segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Resposta a “Uma pergunta para um irmão evangélico sério” do Padre Juan Carlos Sack [1]


Deve a Igreja esquecer o que não está escrito?

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O P. Juan Carlos Sack é um sacerdote católico missionário na Rússia, actualmente cursando estudos exegéticos em Roma. Responderá com todo o gosto às suas perguntas ou sugestões. apologetica@ive.org
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[Juan Carlos] É por todos conhecido o facto que tantas religiões e movimentos religiosos evangélicos veneram as Sagradas Escrituras com uma reverência e amor apreciáveis. Deles, creio eu, bem podem aprender tantos católicos que, por um motivo ou outro, não
levam à prática aquelas palavras do último Concílio Universal da Igreja, a saber, o Concílio Vaticano II, quando nos ensina que "é tão grande o poder e a força da palavra de Deus, que constitui o sustento e vigor da Igreja, firmeza de fé para seus filhos, alimento da alma, fonte límpida e perene de vida espiritual… Os fiéis devem ter fácil acesso à Sagrada Escritura" (DV 21 e 22).

Ora bem, também é conhecido por todos a rejeição que estes nossos irmãos manifestam, em geral, por tudo aquilo que não se encontra explícita ou, ao menos, implicitamente nas Sagradas Escrituras.

[Fernando Saraví] Esta "rejeição" não é generalizada nem indiscriminada, mas se refere a considerar em pé de igualdade com as Sagradas Escrituras doutrinas ou práticas que, como correctamente dizes, não se encontram explícita ou implicitamente nelas.

[Juan Carlos] Ou seja, coincidimos com estes nossos irmãos no amor e na veneração às Sagradas Escrituras, mas diferimos quando eles dizem que só aquilo que se encontra nas Sagradas Escrituras é digno de ser tomado como mensagem certa de Deus para nossa salvação. O católico afirma que a Palavra de Deus escrita está contida, sim, exclusivamente nas Sagradas Escrituras, porém a Palavra de Deus não é só aquela que se pôs por escrito nas Escrituras, mas a Palavra de Deus excede as Escrituras: a prova está em que Jesus, o grande revelador do Pai, "fez e disse muitas outras coisas que não se encontram escritas neste livro", e que, obviamente, podemos considerar como Palavra de Deus, embora não escrita, mas oral.

[Fernando Saraví] Não pode negar-se que a Palavra de Deus excede as Escrituras, nem que existem muitas outras coisas que fez e disse Jesus que não se encontram no Evangelho segundo São João (obviamente, "este livro" não se refere a todo o Novo Testamento). Na realidade, muitas destas outras coisas encontram-se nos Evangelhos sinópticos, os quais João complementa, e em dados dispersos nos Actos, nas Epístolas e no Apocalipse. No entanto, ninguém no seu perfeito juízo afirmaria que aí está absolutamente tudo o que Deus disse e fez.

O que o evangélico sério se pergunta e pergunta ao seu não menos sério irmão católico é: Até que ponto podem ser relevantes para a doutrina e a prática as coisas que os autores do Novo Testamento, inspirados pelo Espírito Santo, declinaram incluir nos seus escritos?

Uma segunda pergunta estreitamente relacionada seria quais foram os critérios que guiaram os autores do Novo Testamento para a selecção do material proveniente da revelação divina que finalmente incluíram?

Outra pergunta mais que o evangélico se faz é: com que critério extrair-se-á da tradição oral, o que realmente corresponde aos ensinamentos de Jesus e dos seus Apóstolos de adições posteriores ou estranhas? Simplesmente para dar um exemplo, Ireneu e outros autores citam ditos de Pápias de Hierápolis que supostamente remontam aos Apóstolos, mas que quase certamente são erróneos (por exemplo, sobre a morte de Judas Iscariotes, Felipe e suas filhas, ou o reino milenário).

[Juan Carlos] Esta Palavra de Deus transmitida por Jesus e os Apóstolos oral e literalmente é chamada tecnicamente Tradição, escrita aqui a propósito com maiúscula, para diferenciá-la do que entendemos habitualmente por "tradições", ou seja, costumes de origem mais ou menos desconhecida que se vão repetindo de geração em geração, e cuja única autoridade é "que assim se faz", e basta. Semelhantes "tradições", quando são de carácter religioso, podem ser boas ou más, podem mudar ou permanecer, podem aumentar ou diminuir, podem desaparecer.

