segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Resposta a “Uma pergunta para um irmão evangélico sério” do Padre Juan Carlos Sack [1]


Deve a Igreja esquecer o que não está escrito?

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O P. Juan Carlos Sack é um sacerdote católico missionário na Rússia, actualmente cursando estudos exegéticos em Roma. Responderá com todo o gosto às suas perguntas ou sugestões. apologetica@ive.org
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[Juan Carlos] É por todos conhecido o facto que tantas religiões e movimentos religiosos evangélicos veneram as Sagradas Escrituras com uma reverência e amor apreciáveis. Deles, creio eu, bem podem aprender tantos católicos que, por um motivo ou outro, não
levam à prática aquelas palavras do último Concílio Universal da Igreja, a saber, o Concílio Vaticano II, quando nos ensina que "é tão grande o poder e a força da palavra de Deus, que constitui o sustento e vigor da Igreja, firmeza de fé para seus filhos, alimento da alma, fonte límpida e perene de vida espiritual… Os fiéis devem ter fácil acesso à Sagrada Escritura" (DV 21 e 22).

Ora bem, também é conhecido por todos a rejeição que estes nossos irmãos manifestam, em geral, por tudo aquilo que não se encontra explícita ou, ao menos, implicitamente nas Sagradas Escrituras.

[Fernando Saraví] Esta "rejeição" não é generalizada nem indiscriminada, mas se refere a considerar em pé de igualdade com as Sagradas Escrituras doutrinas ou práticas que, como correctamente dizes, não se encontram explícita ou implicitamente nelas.

[Juan Carlos] Ou seja, coincidimos com estes nossos irmãos no amor e na veneração às Sagradas Escrituras, mas diferimos quando eles dizem que só aquilo que se encontra nas Sagradas Escrituras é digno de ser tomado como mensagem certa de Deus para nossa salvação. O católico afirma que a Palavra de Deus escrita está contida, sim, exclusivamente nas Sagradas Escrituras, porém a Palavra de Deus não é só aquela que se pôs por escrito nas Escrituras, mas a Palavra de Deus excede as Escrituras: a prova está em que Jesus, o grande revelador do Pai, "fez e disse muitas outras coisas que não se encontram escritas neste livro", e que, obviamente, podemos considerar como Palavra de Deus, embora não escrita, mas oral.

[Fernando Saraví] Não pode negar-se que a Palavra de Deus excede as Escrituras, nem que existem muitas outras coisas que fez e disse Jesus que não se encontram no Evangelho segundo São João (obviamente, "este livro" não se refere a todo o Novo Testamento). Na realidade, muitas destas outras coisas encontram-se nos Evangelhos sinópticos, os quais João complementa, e em dados dispersos nos Actos, nas Epístolas e no Apocalipse. No entanto, ninguém no seu perfeito juízo afirmaria que aí está absolutamente tudo o que Deus disse e fez.

O que o evangélico sério se pergunta e pergunta ao seu não menos sério irmão católico é: Até que ponto podem ser relevantes para a doutrina e a prática as coisas que os autores do Novo Testamento, inspirados pelo Espírito Santo, declinaram incluir nos seus escritos?

Uma segunda pergunta estreitamente relacionada seria quais foram os critérios que guiaram os autores do Novo Testamento para a selecção do material proveniente da revelação divina que finalmente incluíram?

Outra pergunta mais que o evangélico se faz é: com que critério extrair-se-á da tradição oral, o que realmente corresponde aos ensinamentos de Jesus e dos seus Apóstolos de adições posteriores ou estranhas? Simplesmente para dar um exemplo, Ireneu e outros autores citam ditos de Pápias de Hierápolis que supostamente remontam aos Apóstolos, mas que quase certamente são erróneos (por exemplo, sobre a morte de Judas Iscariotes, Felipe e suas filhas, ou o reino milenário).

[Juan Carlos] Esta Palavra de Deus transmitida por Jesus e os Apóstolos oral e literalmente é chamada tecnicamente Tradição, escrita aqui a propósito com maiúscula, para diferenciá-la do que entendemos habitualmente por "tradições", ou seja, costumes de origem mais ou menos desconhecida que se vão repetindo de geração em geração, e cuja única autoridade é "que assim se faz", e basta. Semelhantes "tradições", quando são de carácter religioso, podem ser boas ou más, podem mudar ou permanecer, podem aumentar ou diminuir, podem desaparecer.

A Tradição (com maiúsculas) da Igreja tem a sua origem em Jesus Cristo e nos Apóstolos e se entrega de geração em geração por meio da pregação e da celebração dos mistérios da salvação, sob a guia do Espírito Santo. A palavra "tradição", como se sabe, vem do latim "tradere", que significa "entregar". Neste sentido as Sagradas Escrituras são parte da Tradição que recebemos de nossos antepassados na fé; ou seja, a Bíblia é uma mensagem que tem sido "entregue" de geração em geração, sob a guia do Espírito Santo.

[Fernando Saraví] Em minha opinião, a distinção deve traçar-se entre uma tradição doutrinal e uma tradição interpretativa e usual, ou seja, entre o que constitui o ensinamento inspirado pelo Espírito Santo (seria a Tradição com maiúscula) e o que é a forma de interpretá-lo e a maneira em que se fazem as coisas (costumes). A Bíblia é, para todos os cristãos, o depósito da Revelação, a verdadeira e segura Tradição da Igreja de Jesus Cristo. Tudo o mais pode ter-se em conta – por exemplo, os escritos dos Padres primitivos – mas deve ser julgado à luz da Escritura.

[Juan Carlos] Porém, conforme dissemos, os cristãos assim chamados "evangélicos" negam que devamos dar ouvidos a qualquer outra "Tradição" que não seja esta Tradição escrita, ou seja a Bíblia. A Igreja Católica, ao contrário, sustenta que aquela Sagrada Tradição (ou "ensinamento da salvação entregue") que devemos manter e conservar é mais ampla do que a Sagrada Escritura, e, digamo-lo desde já, não se opõe a ela nem a contradiz, já que se trata de uma mesma Tradição que se "entrega" sob duas formas distintas: escrita e oral.

[Fernando Saraví] Qualquer grupo humano desenvolve certa tradição e é natural e lógico que assim seja. Esta tradição se transmite de geração em geração, em geral modificando-se através de desenvolvimentos e adições.

O problema que um evangélico sério vê aqui é que os cristãos assim chamados "católicos" consideram a suposta Tradição oral como uma fonte de revelação divina a par da Palavra Escrita de Deus, "recebida pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo, ou pelos próprios Apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo transmitida como de mão em mão..."

Esta doutrina começou a ensinar-se com clareza, por influência de Cirilo de Alexandria, no II Concílio de Constantinopla de 553, ou seja, alguns séculos depois da época apostólica. Reafirmou-se no II de Niceia (787) e no IV de Constantinopla (869). Ensina-se no Símbolo de Leão IX (1053) e numa carta de Gregório IX, entre outros documentos papais. O Concílio de Trento ratificou a doutrina na Sessão IV (8 de Abril de 1546), no I Vaticano (1870) e recentemente no II Vaticano, que conclui que "resulta assim que a Igreja não deriva somente da Sagrada Escritura a sua certeza acerca de todas as verdades reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com um mesmo espírito de piedade" (Const. Dogm. Dei Verbum, II,9).

Um evangélico sério não crê na realidade que não deva prestar-se atenção a toda a tradição extra-escritural. Ao contrário, crê que toda a suposta tradição deve examinar-se à luz do revelado por escrito. Neste sentido, simplesmente segue o exemplo do Senhor Jesus, para quem a declaração "Está escrito" concluía uma discussão com os seus discípulos, com os fariseus, com os saduceus e com o próprio Satanás (Mateus 4 e paralelos). É a mesma atitude que tinham os de Bereia quando, depois de ouvir os ensinamentos do mesmíssimo São Paulo e de Silas, "estudavam diariamente as Escrituras para ver se estas coisas eram assim". São Lucas elogia esta atitude (Actos 17: 10-12).

