicos, não porque compostos só pela indústria humana, tenham sido depois aprovados por ela; nem somente porque contenham a revelação sem erro; mas porque escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor, e como tais foram transmitidos à própria Igreja.

(Concilio Vaticano I, Sessão III de 24 de Abril de 1870; Constituição dogmática sobre a fé católica, Capítulo 2, Da revelação; Denzinger # 1787; negrito acrescentado). 

Dado que os livros sagrados têm uma autoridade intrínseca que provém do seu Autor, o seu caráter canónico não depende da sanção humana em geral, nem eclesiástica em particular. A Igreja católica antiga (da qual por então era parte a Igreja de Roma) não decidiu nem decretou o cânon, mas o discerniu ou reconheceu, e a seguir o confessou e proclamou.

11. Apêndice: Os apócrifos do Novo testamento

A partir do século II existe um corpo crescente de literatura cristã que pretende ser inspirada, cuja autoria, com poucas exceções, se atribui pseudoepigraficamente a algum apóstolo. Estas obras tinham geralmente uma de duas intenções, a saber: 

1) Preencher vazios em certos aspectos da vida de Jesus ou dos seus Apóstolos que no juízo dos seus autores não eram suficientemente descritos nos genuínos escritos apostólicos. Um tema favorito foi a infância de Jesus; outro, o ocorrido no intervalo entre a sua morte e a sua ressurreição; um terceiro, a atividade dos Apóstolos que não se descreve no livro dos Atos.

2) Inculcar certas doutrinas sincréticas, nascidas da mestiçagem entre o cristianismo e certas filosofias, em geral neoplatónicas, que teriam sido ensinadas por Jesus de maneira privada aos Apóstolos e transmitidas só aos discípulos dignos de receber tal conhecimento (gnose). Nesta categoria estão os evangelhos gnósticos. 

Estes livros, que foram tidos em grande estima por certos grupos marginais mas que nunca foram recebidos como autênticos pelo conjunto das igrejas antigas, denominam-se apócrifos do Novo Testamento.

A palavra grega apokryfa significa originalmente "oculto", mas tal qualificação podia significar duas coisas muito diferentes. 

Do ponto de vista daqueles que aprovavam estes escritos, eles estavam "ocultos" ou retirados do uso comum porque eram considerados como contendo conhecimento misterioso ou esotérico, demasiado profundo para ser comunicado a alguém, exceto aos iniciados. De outro ponto de vista, porém, julgava-se que tais livros mereciam ser "ocultados" porque eram espúrios ou heréticos. Assim, o termo teve originalmente tanto um significado honroso como um pejorativo, dependente de quem fizesse uso da palavra.

(Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 165; negrito acrescentado). 

Na atualidade a denominação de "apócrifo" não implica necessariamente uma destas duas valorações opostas, mas está vinculado primariamente com o conceito de um cânon fixado do Novo Testamento. Neste sentido, são apócrifas todas aquelas obras que, não obstante a pretensão dos seus autores, foram excluídas do cânon por não serem consideradas dignas de serem incluídas nele.

Os apócrifos do Novo Testamento tendem, com resultado variável, a imitar as formas literárias próprias dos livros genuínos. Por isso se classificam em evangelhos, atos, epístolas e apocalipses apócrifos (Tabela 2). A adaptação formal da literatura apócrifa às formas literárias das Escrituras canónicas é um testemunho indireto da antiguidade e do reconhecimento geral destas últimas.

O género mais antigo e frequentemente imitado é o dos Evangelhos canónicos. Um facto interessante é que, pese levarem o nome dos Apóstolos, os apócrifos eram geralmente excluídos de séria consideração quanto à sua inclusão no cânon. Em contraste, o facto dos quatro Evangelhos canónicos serem anónimos, e de apenas dois deles (Mateus e João) terem sido atribuídos tradicionalmente a Apóstolos, não foi obstáculo para o pronto reconhecimento da sua autoridade apostólica e da sua inspiração divina.

Alguns dos apócrifos se perderam, e hoje conhecemos a sua existência por referências na literatura cristã primitiva. Na sua edição de 1924 dos apócrifos do Novo Testamento, Montague Rodhes James fez as seguintes acertadas observações acerca destes livros: 

Interessantes como são  (...), não conseguem nenhum dos principais propósitos para que foram escritos, inculcar a verdadeira religião e transmitir a verdadeira história.
Como livros religiosos pretendiam reforçar o conjunto existente de crenças cristãs: seja por revelação de novas doutrinas (...), ou destacando alguma virtude particular, como castidade e temperança; ou reforçando a crença em certas doutrinas ou acontecimentos, v.g., o nascimento virginal, a ressurreição de Cristo, a segunda vinda, o estado final – mediante a produção de evidência que, a ser verdade, fosse irrefutável. Para todos estes propósitos, estes escritos se arrogam a suprema autoridade (...) Como livros de história, propõem suplementar os escassos dados (como pareciam ser) dos Evangelhos e Atos (...)