A Tradição (com maiúsculas) da Igreja tem a sua origem em Jesus Cristo e nos Apóstolos e se entrega de geração em geração por meio da pregação e da celebração dos mistérios da salvação, sob a guia do Espírito Santo. A palavra "tradição", como se sabe, vem do latim "tradere", que significa "entregar". Neste sentido as Sagradas Escrituras são parte da Tradição que recebemos de nossos antepassados na fé; ou seja, a Bíblia é uma mensagem que tem sido "entregue" de geração em geração, sob a guia do Espírito Santo.

[Fernando Saraví] Em minha opinião, a distinção deve traçar-se entre uma tradição doutrinal e uma tradição interpretativa e usual, ou seja, entre o que constitui o ensinamento inspirado pelo Espírito Santo (seria a Tradição com maiúscula) e o que é a forma de interpretá-lo e a maneira em que se fazem as coisas (costumes). A Bíblia é, para todos os cristãos, o depósito da Revelação, a verdadeira e segura Tradição da Igreja de Jesus Cristo. Tudo o mais pode ter-se em conta – por exemplo, os escritos dos Padres primitivos – mas deve ser julgado à luz da Escritura.

[Juan Carlos] Porém, conforme dissemos, os cristãos assim chamados "evangélicos" negam que devamos dar ouvidos a qualquer outra "Tradição" que não seja esta Tradição escrita, ou seja a Bíblia. A Igreja Católica, ao contrário, sustenta que aquela Sagrada Tradição (ou "ensinamento da salvação entregue") que devemos manter e conservar é mais ampla do que a Sagrada Escritura, e, digamo-lo desde já, não se opõe a ela nem a contradiz, já que se trata de uma mesma Tradição que se "entrega" sob duas formas distintas: escrita e oral.

[Fernando Saraví] Qualquer grupo humano desenvolve certa tradição e é natural e lógico que assim seja. Esta tradição se transmite de geração em geração, em geral modificando-se através de desenvolvimentos e adições.

O problema que um evangélico sério vê aqui é que os cristãos assim chamados "católicos" consideram a suposta Tradição oral como uma fonte de revelação divina a par da Palavra Escrita de Deus, "recebida pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo, ou pelos próprios Apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo transmitida como de mão em mão..."

Esta doutrina começou a ensinar-se com clareza, por influência de Cirilo de Alexandria, no II Concílio de Constantinopla de 553, ou seja, alguns séculos depois da época apostólica. Reafirmou-se no II de Niceia (787) e no IV de Constantinopla (869). Ensina-se no Símbolo de Leão IX (1053) e numa carta de Gregório IX, entre outros documentos papais. O Concílio de Trento ratificou a doutrina na Sessão IV (8 de Abril de 1546), no I Vaticano (1870) e recentemente no II Vaticano, que conclui que "resulta assim que a Igreja não deriva somente da Sagrada Escritura a sua certeza acerca de todas as verdades reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com um mesmo espírito de piedade" (Const. Dogm. Dei Verbum, II,9).

Um evangélico sério não crê na realidade que não deva prestar-se atenção a toda a tradição extra-escritural. Ao contrário, crê que toda a suposta tradição deve examinar-se à luz do revelado por escrito. Neste sentido, simplesmente segue o exemplo do Senhor Jesus, para quem a declaração "Está escrito" concluía uma discussão com os seus discípulos, com os fariseus, com os saduceus e com o próprio Satanás (Mateus 4 e paralelos). É a mesma atitude que tinham os de Bereia quando, depois de ouvir os ensinamentos do mesmíssimo São Paulo e de Silas, "estudavam diariamente as Escrituras para ver se estas coisas eram assim". São Lucas elogia esta atitude (Actos 17: 10-12).

[Juan Carlos] Creio que não há melhor maneira de dizê-lo do que como o disse o próprio São Paulo: "Irmãos: estai firmes e mantende as tradições que recebestes como ensinamento seja de palavra ou por nossas cartas" (2 Tes. 2,13). Algumas traduções deste passo, dito seja de passagem, vertem a palavra do texto original "paradoseis" como "doutrinas", o que é perfeitamente lícito em caso de não tratar-se de uma tradução tendenciosa: não se deve esquecer que a palavra "paradosis" significa inequivocamente "tradição" (à margem do significado de "traição", "detenção" que não se aplica aqui), da raiz verbal "para-didomi", e que é a mesma palavra que usa Jesus ao dizer aos fariseus: "Assim invalidastes a palavra de Deus por causa da vossa tradição (paradosis)".