[Juan Carlos] Creio que não há melhor maneira de dizê-lo do que como o disse o próprio São Paulo: "Irmãos: estai firmes e mantende as tradições que recebestes como ensinamento seja de palavra ou por nossas cartas" (2 Tes. 2,13). Algumas traduções deste passo, dito seja de passagem, vertem a palavra do texto original "paradoseis" como "doutrinas", o que é perfeitamente lícito em caso de não tratar-se de uma tradução tendenciosa: não se deve esquecer que a palavra "paradosis" significa inequivocamente "tradição" (à margem do significado de "traição", "detenção" que não se aplica aqui), da raiz verbal "para-didomi", e que é a mesma palavra que usa Jesus ao dizer aos fariseus: "Assim invalidastes a palavra de Deus por causa da vossa tradição (paradosis)".

Como se vê, a palavra "tradição" pode ser tomada como sinónimo da doutrina de Jesus e dos apóstolos e também como sinónimo das doutrinas dos fariseus ou de seus antepassados. Em uma palavra, o termo "tradição" pode usar-se num sentido positivo e também num sentido mais pejorativo, daí que não há que ficar escandalizado quando na Igreja se fala de Tradição, como falava São Paulo. (Em 2 Tes 3,6 também se usa o termo grego "paradosin", que, outra vez, em algumas versões espanholas se traduz como "doutrinas": "…conforme as doutrinas que receberam da nossa parte" - Reina de Valera -; também vale aqui o que dissemos para 2,13: sim, podemos traduzir "paradosin" como "doutrina", porém não percamos de vista que o que diz o texto original é: "…conforme a tradição que receberam da nossa parte"; poderíamos acrescentar que o texto de Mt 15,3 e 6, onde temos no original a mesma palavra que em 2 Tes 3,6, ou seja, "paradosin", é traduzido por quase todas as versões espanholas - inclusive a Reina de Valera - como "tradições". Perguntamo-nos: por que não traduzir aqui "paradosin" como "doutrinas", como se traduz 2 Tes 3,6, que faz referência a uma realidade similar – ensinamentos, tradições, doutrinas -? Certamente a suspeita de imparcialidade da tradução não é de todo infundada: parece que quando o termo "paradosin" aparece para indicar o ensinamento de Jesus ou dos Apóstolos se o traduz como "doutrinas", ao passo que quando se trata dos ensinamentos e preceitos humanos dos judeus se o traduz como "tradições". Repetimos uma vez mais que, se bem que o tradutor pode escolher os sinónimos que ele creia conveniente, contudo neste caso me parece que se cumpre o dito "traduttore tradittore", pois pode levar os leitores simples a pensar que "tradição" é uma espécie de "má palavra" que faz alusão às tradições humanas, contra a doutrina de Jesus, quando de facto no texto original se trata de uma mesma palavra, a qual adquire o seu valor positivo ou negativo segundo o "conteúdo" da mencionada tradição. No entanto não é tanto sobre questões de exegese que queria atrair a atenção do leitor, mas antes sobre questões de história da doutrina cristã em seus primeiros passos, logo que recebeu o Espírito Santo em Pentecostes.

[Fernando Saraví] Sem dúvida, a palavra "tradição" pode tomar-se em sentido positivo, pejorativo ou neutro. A tradução Reina-Valera é – como o reconhece Menéndez e Pelayo e qualquer um que aprecie o castelhano - uma jóia do século de ouro da literatura espanhola. Casiodoro de Reina e Cipriano de Valera (nenhum deles se chamava "Reina de Valera" como dás a entender) optaram efectivamente por traduzir "tradição" em certas partes e "doutrina" em outras talvez como resultado da controvérsia originada na Reforma do século XVI e sua resposta romana em Trento, que ratificou a validade das supostas revelações extra-bíblicas recebidas por tradição oral. Deve-se acrescentar que apesar de alguma escolha discutível – que todas as versões as têm - em matéria de traduzir para o espanhol a Bíblia a partir das línguas originais e pô-las ao alcance das pessoas, os cristãos protestantes ganharam alguns séculos de vantagem aos cristãos católicos.

Voltando ao problema principal, Efésios 2:19-22 e outras passagens nos ensinam que:

1. Jesus Cristo é a Pedra angular
2. Os Apóstolos e os Profetas são o cimento
3. Os demais crentes são o edifício que, sobre dita Pedra angular e Cimento, se levanta como "templo santo ao Senhor".

Os Apóstolos insistem repetidamente na conservação dos seus ensinamentos e na fidelidade a eles. Alguns exemplos:

"Obedecestes de coração àquele modelo de doutrina a que fostes entregues" (Rom 6:17)

"Além disso vos declaro, irmãos, o evangelho que vos preguei, o qual também recebestes, no qual também perseverais, pelo qual também, se retiverdes a palavra que vos preguei, sois salvos, se não crestes em vão" (1 Cor 15:1-2)

"Vivei, pois, segundo Cristo Jesus, o Senhor, tal como o recebestes" (Col 2:6)

"Finalmente, irmãos, vos rogamos e vos exortamos no Senhor Jesus a que vivais como convém para agradar a Deus, segundo aprendestes de nós, e a que progridais mais" (1 Tess. 4:1, cf. 2:13)

"Tudo quanto aprendestes e ouvistes e vistes em mim, ponde isso em prática, e o Deus de paz estará convosco" (Filip 4:9)

"Pois mais lhes valeria não ter conhecido o caminho da justiça do que, depois de o conhecer, voltar atrás, abandonando o santo preceito que lhes foi transmitido" (2 Ped 2:21)

É claro que os Apóstolos desejavam que o que eles ensinavam, tanto oralmente como por escrito, fosse recebido pelos cristãos. Entre Pentecostes e a primeira das Epístolas decorreram pelo menos 15 anos, e até onde sabemos neste período a pregação apostólica se propagou de maneira exclusivamente oral, com o apoio, evidentemente, das Escrituras do Antigo Testamento. É preciso admitir igualmente que até à recolha do grosso do corpus que hoje constitui o Novo Testamento, provavelmente na primeira metade do século II (Clemente de Roma cita 1 Coríntios e Ireneu considera axiomática a existência de quatro Evangelhos), predominou a transmissão oral do ensinamento caracteristicamente cristão.

[Juan Carlos] É um facto óbvio e ainda registado nas Sagradas Escrituras que "há muitas outras coisas que fez Jesus que, se fossem escritas uma por uma, penso que não caberiam nem no mundo todos os livros que se precisariam escrever" (Jo 21,25). Jesus passou os anos da sua vida pública pregando e fazendo o bem, coisa que depois fizeram também os Apóstolos do Senhor, que são considerados por todas as igrejas cristãs como fontes da Revelação, ou seja, a Revelação pública do mistério de Jesus Cristo culmina com a morte do último dos Apóstolos, que foi João.

[Fernando Saraví] Um evangélico sério se perguntaria aqui por que citas outra vez o mesmo versículo da Bíblia (João 21:25) em favor da posição que defendes, como se não houvesse outro em que agarrar. Na realidade, este versículo, provavelmente uma adição editorial ao escrito pelo discípulo amado, pode interpretar-se cabalmente à luz de João 20: 30-31: "Fez ainda Jesus muitos outros sinais na presença de seus discípulos, os quais não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome".

Se esse é o problema, então nem a Bíblia nem a tradição oral pode esgotar o que Deus fez, faz e fará. De facto, esta linha de argumentação é uma faca de dois gumes. Por exemplo, alguns grupos cristãos marginais e também seitas derivadas do cristianismo (como os mórmons) apelam a um raciocínio similar para ensinar que Deus continua revelando-se até hoje através dos seus "profetas". O ponto é que não necessitamos – nem poderíamos – de saber tudo o que Deus disse e fez. A Escritura é altamente selectiva, e tem no seu conjunto o mesmo propósito que João: dar testemunho de Jesus Cristo e levar-nos à salvação em Seu santo nome.