Mas, como disse, fracassam no seu propósito (...) Os seus autores não falam com as vozes de Paulo nem João, ou com a aprazível simplicidade dos três primeiros Evangelhos. Não é injusto dizer que quando tentam o primeiro são teatrais, e quando ensaiam a segunda, são insípidos. Em resumo, o resultado de algo semelhante ao estudo atento da literatura (...) é um reforçado respeito pelo bom senso da Igreja Universal, e pela sabedoria dos eruditos de Alexandria, Antioquia e Roma (...)
Embora não sejam boas fontes de história num sentido, o são noutro. Registam as imaginações, esperanças e temores dos homens que os escreveram; mostram o que era aceitável para os cristãos incultos dos primeiros tempos, o que lhes interessava, o que admiravam, que ideais de conduta valorizavam para esta vida, o que pensavam encontrar na vindoura (...) e para o amante e estudante da literatura e da arte medieval revelam a fonte de uma parte considerável do seu material e a solução de muitos enigmas. De facto, exerceram uma influência (totalmente desproporcionada com os seus méritos intrínsecos) tão grande e ampla, que ninguém que se interesse pela história do pensamento cristão e da arte cristã pode permitir-se descuidá-los.

(Citado por J. K. Elliott, The Apocryphal New Testament. A collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993, p. xiv-xv; negrito acrescentado).

 

Tabela 2: Alguns apócrifos do Novo Testamento
Evangelhos
Atos
Epístolas
Apocalipses
Do século II
    Dos Hebreus
    Dos Ebionitas
    Pedro
    Protoevangelho de Tiago
    Papiro Egerton 2 (sem nome)

De Nag-Hammadi (gnósticos)
    De João (apócrifo)
    Da verdade (Valentim)
    De Tomé
    De Felipe
    De Maria Madalena

Tardios (séculos IV ao VI)
    História de José o carpinteiro
    Trânsito de Maria
    Segundo Tomé (maniqueu)
    De Mateus (apócrifo)
  
De João
De Paulo
De Pedro
De Tomé
De André
De Pilatos
  
    Dos Apóstolos
   (Epistula apostolorum)
De Paulo
    3 Coríntios
    Laodicenses
    Correspondência entre
    Paulo e Séneca


De Pedro
     Pregação de Pedro
    
  
De Pedro
De Paulo
De Tomé
De João
De Estêvão
Da Virgem
  


Apesar do referido, de vez em quando surge, geralmente de pessoas alheias ao âmbito académico, a tese de que os textos apócrifos revelam a verdadeira história de Jesus, que teria sido distorcida pelos autores canónicos. Neste sentido, a proposta mais recente – mas seguramente não a última – é a de Dan Brown, no seu extraordinário êxito de vendas, O Código Da Vinci. Embora se trate de um romance, no seu prefácio há uma declaração, com o título "Factos", segundo a qual:

Todas as descrições de obras de arte, edifícios, documentos e rituais secretos que aparecem nesta obra são verdadeiras.

(Dan Brown, O Código Da Vinci. Tradução de Juanjo Estrella. Buenos Aires: Editorial Umbriel, 2003, p. 11). 

A verdade é que a obra contém uma série de afirmações discutíveis ou descaradamente falsas. No tema que nos ocupa, Brown sustenta, através de um fictício historiador membro da Royal Society britânica, coisas como as seguintes. 

No concílio de Niceia, convocado por Constantino, "se debateu e se votou sobre (...) a divindade de Jesus (...) até esse momento da história, Jesus era, para os seus seguidores, um profeta mortal ... um homem grande e poderoso, mas um homem, um ser mortal (...) Ao proclamar oficialmente Jesus como Filho de Deus, Constantino o converteu numa divindade..." (p. 290). 

É certo que Constantino convocou o Concílio. De facto, todos os concílios ecuménicos da antiguidade foram convocados por imperadores. Não obstante, as decisões adotadas foram responsabilidade dos bispos reunidos. Além disso, é um disparate afirmar que até Niceia os cristãos consideravam que Jesus era meramente um homem. Existe abundantíssima evidência da literatura cristã anterior a Niceia que atesta a crença na divindade de Cristo. Os cristãos nunca mantiveram a sua fidelidade até à morte por alguém que consideravam apenas um homem.