Como se vê, a palavra "tradição" pode ser tomada como sinónimo da doutrina de Jesus e dos apóstolos e também como sinónimo das doutrinas dos fariseus ou de seus antepassados. Em uma palavra, o termo "tradição" pode usar-se num sentido positivo e também num sentido mais pejorativo, daí que não há que ficar escandalizado quando na Igreja se fala de Tradição, como falava São Paulo. (Em 2 Tes 3,6 também se usa o termo grego "paradosin", que, outra vez, em algumas versões espanholas se traduz como "doutrinas": "…conforme as doutrinas que receberam da nossa parte" - Reina de Valera -; também vale aqui o que dissemos para 2,13: sim, podemos traduzir "paradosin" como "doutrina", porém não percamos de vista que o que diz o texto original é: "…conforme a tradição que receberam da nossa parte"; poderíamos acrescentar que o texto de Mt 15,3 e 6, onde temos no original a mesma palavra que em 2 Tes 3,6, ou seja, "paradosin", é traduzido por quase todas as versões espanholas - inclusive a Reina de Valera - como "tradições". Perguntamo-nos: por que não traduzir aqui "paradosin" como "doutrinas", como se traduz 2 Tes 3,6, que faz referência a uma realidade similar – ensinamentos, tradições, doutrinas -? Certamente a suspeita de imparcialidade da tradução não é de todo infundada: parece que quando o termo "paradosin" aparece para indicar o ensinamento de Jesus ou dos Apóstolos se o traduz como "doutrinas", ao passo que quando se trata dos ensinamentos e preceitos humanos dos judeus se o traduz como "tradições". Repetimos uma vez mais que, se bem que o tradutor pode escolher os sinónimos que ele creia conveniente, contudo neste caso me parece que se cumpre o dito "traduttore tradittore", pois pode levar os leitores simples a pensar que "tradição" é uma espécie de "má palavra" que faz alusão às tradições humanas, contra a doutrina de Jesus, quando de facto no texto original se trata de uma mesma palavra, a qual adquire o seu valor positivo ou negativo segundo o "conteúdo" da mencionada tradição. No entanto não é tanto sobre questões de exegese que queria atrair a atenção do leitor, mas antes sobre questões de história da doutrina cristã em seus primeiros passos, logo que recebeu o Espírito Santo em Pentecostes.

[Fernando Saraví] Sem dúvida, a palavra "tradição" pode tomar-se em sentido positivo, pejorativo ou neutro. A tradução Reina-Valera é – como o reconhece Menéndez e Pelayo e qualquer um que aprecie o castelhano - uma jóia do século de ouro da literatura espanhola. Casiodoro de Reina e Cipriano de Valera (nenhum deles se chamava "Reina de Valera" como dás a entender) optaram efectivamente por traduzir "tradição" em certas partes e "doutrina" em outras talvez como resultado da controvérsia originada na Reforma do século XVI e sua resposta romana em Trento, que ratificou a validade das supostas revelações extra-bíblicas recebidas por tradição oral. Deve-se acrescentar que apesar de alguma escolha discutível – que todas as versões as têm - em matéria de traduzir para o espanhol a Bíblia a partir das línguas originais e pô-las ao alcance das pessoas, os cristãos protestantes ganharam alguns séculos de vantagem aos cristãos católicos.

Voltando ao problema principal, Efésios 2:19-22 e outras passagens nos ensinam que:

1. Jesus Cristo é a Pedra angular
2. Os Apóstolos e os Profetas são o cimento
3. Os demais crentes são o edifício que, sobre dita Pedra angular e Cimento, se levanta como "templo santo ao Senhor".