[Juan Carlos] Ninguém pode dizer baseado em algum texto bíblico que os autores dos textos do Novo Testamento quiseram limitar o ensinamento de Jesus ou dos Apóstolos ao que eles estavam escrevendo. Ou posto de outra maneira, nem a Mateus, nem a Marcos, nem a Lucas, nem a João, nem a Pedro, nem a Paulo, nem a Tiago, nem a Judas nem a nenhum outro que tenha podido formar parte dos autores do Novo Testamento jamais lhes ocorreu pôr por escrito tudo o que Jesus ensinou, pois seria algo que nunca acabaria, como o diz João (21,25). Jesus também não lhes tinha mandado escrever nada. Nem sequer todos os Apóstolos escreveram algo, mas só cinco, alguns dos quais escreveram apenas duas ou três páginas (ver a carta de Judas, ou de Tiago; de Pedro temos duas cartas).

[Fernando Saraví] Parece-me que não leste com atenção o que São João escreveu no final do Apocalipse: "Eu advirto a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro: Se alguém acrescentar a estas coisas, Deus trará sobre ele as pragas que estão escritas neste livro. E se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida e da cidade santa e das coisas que estão escritas neste livro" (Apocalipse 22:18-19).

Isto significa que, contrariamente ao que dizes, pelo menos um autor bíblico, e um muito importante, considerou apropriado restringir taxativamente os limites desta revelação. Claro está que em sentido estrito esta advertência somente é válida para o Apocalipse, mas por outro lado o facto de ter sido provavelmente o último livro bíblico a escrever-se, e a Igreja primitiva ter considerado apropriado colocá-lo no final da Bíblia não pode passar-se levianamente por alto.
 

[Juan Carlos] Jesus, no entanto, deu aos seus Apóstolos o mandamento de ir por todo o mundo anunciando o Evangelho a toda a criação, "ensinando-lhes a guardar tudo o que vos mandei" (Mt. 28,20). Os Apóstolos e também os outros discípulos do Senhor, uma vez recebido o Espírito Consolador, cumpriram com o que o Senhor lhes havia ordenado e pregaram dia e noite, ainda que ao preço de seu Sangue, o que eles tinham "visto e ouvido" acerca de Jesus. Ora bem, como fica claro os Apóstolos fizeram isto pregando, ou seja, entregando oralmente o mistério da Salvação, já que, como dissemos, só alguns dos Apóstolos, passado já muito tempo de pregação, e sem pretender resumir em seus escritos aquilo "tudo" que Jesus lhes havia mandado (ver acima a citação de Mt. 28,20) escreveram algo do que pregavam (notemos que muitos dos escritos do Novo Testamento são cartas circunstanciais). Com isto queremos dizer que:

1. A nenhum dos Apóstolos lhe ocorreu jamais limitar os ensinamentos de Jesus ao que estavam escrevendo nesse momento;
2. A comunidade cristã do começo não se fundou sobre os escritos do Novo Testamento, mas sobre o ensinamento oral dos Apóstolos e discípulos do Senhor;
3. Milhares de cristãos da primitiva Igreja nunca leram nenhum texto do Novo Testamento.

Poderíamos concluir disto que a comunidade dos primeiros cristãos não conhecia a Palavra de Deus? Claro que não. A conhecia e muito bem, mas para eles (e para muitas igrejas particulares durante séculos) a Palavra de Deus foi entregue de maneira oral, pelo menos em sua quase totalidade.

[Fernando Saraví] Estes factos já foram comentados. Aqui cabe recordar que os primeiros cristãos – mesmo na época Apostólica - possuíam um conjunto de Escrituras que hoje chamamos Antigo Testamento.

[Juan Carlos] Ouvi dizer por aí que, chegado o tempo, Deus fez que se pusessem por escrito os ensinamentos evangélicos, para que não fossem deturpados pelo correr dos anos; hoje devemos ficar-nos com o que ficou escrito, que sem dúvida não contém erro, tudo o mais é perigoso, pouco confiável.

Em relação a isto digamos que tal afirmação está ainda por demonstrar: não se baseia em nenhum mandamento - pelo menos que conheçamos – do Senhor, nem em nenhuma decisão de algum Concílio da Igreja (como por exemplo o Concílio de Jerusalém, em Actos 15, onde a Igreja decide questões que iam aparecendo e sobre as quais Jesus, aparentemente, não tinha deixado uma norma clara de comportamento).

[Fernando Saraví] É um facto que o concílio de Jerusalém que citas pôs por escrito a sua decisão em vez de confiar somente na sua transmissão oral, mesmo tendo sido a carta levada por irmãos irrepreensíveis com São Paulo à cabeça:

"Pelo que eu julgo" – diz Tiago - "que não se inquiete os gentios que se convertem a Deus, mas SE LHES ESCREVA que se abstenham..." (Actos 15:19-20).

"Então pareceu bem aos apóstolos e aos anciãos, com toda a igreja, eleger alguns homens e enviá-los a Antioquia com Paulo e Barnabé; a Judas, que tinha por sobrenome Barsabás, a Silas, homens principais entre os irmãos, e ESCREVER por intermédio deles ... [segue o texto da carta]. Assim pois, os que foram enviados desceram a Antioquia e, reunindo a congregação, entregaram A CARTA. Tendo-a LIDO, alegraram-se pela consolação" (Actos 15:22-23, 30-31).

[Juan Carlos] Ou seja, a afirmação de que "Deus, vendo que algumas doutrinas corriam o risco de ir-se desviando, dá-nos os escritos do Novo Testamento" pode soar muito bem para alguns, mas a menos que conheçamos os pensamentos de Deus directamente, não a podemos defender com nenhum dado nem histórico nem bíblico, é uma hipótese. Eu poderia dizer, como hipótese, que não, que esse não foi o pensamento de Deus, que esse não foi o motivo pelo qual apareceram os escritos do Novo Testamento, e quem me poderia dizer que me equivoco?.

[Fernando Saraví] O teu raciocínio pode dividir-se em duas partes. Primeiro, os cristãos crêem que Deus actua na história e a dirige para os Seus próprios fins. Neste sentido, parece-me que nenhum cristão cabal negaria que as Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, foram providencialmente preservadas por Deus até aos nossos dias. A documentação textual da Bíblia excede amplamente em qualidade e quantidade a de qualquer outro documento da antiguidade comparável. Por outro lado, pode-se perguntar por que Deus fez isto. Aí sim há lugar para as conjecturas. A mim parece-me muito razoável isso que "ouviste dizer por aí", a saber, que a conservação providencial tinha pelo menos como um dos seus objectivos preservar o ensinamento original livre de corrupção, adição ou emendas. Não nego que possa existir uma melhor explicação, mas ainda não a ouvi.

[Juan Carlos] Sobre este ponto poderíamos aduzir outros aspectos, porém não é o que mais nos concerne agora.

Damos por adquirido, pois, que Jesus e os Apóstolos disseram e fizeram muitíssimo mais do que está escrito, e que na vida dos apóstolos se deram factos importantes que não ficaram por escrito (ou acaso alguém pode pensar que o trabalho dos Doze se limita ao pouco que o livro dos Actos dos Apóstolos relata, quase exclusivamente, sobre Pedro e Paulo?). E damos por adquirido também que se alguém pensa que o importante para nós é só o que ficou escrito, esse pensamento não é nem bíblico - não está em nenhuma parte na Bíblia, nem sequer insinuado, antes o contrário; nem é tampouco histórico - nunca ninguém pensou assim até aos últimos séculos da nossa era.

[Fernando Saraví] Parece que Jesus, Paulo e o resto dos Apóstolos de facto pensaram assim em relação ao Antigo Testamento – única Escritura em seus dias - já que jamais apelaram a fontes extra-bíblicas para provar, explicar ou ensinar acerca de Cristo.