Além disso, semelhante mudança doutrinal geraria um escândalo de proporções colossais, do qual não há rasto. Na realidade, nenhum dos participantes na controvérsia sustentava semelhante coisa, pois todos aceitavam que Jesus Cristo era um ser divino. A discussão radicava em se ele era coigual com o Pai – como opinava a maioria – ou se, como ensinava Ário, estava um degrau mais abaixo, como o primeiro e mais poderoso dos seres criados. 

Há "milhares de páginas de papéis anteriores à época de Constantino, não manipulados, que o reverenciavam absolutamente enquanto mestre e profeta humano" (p. 318).           

A verdade é que nenhum documento cristão antigo, canónico ou apócrifo, considera Jesus como exclusivamente humano. Há, sim, documentos gnósticos que pretendiam separar o humano e o divino em Jesus Cristo, considerando que um espírito superior, o Cristo, habitou transitoriamente no homem Jesus; mas ao contrário do afirmado, exaltavam o divino e rebaixavam o humano. 

"Circulam rumores de que no tesouro também está incluído o documento «Q» que até o Vaticano admite a sua existência. Supostamente, trata-se de um livro com os ensinamentos de Jesus escritos talvez de seu punho e letra." (p. 318). 

O documento Q (do alemão Quelle, "fonte") é um documento hipotético cuja existência se postulou para explicar o material comum aos Evangelhos de Mateus e Lucas, que não aparece no Evangelho de Marcos. De modo que mesmo se existisse Q, apenas ajudaria a explicar a redação dos Evangelhos canónicos. Que Q possa ter sido escrito pelo próprio Jesus é pura fantasia. 

"Constantino encomendou e financiou a redação de uma nova Bíblia que omitisse os evangelhos em que se falava dos traços «humanos» de Cristo e que exagerasse os que o aproximavam da divindade." (p. 291). 

Como vimos antes, Constantino simplesmente encomendou a Eusébio cinquenta cópias da Bíblia para seu uso nas igrejas de Bizâncio (Constantinopla). Não há a menor evidência de que tenha indicado que livros devia conter e quais não; isso o deixou inteiramente nas mãos do bispo. É pouco provável que fosse capaz de fazer tal coisa, mesmo se quisesse.

Além disso, os cristãos, que poucos anos antes tinham mostrado a sua veneração pelas Escrituras negando-se a entregá-las pagando isso com a sua própria vida, não admitiriam mudanças das quais não há o menor rasto na história. Finalmente, deve notar-se que os Evangelhos canónicos ensinam claramente a humanidade de Cristo. Sobre a sua divindade não são tão claros, com exceção do Evangelho de João. A situação é exatamente oposta à que apresenta Brown. 

"Para a elaboração do Novo Testamento foram considerados mais de oitenta evangelhos, mas apenas uns poucos acabaram por ser escolhidos ... entre eles os de Mateus, Marcos, Lucas e João..." (p. 292). 

Como se descreveu antes, a formação do Novo Testamento não foi produto de uma decisão súbita de algum concílio, muito menos de um imperador. É simplesmente falso que na fixação do cânon tenham sido considerados "mais de oitenta evangelhos" (não havia tantos) como se fossem candidatos com iguais probabilidades. Neste processo, desde o princípio aceitaram-se os quatro Evangelhos canónicos, para a Igreja antiga em seu conjunto, nenhum apócrifo foi alguma vez um concorrente sério. 

"as cópias dos rolos de Nag Hammadi e do Mar Morto" são "os primeiros documentos do cristianismo" (p. 305). 

Os rolos do Mar Morto contêm manuscritos bíblicos e material próprio da seita dos Essénios, que era judaica. Os rolos são anteriores ao Novo Testamento, e não há nenhum material especificamente cristão.

A biblioteca de Nag Hammadi proporcionou cópias de apócrifos de tendência gnóstica em copta (não em aramaico como diz Brown) que são traduções do grego. Os mais antigos destes escritos datam de meados do século II e não provêm de um ambiente palestino, de modo que estão cronológica, geográfica e culturalmente muito distantes dos factos da vida de Jesus.