Os Apóstolos insistem repetidamente na conservação dos seus ensinamentos e na fidelidade a eles. Alguns exemplos:

"Obedecestes de coração àquele modelo de doutrina a que fostes entregues" (Rom 6:17)

"Além disso vos declaro, irmãos, o evangelho que vos preguei, o qual também recebestes, no qual também perseverais, pelo qual também, se retiverdes a palavra que vos preguei, sois salvos, se não crestes em vão" (1 Cor 15:1-2)

"Vivei, pois, segundo Cristo Jesus, o Senhor, tal como o recebestes" (Col 2:6)

"Finalmente, irmãos, vos rogamos e vos exortamos no Senhor Jesus a que vivais como convém para agradar a Deus, segundo aprendestes de nós, e a que progridais mais" (1 Tess. 4:1, cf. 2:13)

"Tudo quanto aprendestes e ouvistes e vistes em mim, ponde isso em prática, e o Deus de paz estará convosco" (Filip 4:9)

"Pois mais lhes valeria não ter conhecido o caminho da justiça do que, depois de o conhecer, voltar atrás, abandonando o santo preceito que lhes foi transmitido" (2 Ped 2:21)

É claro que os Apóstolos desejavam que o que eles ensinavam, tanto oralmente como por escrito, fosse recebido pelos cristãos. Entre Pentecostes e a primeira das Epístolas decorreram pelo menos 15 anos, e até onde sabemos neste período a pregação apostólica se propagou de maneira exclusivamente oral, com o apoio, evidentemente, das Escrituras do Antigo Testamento. É preciso admitir igualmente que até à recolha do grosso do corpus que hoje constitui o Novo Testamento, provavelmente na primeira metade do século II (Clemente de Roma cita 1 Coríntios e Ireneu considera axiomática a existência de quatro Evangelhos), predominou a transmissão oral do ensinamento caracteristicamente cristão.

[Juan Carlos] É um facto óbvio e ainda registado nas Sagradas Escrituras que "há muitas outras coisas que fez Jesus que, se fossem escritas uma por uma, penso que não caberiam nem no mundo todos os livros que se precisariam escrever" (Jo 21,25). Jesus passou os anos da sua vida pública pregando e fazendo o bem, coisa que depois fizeram também os Apóstolos do Senhor, que são considerados por todas as igrejas cristãs como fontes da Revelação, ou seja, a Revelação pública do mistério de Jesus Cristo culmina com a morte do último dos Apóstolos, que foi João.

[Fernando Saraví] Um evangélico sério se perguntaria aqui por que citas outra vez o mesmo versículo da Bíblia (João 21:25) em favor da posição que defendes, como se não houvesse outro em que agarrar. Na realidade, este versículo, provavelmente uma adição editorial ao escrito pelo discípulo amado, pode interpretar-se cabalmente à luz de João 20: 30-31: "Fez ainda Jesus muitos outros sinais na presença de seus discípulos, os quais não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome".

Se esse é o problema, então nem a Bíblia nem a tradição oral pode esgotar o que Deus fez, faz e fará. De facto, esta linha de argumentação é uma faca de dois gumes. Por exemplo, alguns grupos cristãos marginais e também seitas derivadas do cristianismo (como os mórmons) apelam a um raciocínio similar para ensinar que Deus continua revelando-se até hoje através dos seus "profetas". O ponto é que não necessitamos – nem poderíamos – de saber tudo o que Deus disse e fez. A Escritura é altamente selectiva, e tem no seu conjunto o mesmo propósito que João: dar testemunho de Jesus Cristo e levar-nos à salvação em Seu santo nome.

[Juan Carlos] Ninguém pode dizer baseado em algum texto bíblico que os autores dos textos do Novo Testamento quiseram limitar o ensinamento de Jesus ou dos Apóstolos ao que eles estavam escrevendo. Ou posto de outra maneira, nem a Mateus, nem a Marcos, nem a Lucas, nem a João, nem a Pedro, nem a Paulo, nem a Tiago, nem a Judas nem a nenhum outro que tenha podido formar parte dos autores do Novo Testamento jamais lhes ocorreu pôr por escrito tudo o que Jesus ensinou, pois seria algo que nunca acabaria, como o diz João (21,25). Jesus também não lhes tinha mandado escrever nada. Nem sequer todos os Apóstolos escreveram algo, mas só cinco, alguns dos quais escreveram apenas duas ou três páginas (ver a carta de Judas, ou de Tiago; de Pedro temos duas cartas).

[Fernando Saraví] Parece-me que não leste com atenção o que São João escreveu no final do Apocalipse: "Eu advirto a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro: Se alguém acrescentar a estas coisas, Deus trará sobre ele as pragas que estão escritas neste livro. E se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida e da cidade santa e das coisas que estão escritas neste livro" (Apocalipse 22:18-19).