O argumento de que Deus deve ter feito e dito muito mais do que está escrito aplica-se também ao período muito mais extenso que a Era Cristã do que Ele fez desde a criação do mundo até à época do Novo Testamento. De facto, os hebreus possuíam nos tempos de Jesus uma ampla variedade de tradições orais, que algumas seitas como a dos fariseus, colocavam à altura das Escrituras (de facto, dizia-se que no monte Sinai Moisés tinha recebido tanto a Lei escrita como a Lei oral). Jesus Cristo parece que não era de igual opinião. Para Ele a tradição não podia colocar-se ao mesmo nível, nem muito menos acima, da Escritura. A tradição era subordinada, optativa; a Escritura era soberana e obrigatória. Esta devia julgar aquela.

Portanto, o ponto de vista evangélico certamente é bíblico. O que Jesus e os Apóstolos fizeram em relação ao Antigo Testamento, os cristãos evangélicos o aplicam, por analogia, ao Novo Testamento.

Também é histórico. Diz-se que se se perdessem todas as cópias do Novo Testamento, se poderia reconstruí-lo com base nas citações patrísticas. Os escritores cristãos primitivos, apologistas, pastores e teólogos dos primeiros séculos, não apelavam a supostas tradições doutrinais mas às Escrituras. É certo que encontramos numerosas alusões à "regra de fé da Igreja" e à "tradição eclesiástica", mas não se trata de uma tradição doutrinal à parte das Escrituras, mas da forma tradicional de interpretá-las e aos usos e costumes. Para os Padres dos primeiros séculos, a Sagrada Escritura é a tradição doutrinal da Igreja, e o autêntico registo da tradição Apostólica. Assim, Tertuliano (160-220) diz que aos hereges não se lhes deve conceder o uso das Escrituras para redarguir, porque não lhes pertencem; as Escrituras são património da Igreja, base e fundamento da sua doutrina (J. Quasten, Patrología I, p. 569). "Porque onde vejamos certamente a verdade da doutrina e da fé cristã, aí indubitavelmente encontram-se também as verdadeiras Escrituras, a verdadeira interpretação, as verdadeiras tradições cristãs" (De Prescriptione Haereticorum, 20).

Por exemplo, nos escritos conservados de Orígenes, homem de vastíssima erudição, não encontramos apelos a tradições doutrinais extra-bíblicas, apesar de que, dadas as especulações deste Padre, tais tradições poderiam ter sido muito interessantes. Eusébio de Cesareia (Hist Ecl VI, 25:11-14) conservou as reflexões de Orígenes a propósito do autor de Hebreus, e todas elas se baseiam em evidências internas da epístola. Parece que no seu tempo (segunda metade do século III) não havia tradição confiável a tal respeito.

Ireneu de Lyon (ca. 140-205) escreveu: "...as Escrituras são na verdade perfeitas, sendo que elas foram faladas ou ditadas pela Palavra de Deus e pelo Seu Espírito..." (Adv Haer II, 28).

"Não aprendemos de nenhuns outros o plano da nossa salvação, senão daqueles por quem o evangelho nos chegou, o qual eles num tempo proclamaram em público e, num período posterior, pela vontade de Deus, o transmitiram a nós nas Escrituras, para ser o fundamento e a coluna da nossa fé" (Adv Haer III, 1,1).

Ireneu também tem a Igreja como depositária das Escrituras e possuidora de um entendimento correcto destas: "... mas melhor é que nos refugiemos na Igreja, sejamos educados em seu seio, e nos alimentemos da Escritura do Senhor" (Adv Haer V,20:2).

Numa carta a Florino conservada por Eusébio, Ireneu recorda Policarpo – segundo a tradição discípulo de São João Apóstolo - e o louva porque "tudo relatava em consonância com as Escrituras" (Hist Ecl V, 20:6).

Ainda João Crisóstomo (347-407) escreveu: "Possuímos a regra e o padrão mais exato e perfeito para regular as nossas diversas inquirições: refiro-me à regulação das leis divinas. Eu, portanto, gostaria que todos vocês rejeitassem o que este ou aquele homem diz, e que investigassem todas estas coisas nas Escrituras" (Hom. 13, 4:10 ad fin. in 2 Cor.). Parece que o insigne pregador não estaria de acordo contigo. Quasten recalca: "O maior orador sagrado da Igreja antiga baseia toda a sua pregação na Escritura" (o.c., p. 528).

Pela mesma época, Gregório de Nissa (330-395) afirmou: "Não nos está permitido afirmar o que nos aprouver. A Sagrada Escritura é, para nós, a norma e a medida de todos os dogmas. Aprovamos somente aquilo que podemos harmonizar com a intenção destes escritos"; "há algo mais confiável que qualquer destas conclusões artificiais, a saber, o que assinalam os ensinamentos da Sagrada Escritura; e assim eu considero necessário averiguar, além do que se disse [uma discussão metafísica] até que ponto este ensinamento inspirado harmoniza com tudo isso" (De anima et resurr.)

Igualmente Jerónimo (345-419), tradutor da Vulgata e o mais erudito de seu tempo, disse: "É uma arrogância criminosa acrescentar algo às Escrituras; o que está escrito, crê-o; o que não está escrito, não o busques" (Adv Helv).

Também o grande Agostinho de Hipona (354-430) era do mesmo parecer. O bispo pôs fim à sua controvérsia com os donatistas com o seguinte argumento: "Nada mais queremos ouvir de «tu dizes» e «eu digo», mas ouçamos o «Assim diz o Senhor». Indubitavelmente existem Livros do Senhor, a cuja autoridade ambos damos nosso consentimento, submissão e obediência; neles pois busquemos a igreja, e neles discutamos a nossa disputa". Nas suas Confissões (VI, 5: 2-3) declara: "Persuadiste-me de que não eram de repreender os que se apoiam na autoridade desses livros que Tu deste a tantos povos, mas antes os que neles não crêem... Porque nessa divina origem e nessa autoridade me pareceu que devia eu crer... Por isso, sendo eu fraco e incapaz de encontrar a verdade só com as forças da minha razão, compreendi que devia apoiar-me na autoridade das Escrituras; e que Tu não poderias dar para todos os povos semelhante autoridade se não quisesses que por ela te pudéssemos buscar e encontrar..."

Os exemplos poderiam multiplicar-se. De maneira que os Padres a partir do século II baseiam as suas doutrinas nas Escrituras e, ainda que se mostrem zelosos em conservar a tradição interpretativa eclesiástica, não apelam a tradições orais doutrinais. A ter existido tal coisa, deverá ter sido de natureza independente e secreta; mas é precisamente este género de tradição o que Ireneu severamente condena, por sua origem espúria (Adv Haer III, 3:1).

[Juan Carlos] Ora bem, suponhamos que na comunidade cristã do começo sucede um facto que não ficou por escrito, e ponhamos já mesmo um exemplo para fazer a questão mais prática e entendível: digamos que a Mãe do Senhor, conhecida e querida por todos os Apóstolos, que tinha estado junto a Jesus durante toda a sua vida, chegado o dia determinado por Deus morreu, e que quando foi visitada na sua sepultura por algumas pessoas, digamos para os ritos próprios dos funerais judeus, se depararam com que o seu corpo não estava mais ali. Este facto, que os católicos tomam por um "ensinamento entregue", uma "Tradição" com maiúscula (a Assunção da Virgem), o tomamos aqui pura e exclusivamente como uma suposição, já que, segundo vimos, certamente sucederam coisas que não ficaram por escrito.