Por sua própria natureza e fundo neoplatónico, não fornecem material confiável para a ideia central de O Código Da Vinci, a saber, que Jesus casou com Maria Madalena e teve descendência com ela. Não somente desprezavam o natural a favor do espiritual, como também não tinham um conceito muito elevado das mulheres. Segundo o Evangelho de Tomé, a única forma em que uma mulher pode salvar-se é transformando-se em varão (logion 114): 

Simão Pedro disse-lhes: Que Maria saia de entre nós, porque as mulheres não são dignas da vida. Jesus disse: Eu mesmo vou guiá-la, para torná-la homem, para que ela também possa tornar-se um espírito vivo semelhante a vós, homens. Porque toda a mulher que se tornar homem entrará no Reino dos céus.

(O evangelho segundo Tomé. Apócrifo-gnóstico. Versão bilingue copta-castelhano. Barcelona: Siete y Media Editores, 1980, p. 107).

Finalmente, os evangelhos apócrifos de Nag Hammadi são principalmente coleções de supostos ditos de Jesus e dos Apóstolos, que não narram quase nada dos factos da vida do Senhor.

12. Bibliografia

12.1 Fontes

Denzinger,  Enrique. El magisterio de la Iglesia. Manual de los símbolos, definiciones y declaraciones de la Iglesia en materia de fe y costumbres. Versão de Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Editorial Herder, 1963.

Elliott, J.K. The Apocryphal New Testament. A collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.

Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica (2 Vol.). Versão, introdução e notas de Argimiro Velasco Delgado. Madrid: BAC, 1973.

Roberts, Alexander; Donaldson, James. The Ante-Nicene Fathers. Translations of the writings of the Fathers down to A.D. 325 [1884] (10 Vol.). Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, Reimpresión, 1993.

Ruiz Bueno, Daniel. Padres Apologetas Griegos (s. II), 2ª Edición. Madrid: BAC, 1979

Ruiz Bueno, Daniel. Padres Apostólicos. Edición bilingüe completa, 4ª Edición. Madrid: BAC, 1979.

Santos Otero, Aurelio de. Los evangelios apócrifos. Edición crítica y bilingüe. 3ª Edición. Madrid:BAC, 1979 (há uma edição mais actual).

Philip Schaff (Editor). A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, First Series [1886] (14 Vol.). Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, Reimpressão, 1993.

Schaff, Philip; Wace, Henry (Editors): A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series [1891] (14 Vol.). Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, Reimpressão, 1991.

Na Internet pode encontrar-se abundante material, ainda que de qualidade diversa. Uma das páginas mais completas, com ligações para muitas outras, é http://escrituras.tripod.com/

12.2 Estudos e obras de referência

Báez-Camargo, Gonzalo. Breve historia del canon bíblico. México: Ediciones Luminar, 1980.

Bromiley, Geoffrey W. (General Editor). The International Standard Bible Encyclopedia. Revised Edition  (4 vol.). Grand Rapids: Wm.B. Eerdmans, 1979-1988.

Bruce, F.F. ¿Son fidedignos los documentos del Nuevo Testamento?. Tradução espanhola de Daniel Hall. Miami: Editorial Caribe, 1972.

Bruce, F. F.  The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988.

Comfort, Philip Wesley (Editor). The Origin of the Bible. Wheaton: Tyndale House Publishers, 1992.

Cross, F. L. (Editor). The Oxford Dictionary of the Christian Church. London: Oxford University Press, 1958.

Di Berardino, Angelo (Director). Patrología III. Versão espanhola de J. M. Guirau. Madrid: BAC, 1981.

Enciclopedia Católica. Versão em espanhol de The Catholic Encyclopedia, dirigida por Charles G. Herbermann (1907). http://www.enciclopediacatolica.com/

George, Augustin y Grelot, Pierre (Directores). Introducción crítica al Nuevo Testamento (2 vol.). Tradução de Marciano Villanueva. Barcelona: Editorial Herder, 1983.

Jedin, Hubert (Director). Manual de historia de la Iglesia, Tomo 1. Versão de Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Editorial Herder, 1980.

Metzger, Bruce M. The Canon of the New Testament. Its origin, development, and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987.

Quasten, Johannes. Patrología, 3ª Ed. (2 Vol.). Versão espanhola de Ignacio Oñatibia. Madrid: BAC, 1977, 1978.

Ridderbos, Herman. Historia de la salvación y Santa Escritura. La autoridad del Nuevo Testamento. Tradução de Juan L. van der Velde. Buenos Aires: Editorial Escaton, 1973.

Trebolle Barrera, Julio. La Biblia judía y la Biblia cristiana. Introducción a la historia de la Biblia. Madrid: Trotta, 1993.

Wescott, Brooke Foss. The Bible in the Church. 3rd Ed. London & Cambridge: Macmillan & Co., 1870.

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