Isto significa que, contrariamente ao que dizes, pelo menos um autor bíblico, e um muito importante, considerou apropriado restringir taxativamente os limites desta revelação. Claro está que em sentido estrito esta advertência somente é válida para o Apocalipse, mas por outro lado o facto de ter sido provavelmente o último livro bíblico a escrever-se, e a Igreja primitiva ter considerado apropriado colocá-lo no final da Bíblia não pode passar-se levianamente por alto.
 

[Juan Carlos] Jesus, no entanto, deu aos seus Apóstolos o mandamento de ir por todo o mundo anunciando o Evangelho a toda a criação, "ensinando-lhes a guardar tudo o que vos mandei" (Mt. 28,20). Os Apóstolos e também os outros discípulos do Senhor, uma vez recebido o Espírito Consolador, cumpriram com o que o Senhor lhes havia ordenado e pregaram dia e noite, ainda que ao preço de seu Sangue, o que eles tinham "visto e ouvido" acerca de Jesus. Ora bem, como fica claro os Apóstolos fizeram isto pregando, ou seja, entregando oralmente o mistério da Salvação, já que, como dissemos, só alguns dos Apóstolos, passado já muito tempo de pregação, e sem pretender resumir em seus escritos aquilo "tudo" que Jesus lhes havia mandado (ver acima a citação de Mt. 28,20) escreveram algo do que pregavam (notemos que muitos dos escritos do Novo Testamento são cartas circunstanciais). Com isto queremos dizer que:

1. A nenhum dos Apóstolos lhe ocorreu jamais limitar os ensinamentos de Jesus ao que estavam escrevendo nesse momento;
2. A comunidade cristã do começo não se fundou sobre os escritos do Novo Testamento, mas sobre o ensinamento oral dos Apóstolos e discípulos do Senhor;
3. Milhares de cristãos da primitiva Igreja nunca leram nenhum texto do Novo Testamento.

Poderíamos concluir disto que a comunidade dos primeiros cristãos não conhecia a Palavra de Deus? Claro que não. A conhecia e muito bem, mas para eles (e para muitas igrejas particulares durante séculos) a Palavra de Deus foi entregue de maneira oral, pelo menos em sua quase totalidade.

[Fernando Saraví] Estes factos já foram comentados. Aqui cabe recordar que os primeiros cristãos – mesmo na época Apostólica - possuíam um conjunto de Escrituras que hoje chamamos Antigo Testamento.

[Juan Carlos] Ouvi dizer por aí que, chegado o tempo, Deus fez que se pusessem por escrito os ensinamentos evangélicos, para que não fossem deturpados pelo correr dos anos; hoje devemos ficar-nos com o que ficou escrito, que sem dúvida não contém erro, tudo o mais é perigoso, pouco confiável.

Em relação a isto digamos que tal afirmação está ainda por demonstrar: não se baseia em nenhum mandamento - pelo menos que conheçamos – do Senhor, nem em nenhuma decisão de algum Concílio da Igreja (como por exemplo o Concílio de Jerusalém, em Actos 15, onde a Igreja decide questões que iam aparecendo e sobre as quais Jesus, aparentemente, não tinha deixado uma norma clara de comportamento).

[Fernando Saraví] É um facto que o concílio de Jerusalém que citas pôs por escrito a sua decisão em vez de confiar somente na sua transmissão oral, mesmo tendo sido a carta levada por irmãos irrepreensíveis com São Paulo à cabeça:

"Pelo que eu julgo" – diz Tiago - "que não se inquiete os gentios que se convertem a Deus, mas SE LHES ESCREVA que se abstenham..." (Actos 15:19-20).

"Então pareceu bem aos apóstolos e aos anciãos, com toda a igreja, eleger alguns homens e enviá-los a Antioquia com Paulo e Barnabé; a Judas, que tinha por sobrenome Barsabás, a Silas, homens principais entre os irmãos, e ESCREVER por intermédio deles ... [segue o texto da carta]. Assim pois, os que foram enviados desceram a Antioquia e, reunindo a congregação, entregaram A CARTA. Tendo-a LIDO, alegraram-se pela consolação" (Actos 15:22-23, 30-31).

[Juan Carlos] Ou seja, a afirmação de que "Deus, vendo que algumas doutrinas corriam o risco de ir-se desviando, dá-nos os escritos do Novo Testamento" pode soar muito bem para alguns, mas a menos que conheçamos os pensamentos de Deus directamente, não a podemos defender com nenhum dado nem histórico nem bíblico, é uma hipótese. Eu poderia dizer, como hipótese, que não, que esse não foi o pensamento de Deus, que esse não foi o motivo pelo qual apareceram os escritos do Novo Testamento, e quem me poderia dizer que me equivoco?.