[Fernando Saraví] É um exemplo muito interessante o que elegeste, já que as doutrinas marianas são um tema que separa profundamente católicos e evangélicos. Como bem sabes, a última vez que no Novo Testamento se menciona a Bem-aventurada Maria é em Actos 1:14, onde a achamos orando com os demais discípulos antes de Pentecostes. Depois do "nascimento" da Igreja em tal ocasião, não é mais mencionada pelo nome. Nada nos é dito dos seus feitos posteriores, nem sequer da sua morte ou assunção. Podem aduzir-se muitos raciocínios a tal respeito, e no que a mim concerne, se Enoque e Elias foram arrebatados aos céus, não vejo por que não pudesse sê-lo Santa Maria.

No entanto, o que aqui se discute é a validade da tradição que respalda este dogma. Se alguém ler no Denzinger a definição da Assunção feita em 1950 – levou 19 séculos decidir que era um dogma de fé - notará que se recorre aos textos bíblicos e inclusive à mais antiga tradição patrística (por exemplo Ireneu) para justificar certos raciocínios, mas de modo algum para demonstrar com o testemunho dos Padres, que esta doutrina fosse crida por eles ou parte da suposta tradição extra-bíblica conservada na Igreja.

É um facto por todos reconhecido que não há evidência de que alguém soubesse alguma coisa da assunção corporal de Maria durante os primeiros séculos; com efeito, esta noção aparece pela primeira vez em fontes extremamente duvidosas, nas quais não confiariam os católicos noutros aspectos. No seu Manual de Teologia Dogmática diz Ludwig Ott: "A ideia da assunção corporal da Virgem encontra-se expressa primeiramente nos relatos apócrifos sobre o trânsito da Virgem, que datam dos séculos V e VI... O primeiro escritor eclesiástico que fala da assunção corporal de Maria, seguindo um relato apócrifo do Transitus B.M.V. é Gregório de Tours (m. 594)..." (p. 328).

Quer dizer que neste caso, como em muitos outros em que se apela à tradição oral para fundamentar o que hoje se crê, não existe ponta de evidência de que a informação provenha dos Apóstolos. Além do mais, em alguns casos como o do exemplo que escolheste, a evidência disponível assinala a sua origem marginal e extra-apostólica, de escritos desprovidos de valor em relação aos factos do primeiro século. Se este critério se aplicasse consistentemente a toda a teologia, e não selectivamente a parte dela, quem sabe onde estaríamos, doutrinalmente falando.

[Juan Carlos] Neste suposto caso, e em todos os demais casos que certamente ocorreram, ou seja, nos milhares de factos acontecidos durante a vida de Jesus e dos Apóstolos, e no extensíssimo ensinamento de Jesus e dos Apóstolos que não ficou por escrito (que "não caberiam no mundo os livros que se precisariam escrever" Jo 21,25) que coisa devia fazer a Igreja, ou seja, a comunidade de crentes? Esquecer-se? Por que devia esquecer-se, se a sua missão era precisamente transmitir tudo o que eles tinham visto e ouvido? Em que momento da história da Igreja se tomou a decisão de "esquecer" os eventos que os autores sagrados não tinham deixado por escrito?

Que deve fazer um crente do século XX ao ler 2 Tes 2,13-15?

"... Assim pois, irmãos, mantende-vos firmes e conservai as tradições que haveis aprendido de nós, de viva voz ou por carta."

Baseado em que princípio devo dizer agora que aquilo que se ensinou "de viva voz" há que esquecê-lo e ficar só com o que se entregou "por carta"?

Não se deu conta São Paulo do "perigoso" que era dizer que havia que obedecer às tradições orais…?

Os católicos, por seu lado, continuam mantendo que é preciso conservar ambas as doutrinas, a que foi entregue por carta e a que foi entregue oralmente pelos pastores da Igreja; "ambas" as doutrinas que são uma mesma doutrina comunicada por distintos canais, mas que se complementam, se aperfeiçoam, se explicam mutuamente. Assim era no começo e eles não vêem porque agora devam limitar o ensinamento ao que ficou escrito. Se Deus assim o ensinasse, por exemplo através de algum dos Apóstolos, então haveria que aceitá-lo com gosto. Porém, como dissemos, não existe nenhum motivo que nos permita pensar racionalmente que agora devemos deixar de prestar atenção à Tradição oral.

Em que consiste essa Tradição? Em toda a mensagem evangélica de salvação que pregou a Igreja começando com os Apóstolos ao longo dos séculos através de seus pastores, que devem pregar a toda a criação, "ensinando-lhes a guardar tudo o que eu vos mandei; e eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo", mesmo desaparecidos já os Apóstolos do Senhor, como por exemplo no século XX… Também hoje Jesus está com aqueles aos quais os Apóstolos impunham as mãos, bispos, presbíteros e diáconos (1 Tim 5:22; Tito 1,7; Fil 1,1), que têm a obrigação de pregar em nome de Jesus, de tal modo que "quem a vós ouve a mim me ouve, e quem a vós rejeita a mim me rejeita, e rejeita aquele que me enviou" (Lc 10:16). Mas esse já é outro tema, que com gosto trataremos, se Deus quiser, em outro escrito.

[Fernando Saraví] Para um evangélico sério, é chamativo que desde o estabelecimento da Igreja de Roma como mais do que uma "primeira entre iguais", não se tenha delimitado, definido e exposto claramente qual é o conteúdo preciso da suposta tradição doutrinal apostólica; ou seja, quais são exactamente os seus limites. Tal como se deram as coisas, definiram-se como parte de dita tradição dogmas – como a imaculada concepção de Maria ou a infalibilidade papal - que não podem traçar-se claramente nem nas Escrituras nem nos Padres e que, de facto, muito antes da sua definição, foram objecto de ampla e animada discussão entre os próprios teólogos católicos. O "depósito da Tradição" oral permanece até hoje com limites difusos, e as poucas definições que se fizeram mostram quão pouco confiável é tal suposta tradição. Os evangélicos mostram para com ela a mesma atitude que Jesus e os Apóstolos mostraram para com as tradições orais do seu tempo. Cremos que a sucessão Apostólica se exprime na conformidade com a doutrina dos Apóstolos, e esta encontra-se expressa perpetuamente de modo confiável e certo somente no Novo Testamento.

[Juan Carlos] Querido irmão evangélico que me leste até este ponto: agradeço-te o teu interesse e paciência, que falam bem do teu empenho pela verdade que nos fará livres a ti e a mim. Peço-te que reflictas estas coisas, porque são assuntos importantes, de vida eterna. Agradecer-te-ia enormemente que me envies alguma linha de resposta a estas questões que te expus, ou sobre algum outro tema que estejas aprofundar, ou alguma tradução que queiras corroborar, etc. Graças a Deus posso ler (pelo menos tentá-lo!) os textos originais em hebreu e grego, e posso-te ajudar. Tenho um só interesse: fazer-te o bem.

[Fernando Saraví] É nesse espírito que dizes que eu também respondi. Desde já, espero as tuas observações sobre os meus comentários. Obrigado pelo esforço que fizeste, e que Deus abençoe a tua vida e serviço. No amor, no serviço e na fraternidade de Cristo.


[1] O artigo original do P. Juan Carlos Sack pode ser visto em apologetica.org existindo também uma tradução em português deste artigo em veritatis.com.br

sábado, 5 de dezembro de 2009

Em defesa de Sola Scriptura


Antes de referir-nos ao artigo traduzido e publicado em apologeticacatolica.org com o título "Bíblia e Tradição...", convém resumir – para evitar mal-entendidos - o que os evangélicos entendem por Sola Scriptura. Digo isto porque embora "Sola Scriptura" – somente a Bíblia - possa tomar-se como uma declaração que não necessita de comentários, na realidade não é assim. Ocorre mais ou menos como com a teoria da Relatividade... que não significa que "tudo é relativo". Sola Scriptura significa:

1. Que a Bíblia é a única regra infalível da fé (doutrina) e da prática (costumes).

2. Que o ensino da Bíblia é suficiente para que as pessoas aceitem Jesus Cristo como Senhor e Salvador, e fazendo o que ela diz, alcancem a vida eterna.

Corolários:

1. A Igreja de Jesus Cristo não necessita de revelações que não se achem explicitamente ou por lógica e clara implicação na Bíblia.

2. Não há outra regra infalível de fé fora das Escrituras.

Por outro lado, Sola Scriptura NÃO significa:

1. Que a Bíblia contenha absolutamente tudo o que Deus disse e fez.

2. Que a Palavra de Deus não se tenha transmitido oralmente em muitas ocasiões e situações históricas.

3. Que a Igreja careça de autoridade para interpretar, ensinar e defender a Palavra de Deus.

4. Que toda a tradição não escrita deva ser rejeitada a priori e a fortiori.

Os cristãos evangélicos crêem que a Igreja é coluna e fundamento da verdade, que deve ter mestres piedosos e conhecedores das Escrituras, e que muitas tradições são expressões válidas da fé cristã. Aceitam as expressões normativas dos Credos dos primeiros concílios ecuménicos, e levam a sério os ensinos dos Padres, assim como dos muitos e muito bons mestres, doutores e comentaristas que Deus deu à Igreja ao longo dos séculos. Não crêem que a Escritura seja de interpretação privada (livre interpretação), mas sustentam o princípio do Livre Exame.

Se aceitam algumas coisas e rejeitam outras, o fazem com base no que consideram ser os ensinos das Escrituras. O ensino da tradição – sim, mesmo da sua própria tradição - , dos concílios, dos Padres, etc, deve conformar-se às Escrituras, que são a Palavra final, inspirada e infalível de Deus.

Agora dirijamo-nos ao artigo em questão, e vejamos o quão firmemente estabelece a sua tese, e no final incluirei um resumo das razões bíblicas que nos obrigam a reafirmar o princípio de Sola Scriptura.

O autor (Armstrong) reconhece que os Protestantes não ignoram "a importância e validade da história da Igreja, da Tradição, dos Concílios ecuménicos, ou da autoridade dos Padres da Igreja e destacados teólogos. A diferença reside na relativa posição de autoridade mantida pela Escritura e pelas instituições e decretos da Igreja."

Note-se que o autor sabe perfeitamente que a diferença fundamental não é a rejeição de qualquer outra autoridade além das Escrituras, ainda que aquela se considere subordinada a estas. Contudo, depois se afirma que "A prevalência do sola Scriptura, de acordo ao pensamento católico, facilitou uma estendidíssima ignorância e desprezo da história da Igreja entre os protestantes comuns."

Suponho que a obscura referência aos protestantes "comuns" se referirá àqueles mais ignorantes. Deveria ser óbvio que ainda que tal coisa seja verdade, não é menos certo que os católicos "comuns" são tão ou mais ignorantes da história, e por acréscimo das Escrituras. Limitam-se a assentir sem examinar tudo quanto a sua Igreja diga que é certo. Quanto ao conhecimento da história entre os católicos, pois, deve referir-se aos católicos cultos, que então deveriam comparar-se com os protestantes instruídos; e neste caso o suposto desnível desaparece ou inclusive se inverte.

"O Catolicismo afirma que a sua Tradição é nem mais nem menos que a conservação do ensino de Cristo tal e como foi revelado e proclamado pelos Apóstolos. Existe um desenvolvimento, mas apenas no sentido de um aumento do entendimento que não na essência, desta Tradição apostólica. O Catolicismo afirma ser o guardião e custódio do depósito original da fé a qual foi uma vez entregue aos santos (Judas 3)."

Deve tomar-se cuidadosa nota deste parágrafo, segundo o qual, e em conformidade com a doutrina católica, se sustenta que a Tradição que a Igreja de Roma considera inspirada e portanto dotada de suprema autoridade não é toda a tradição que possa ter essa ou outras igrejas, mas aquelas que remontam directamente ao Senhor e aos Apóstolos.

"Deve anotar-se também que a palavra escrita e a massa enorme de literatura foi propagada amplamente apenas desde a invenção da imprensa por volta de 1440. Desse modo, essa palavra escrita não pôde ter sido a principal transmissora do evangelho durante pelo menos catorze séculos. Os cristãos anteriores no tempo à Reforma Protestante aprenderam sobretudo através das homilias, dos sacramentos, da liturgia e seu calendário anual, das festas cristãs, das práticas devocionais, instrução familiar, arquitectura eclesial e outro tipo de arte sacra que reflectia temas bíblicos. Para todos esses crentes, o sola Scriptura teria sido claramente uma absurda abstracção de impossível colocação em prática."

Eis aqui uma falácia repetida até à exaustão pelos apologistas católicos. É tão óbvia que deveria pelo menos dar-lhes vergonha de repeti-la. A existência de milhares de manuscritos bíblicos indica que, por muito tempo, os cristãos puderam fazer para si cópias de parte ou de toda a Bíblia, mas este não é o ponto.

Os protestantes não afirmam que a Palavra escrita tenha sido o principal veículo de transmissão, mas que é a fonte definitiva da Verdade revelada. Por ela é possível julgar as homilias, os sacramentos, a liturgia, etc. A questão é se a nossa pregação e as nossas práticas são conformes às Escrituras, não se cada cristão que existiu tinha uma Bíblia. Portanto, o argumento além de falacioso é irrelevante.

"Apenas um preconceito prévio contra tal noção ou uma indevida fixação na rejeição por parte de Cristo do corrupto, tradições humanas farisaicas, poderia cegar alguém perante a considerável força dos dados escriturais. Dito de outra forma, a Escritura não ensina o sola Scriptura, um conceito que se baseia no uso de um documento (a Bíblia) contrariamente ao que o próprio documento testemunha explícita e implicitamente."

A isto se responde no final.

"É absurdo para qualquer cristão desdenhar o que Deus ensinou a milhões de outros cristãos ao longo dos séculos."

Não posso interpretar este parágrafo senão como um profundo preconceito contra os evangélicos. Quem terá dito a este bom senhor que em conjunto desprezamos os santos e os sábios do passado? A questão não é essa, isto não é o que se discute. O que está em jogo é a norma final de autoridade: Bíblia ou Bíblia mais tradição apostólica.

Note-se que aqui se contrapõe Sola Scriptura com "o que Deus ensinou a milhões de outros cristãos ao longo dos séculos." Aqui deixa transparecer - involuntariamente, suponho - a verdadeira origem e natureza da tradição católica, a saber, a religiosidade popular das massas. Porém, esta tradição secular NÃO é a que nominalmente defende Roma, já que teoricamente esta última tradição não foi dada às massas nem ao longo de séculos, mas proviria directamente do Senhor e dos seus Apóstolos, que a receberam num intervalo de décadas. Contudo, na prática Roma confunde uma com outra, e de facto atribui sanção dominical e apostólica a coisas que provêm da religiosidade popular.

"No Novo Testamento, em primeiro lugar, encontramos um testemunho bem claro do facto de que a Escritura não contém todo o ensino de Cristo. Presumivelmente ninguém negaria isto, mas os Protestantes costumam negar que qualquer dos Seus ensinos não recolhidos na Escritura poderiam ter sido fielmente transmitidos oralmente pela primitiva tradição apostólica."

Não existe razão a priori para negar que alguns ensinos do Senhor que não estão nas Escrituras poderiam ter-se transmitido por tradição oral. Deus é soberano, e pode fazer as coisas como a Ele lhe aprouver. Não corresponde a nenhum ser humano dizer a Deus como fazer melhor as coisas... O problema surge quando queremos determinar a este respeito qual foi a vontade de Deus.

É certo que a investigação histórica sugere que alguns ditos de Jesus poderiam ter-se conservado fora do Novo Testamento (por exemplo, Joachim Jeremias, "Palabras desconocidas de Jesús", trad. cast., Salamanca: Sígueme, 1979). Mas isto é por sua própria natureza duvidoso, e em todo o caso não afecta as doutrinas centrais do cristianismo.