[Fernando Saraví] O teu raciocínio pode dividir-se em duas partes. Primeiro, os cristãos crêem que Deus actua na história e a dirige para os Seus próprios fins. Neste sentido, parece-me que nenhum cristão cabal negaria que as Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, foram providencialmente preservadas por Deus até aos nossos dias. A documentação textual da Bíblia excede amplamente em qualidade e quantidade a de qualquer outro documento da antiguidade comparável. Por outro lado, pode-se perguntar por que Deus fez isto. Aí sim há lugar para as conjecturas. A mim parece-me muito razoável isso que "ouviste dizer por aí", a saber, que a conservação providencial tinha pelo menos como um dos seus objectivos preservar o ensinamento original livre de corrupção, adição ou emendas. Não nego que possa existir uma melhor explicação, mas ainda não a ouvi.

[Juan Carlos] Sobre este ponto poderíamos aduzir outros aspectos, porém não é o que mais nos concerne agora.

Damos por adquirido, pois, que Jesus e os Apóstolos disseram e fizeram muitíssimo mais do que está escrito, e que na vida dos apóstolos se deram factos importantes que não ficaram por escrito (ou acaso alguém pode pensar que o trabalho dos Doze se limita ao pouco que o livro dos Actos dos Apóstolos relata, quase exclusivamente, sobre Pedro e Paulo?). E damos por adquirido também que se alguém pensa que o importante para nós é só o que ficou escrito, esse pensamento não é nem bíblico - não está em nenhuma parte na Bíblia, nem sequer insinuado, antes o contrário; nem é tampouco histórico - nunca ninguém pensou assim até aos últimos séculos da nossa era.

[Fernando Saraví] Parece que Jesus, Paulo e o resto dos Apóstolos de facto pensaram assim em relação ao Antigo Testamento – única Escritura em seus dias - já que jamais apelaram a fontes extra-bíblicas para provar, explicar ou ensinar acerca de Cristo.

O argumento de que Deus deve ter feito e dito muito mais do que está escrito aplica-se também ao período muito mais extenso que a Era Cristã do que Ele fez desde a criação do mundo até à época do Novo Testamento. De facto, os hebreus possuíam nos tempos de Jesus uma ampla variedade de tradições orais, que algumas seitas como a dos fariseus, colocavam à altura das Escrituras (de facto, dizia-se que no monte Sinai Moisés tinha recebido tanto a Lei escrita como a Lei oral). Jesus Cristo parece que não era de igual opinião. Para Ele a tradição não podia colocar-se ao mesmo nível, nem muito menos acima, da Escritura. A tradição era subordinada, optativa; a Escritura era soberana e obrigatória. Esta devia julgar aquela.

Portanto, o ponto de vista evangélico certamente é bíblico. O que Jesus e os Apóstolos fizeram em relação ao Antigo Testamento, os cristãos evangélicos o aplicam, por analogia, ao Novo Testamento.

Também é histórico. Diz-se que se se perdessem todas as cópias do Novo Testamento, se poderia reconstruí-lo com base nas citações patrísticas. Os escritores cristãos primitivos, apologistas, pastores e teólogos dos primeiros séculos, não apelavam a supostas tradições doutrinais mas às Escrituras. É certo que encontramos numerosas alusões à "regra de fé da Igreja" e à "tradição eclesiástica", mas não se trata de uma tradição doutrinal à parte das Escrituras, mas da forma tradicional de interpretá-las e aos usos e costumes. Para os Padres dos primeiros séculos, a Sagrada Escritura é a tradição doutrinal da Igreja, e o autêntico registo da tradição Apostólica. Assim, Tertuliano (160-220) diz que aos hereges não se lhes deve conceder o uso das Escrituras para redarguir, porque não lhes pertencem; as Escrituras são património da Igreja, base e fundamento da sua doutrina (J. Quasten, Patrología I, p. 569). "Porque onde vejamos certamente a verdade da doutrina e da fé cristã, aí indubitavelmente encontram-se também as verdadeiras Escrituras, a verdadeira interpretação, as verdadeiras tradições cristãs" (De Prescriptione Haereticorum, 20).