Por outro lado, a própria Bíblia dá testemunho do pouco confiável que é a tradição oral no médio ou longo prazo. "Por isso o dito se propagou entre os irmãos que aquele discípulo não morreria, mas Jesus não disse que não morreria..." (João 21:23). João obviamente corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea.

Ora bem, segundo o dogma romano, o depósito da tradição apostólica oral ficou fixado no primeiro século, e não é possível tirar nem acrescentar nada a ele (ainda que se admita a noção de "desenvolvimento" tão habilmente proposta pelo Cardeal Newman). Ainda que a Igreja de Roma tenha apelado a tal suposta Tradição oral apostólica (como ao duvidoso "consenso unânime dos Padres) para definir alguns dogmas, o protestante se pergunta – e o católico deveria perguntar-se - o seguinte: por que estranha razão nos séculos decorridos desde o tempo dos Apóstolos, a Igreja de Roma não determinou e enunciou os limites precisos da tradição que diz zelosamente guardar? Por certo, as pretensões do romanismo poderiam levar-se mais a sério se o Papa por si ou mediante uma comissão realizasse tal tarefa. Até que se demonstre o contrário, cabe pensar que a tradição apostólica oral não é mais real do que o traje novo do imperador.

O nosso apologista romano apela depois aos seguintes "textos de prova":

"Marcos 4:33 E lhes anunciava a Palavra com muitas parábolas como estas . . .

Em outras palavras, como se entende, muitas parábolas não estão recolhidas na Escritura"

O Evangelho de Marcos não apresenta senão nove do total de 46 parábolas de Jesus que se encontram nos Evangelhos. Portanto, é lógico pensar que Marcos se refere às outras 35, e portanto a afirmação que "muitas parábolas não estão recolhidas na Escritura" é gratuita.

"Marcos 6:34 . . . e começou a ensinar-lhes muitas coisas.

Nenhuma destas muitas coisas está reflectida aí

João 16:12 Ainda tenho muito que vos dizer; mas vós não o podeis suportar agora.

Talvez, este muito foi falado durante as suas aparições depois da Ressurreição, às quais se alude em Actos 1:2-3 (ver mais abaixo). Muito poucos destes ensinos se guardaram por escrito, e aqueles que o foram, contêm apenas mínimos detalhes."

Se o Novo Testamento concluísse com os Evangelhos, o argumento baseado nestes textos e em Actos 1:2-3 teria algum mérito. Contudo, os Apóstolos evidentemente receberam e ensinaram "muitas coisas" que não se encontram nos Evangelhos mas estão registadas nos Actos, nas Epístolas e no Apocalipse. Em outras palavras, cerca da metade do Novo Testamento é dedicado a estes ensinos. O romanista vê-se obrigado a ocultar este facto tão evidente para buscar apoio para a sua tese.

"João 20:30 Jesus realizou em presença dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro."

Aqui esqueceu-se do contexto, ao qual reconhece tanta importância na hora de refutar os evangélicos. O versículo 31 continua: "Mas estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome." Nem o propósito de João nem o de nenhum dos Sinópticos parece ser proporcionar um registo exaustivo. O mesmo vale para João 21:25. Ao que parece o Espírito Santo não o considerou necessário. Além disso, a afirmação de João refere-se somente ao quarto Evangelho, que como é bem sabido é muito parco quanto aos milagres do Senhor, enquanto os sinópticos contêm muitos outros sinais que fez Jesus.

"Se a qualquer protestante evangélico instruído se lhe pede que defina, segundo a Bíblia, qual é a coluna e fundamento da verdade, seguramente responderia: "a própria Bíblia, claro". Mas no entanto a Escritura não se pronuncia assim; declara, em perfeito acordo com o Catolicismo e em oposição ao sola Scriptura:

. . . a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade. (1 Timóteo 3:15)

Outras traduções da Bíblia vertem fundamento como bastião, baluarte, ou pilar."

Os evangélicos instruídos conhecem certamente esta passagem, como também aquela de Efésios que diz que a Igreja é edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a sua pedra angular. De modo que não ignoram que a Igreja de Deus é coluna (stylos) e baluarte (edraioma) da verdade. Antes o afirmam. A igreja deve defender a Verdade, que se encontra na Palavra de Deus. Não há contradição alguma com o princípio de Sola Scriptura.

"É bastante evidente que esta passagem [2 Timóteo 3:16] não fornece nenhum argumento acerca de que a Sagrada Escritura, sem a Tradição, é a única regra de fé; porque ainda que a Sagrada Escritura seja útil para estes fins, não obstante não se diz que seja suficiente."

Aqui o apologista romano se enreda com as suas palavras, pois ele já reconheceu que os protestantes em conjunto NÃO ensinam que as Escrituras sejam a única regra de fé. Do contrário, rejeitaríamos todos os credos, concílios, catecismos, e de facto tudo o que não fosse o próprio texto da Escritura. O que afirmamos, sustentamos e defendemos é que é a regra suprema, final, inapelável. Todas as demais devem conformar-se às Escrituras e subordinar-se a elas.

"O Apóstolo busca a ajuda da Tradição (2ª Tessalonicenses 2:15)."

Significativamente, este texto menciona-se mas não se cita: "Assim que, irmãos, estai firmes e retende a doutrina que haveis aprendido, seja por palavra ou por carta nossa."

Paulo não busca aqui uma ajuda extra da tradição, mas exorta os tessalonicenses a reter a doutrina que receberam oralmente ou por escrito. Não há nenhuma razão para pensar que o que Paulo ensinava oralmente fosse diferente do que expressou por escrito no conjunto das suas epístolas. Por exemplo, quando fala do homem do pecado uns versículos antes, no mesmo contexto, pergunta: "Não vos lembrais que quando eu estava convosco vos dizia isto?" Em outros termos, está a colocar por escrito o que já tinha ensinado oralmente. Além disso, naquelas coisas que não resultam óbvias das epístolas – por exemplo, o que detém o "mistério da iniquidade", v. 5-7 – os intérpretes católicos não se encontram em melhor posição do que os protestantes. Por exemplo, Lorenzo Turrado escreve: "Quanto ao «obstáculo» a problemática é ainda maior. Não é possível precisar a natureza desse obstáculo ou impedimento que está a deter a manifestação do Anticristo" (Profesores de Salamanca - Biblia Comentada; Madrid: BAC, 2ª Ed., 1975, vol. VI b, p. 360). Mas esta afirmação é incompreensível se, como afirma a Igreja Católica, ela conservou os ensinos não escritos dos Apóstolos!!! Bastaria olhar para o depósito da tradição apostólica em vez de fazer ociosas conjecturas. Mas a Tradição oral falha miseravelmente justamente onde seria mais necessária.

"Mais ainda, o Apóstolo faz aqui referência às Escrituras que Timóteo tinha aprendido na sua infância. Ora, uma boa parte do Novo Testamento não foi escrito na sua meninice: algumas das Epístolas Católicas nem sequer tinham sido escritas quando São Paulo escreveu isto, e nenhum dos livros do Novo Testamento estavam postos então no cânon dos livros da Escritura. Ele se refere, então, às Escrituras do Antigo Testamento, e se o argumento desta passagem prova alguma coisa, é que as Escrituras do Novo Testamento não eram necessárias para a regra de fé. É necessário sublinhar que esta passagem não fornece prova alguma da inspiração de vários dos livros da Sagrada Escritura, inclusive dos que são admitidos como tais.. porque não se nos diz.. quais são os livros ou porções da Escritura inspirados."

Não há muita dúvida de que Paulo se refere primariamente ao Antigo Testamento. No entanto, o nosso amigo católico confunde as coisas – suponho que involuntariamente – com o seu argumento. A declaração de Paulo diz respeito à natureza das Escrituras. Não é uma declaração respeitante ao cânon, ou seja, à lista dos livros que se consideram inspirados. À semelhança de Jesus, quando disse aos judeus que esquadrinhassem as Escrituras, dá-se por adquirido que existia um conjunto definido e conhecido de livros que eram inspirados. De novo, Paulo se refere ao valor da Escritura. Na medida em que aos livros que preservam o ensino apostólico e hoje formam o nosso Novo Testamento se lhes reconhece o status de Escritura, se lhes aplica igualmente e sem nenhuma dificuldade o dito por Paulo a Timóteo.

Todo o resto do argumento, como o apelo a Efésios 4:11-15, se assanha inutilmente com uma noção alheia ao princípio de Sola Scriptura, a saber, que a norma única e exclusiva e que o ministério docente da Igreja carece de valor. O apologista perde o seu tempo ao tentar convencer-nos do que já cremos... porque o ensina a Escritura. Isso não significa, como injustificadamente conclui, que o ministério docente e a Escritura estejam ao mesmo nível: aquele deve submeter-se a esta.

"1ª Coríntios 4:6 . . . para que aprendais de nós mesmos a "não ir além do que está escrito", e para que ninguém se ensoberbeça a favor de um contra outro.

... o significado parece bastante claro quando se leva em consideração todo o contexto (pelo menos os versículos 3-6). Este princípio básico da interpretação bíblica (o contexto) é frequentemente abandonado, inclusive por bons eruditos, presumivelmente devido a preconceitos prévios.

Tem-se simplesmente que ler a frase que se segue ao "texto de prova" para ver o que é que São Paulo está a querer dizer. Toda a passagem é uma exortação ética para evitar o orgulho, a arrogância e o favoritismo, e desta maneira, não tem nada que ver com a ideia da Bíblia e da palavra escrita como algum tipo de padrão global de autoridade acima da Igreja.

... Assumindo que ele se está referindo ao Antigo Testamento (tal é a interpretação mais directa), isto não provaria, de novo, nada, porque ele não estaria incluindo todo o Novo Testamento, cujo cânon não foi determinado até 397 A.D."

Sobre esta passagem comenta o P. Lorenzo Turrado:

"Quanto a «não ir além do que está escrito» parece ser uma expressão proverbial para indicar que em nossas apreciações não se deve ir além da norma objectiva, e, neste caso, do que exige a natureza do ministério apostólico. Alguns autores, no entanto, crêem que se trata de uma citação bíblica, aludindo a toda a Escritura em geral, ou a algum dos textos citados anteriormente (cf. 1,19.31; 3,19). Cremos mais provável a primeira explicação." (o.c, p. 42).

O contexto da passagem está claramente relacionado com as facções existentes em Corinto, e Paulo estabelece aqui como princípio a validade superior do escrito sobre as opiniões humanas ("carnais" segundo 3:1-4).

Ao dirigir-se aos coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo recomenda que, "como está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf. Jer 9:23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "não ir além do que está escrito" (4:6). Seja como for que se veja este versículo, parece claro que para São Paulo o escrito tinha um carácter normativo que ia para lá dos pareceres individuais. O facto de que o NT estivesse então em processo de escrita não nega a sua autoridade quando tal processo se completou.

"Apesar de nenhuma maneira ser evidente que toda a verdade religiosa está num número de obras, ainda que sejam sagradas, as quais foram escritas em diferentes épocas, e nem sempre formaram um livro; de facto, essa é uma doutrina muito difícil de provar . . . É uma presunção estabelecida tão profundamente no sentir popular dos protestantes, que é um trabalho de grande dificuldade o obter deles um reconhecimento de que é uma presunção."

Não há razão para pensar que a Bíblia tem "tudo"; os evangélicos afirmam que tem tudo o que necessitamos saber em ordem à salvação. Não existe inconveniente em reconhecer o que é um facto histórico, a saber, que durante as suas primeiras décadas desde o baptismo de Jesus até às primeiras epístolas, o cristianismo se proclamou de maneira predominantemente oral (ainda que com base no Antigo Testamento). Também é evidente que "toda a verdade religiosa" (que incluiria grandes mistérios sobre o ser de Deus, por exemplo) não se encontra em nenhuma "obra", nem sequer na Bíblia, já que aí está escrito "as coisas secretas pertencem a Yahweh". A questão é se realmente existe outra fonte igualmente confiável que suplemente o que à Bíblia lhe falta. Os católicos dizem que sim, mas na hora de mostrar a evidência de tais supostas tradições apostólicas, tudo fica em declarações vagas e insubstanciais. É difícil evitar a impressão de que estamos simplesmente perante uma tentativa não de estabelecer a verdade, mas de sustentar a posição romana.

Breve reafirmação do princípio de Sola Scriptura

É curioso que os nossos irmãos católicos, que frequentemente nos criticam quando recorremos a "textos de prova", neste tema em particular utilizem precisamente esse enfoque. No entanto, o conjunto do ensino do Novo Testamento nos mostra que:

[1] Jesus advertiu muito seriamente contra invalidar as Escrituras – obrigatórias e inspiradas - por causa da tradição oral (Mar. 7:8-9 e par.). Não falamos aqui de quaisquer tradições, mas das tradições religiosas piedosamente transmitidas e conservadas pelos mestres do seu tempo.

[2] Além da Sua própria Palavra de plena autoridade, o Senhor recorreu sempre às Escrituras para decidir qualquer controvérsia.

[3] Jesus Cristo nunca acusou os judeus de ignorar as tradições orais, mas de não compreender que as Escrituras davam testemunho d`Ele (João 5:39).

[4] Aos Saduceus, que rejeitavam a tradição oral dos fariseus, o Senhor não lhes reprovou isso, mas sim o desconhecer "as Escrituras e o poder de Deus" (Mar. 12:24-27 e par.).

[5] Os Apóstolos e alguns dos seus condiscípulos (como Marcos ou Lucas) consideraram apropriado – inspirados seguramente pelo Espírito Santo - pôr por escrito os seus ensinamentos, como Moisés, Isaías e o resto dos autores humanos do AT puseram por escrito os seus.

[6] São Paulo afirma a natureza essencialmente inspirada das Escrituras e a sua absoluta suficiência quando escreve a Timóteo (2 Tim 3:15-17); o facto de o Apóstolo se referir ao AT não modifica o seu juízo sobre a natureza da Escritura quanto ao seu carácter normativo.

[7] Os escritos apostólicos são considerados "Escritura" (2 Pedro 3:15-16; 1 Tim 5:18 comparado com Lucas 10:7).

[8] Considera-se louvável que os que ouviam os Apóstolos vissem por si mesmos se a pregação era consistente com o já revelado por escrito no AT (Actos 17:11).

[9] Ao dirigir-se aos Coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo recomenda que, "como está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf. Jer 9:23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "a não ir além do que está escrito" (4:6). Seja como for que se veja este versículo, parece claro que para São Paulo o escrito tinha um carácter normativo que ia para lá dos pareceres individuais.

[10] A própria Bíblia dá testemunho do pouco confiável que é a tradição oral no médio ou longo prazo. "Por isso o dito se propagou entre os irmãos que aquele discípulo não morreria, mas Jesus não disse que não morreria..." (João 21:23). São João obviamente corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea.

Durante um intervalo de cerca de mil anos, o tempo que demorou a formar-se o Antigo Testamento, Deus falou de muitas maneiras e em repetidas ocasiões, mas foi inculcando no povo judeu o valor das Escrituras. No caso do Novo Testamento, o intervalo entre os ensinos divinos e a sua colocação por escrito foi vinte vezes menor. A quantidade e qualidade de informação histórica, doutrinal e prática do Novo Testamento não pode comparar-se com as tradições orais, muitas vezes duvidosas, que se encontram nos escritos dos Padres. O apelo válido à tradição nos Padres refere-se à compreensão e aplicação da doutrina estabelecida firmemente nas Escrituras. E, naturalmente, sabemos hoje que apelaram a esta tradição interpretativa... porque eles próprios o puseram por escrito.
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