Por exemplo, nos escritos conservados de Orígenes, homem de vastíssima erudição, não encontramos apelos a tradições doutrinais extra-bíblicas, apesar de que, dadas as especulações deste Padre, tais tradições poderiam ter sido muito interessantes. Eusébio de Cesareia (Hist Ecl VI, 25:11-14) conservou as reflexões de Orígenes a propósito do autor de Hebreus, e todas elas se baseiam em evidências internas da epístola. Parece que no seu tempo (segunda metade do século III) não havia tradição confiável a tal respeito.

Ireneu de Lyon (ca. 140-205) escreveu: "...as Escrituras são na verdade perfeitas, sendo que elas foram faladas ou ditadas pela Palavra de Deus e pelo Seu Espírito..." (Adv Haer II, 28).

"Não aprendemos de nenhuns outros o plano da nossa salvação, senão daqueles por quem o evangelho nos chegou, o qual eles num tempo proclamaram em público e, num período posterior, pela vontade de Deus, o transmitiram a nós nas Escrituras, para ser o fundamento e a coluna da nossa fé" (Adv Haer III, 1,1).

Ireneu também tem a Igreja como depositária das Escrituras e possuidora de um entendimento correcto destas: "... mas melhor é que nos refugiemos na Igreja, sejamos educados em seu seio, e nos alimentemos da Escritura do Senhor" (Adv Haer V,20:2).

Numa carta a Florino conservada por Eusébio, Ireneu recorda Policarpo – segundo a tradição discípulo de São João Apóstolo - e o louva porque "tudo relatava em consonância com as Escrituras" (Hist Ecl V, 20:6).

Ainda João Crisóstomo (347-407) escreveu: "Possuímos a regra e o padrão mais exato e perfeito para regular as nossas diversas inquirições: refiro-me à regulação das leis divinas. Eu, portanto, gostaria que todos vocês rejeitassem o que este ou aquele homem diz, e que investigassem todas estas coisas nas Escrituras" (Hom. 13, 4:10 ad fin. in 2 Cor.). Parece que o insigne pregador não estaria de acordo contigo. Quasten recalca: "O maior orador sagrado da Igreja antiga baseia toda a sua pregação na Escritura" (o.c., p. 528).

Pela mesma época, Gregório de Nissa (330-395) afirmou: "Não nos está permitido afirmar o que nos aprouver. A Sagrada Escritura é, para nós, a norma e a medida de todos os dogmas. Aprovamos somente aquilo que podemos harmonizar com a intenção destes escritos"; "há algo mais confiável que qualquer destas conclusões artificiais, a saber, o que assinalam os ensinamentos da Sagrada Escritura; e assim eu considero necessário averiguar, além do que se disse [uma discussão metafísica] até que ponto este ensinamento inspirado harmoniza com tudo isso" (De anima et resurr.)

Igualmente Jerónimo (345-419), tradutor da Vulgata e o mais erudito de seu tempo, disse: "É uma arrogância criminosa acrescentar algo às Escrituras; o que está escrito, crê-o; o que não está escrito, não o busques" (Adv Helv).

Também o grande Agostinho de Hipona (354-430) era do mesmo parecer. O bispo pôs fim à sua controvérsia com os donatistas com o seguinte argumento: "Nada mais queremos ouvir de «tu dizes» e «eu digo», mas ouçamos o «Assim diz o Senhor». Indubitavelmente existem Livros do Senhor, a cuja autoridade ambos damos nosso consentimento, submissão e obediência; neles pois busquemos a igreja, e neles discutamos a nossa disputa". Nas suas Confissões (VI, 5: 2-3) declara: "Persuadiste-me de que não eram de repreender os que se apoiam na autoridade desses livros que Tu deste a tantos povos, mas antes os que neles não crêem... Porque nessa divina origem e nessa autoridade me pareceu que devia eu crer... Por isso, sendo eu fraco e incapaz de encontrar a verdade só com as forças da minha razão, compreendi que devia apoiar-me na autoridade das Escrituras; e que Tu não poderias dar para todos os povos semelhante autoridade se não quisesses que por ela te pudéssemos buscar e encontrar..."

Os exemplos poderiam multiplicar-se. De maneira que os Padres a partir do século II baseiam as suas doutrinas nas Escrituras e, ainda que se mostrem zelosos em conservar a tradição interpretativa eclesiástica, não apelam a tradições orais doutrinais. A ter existido tal coisa, deverá ter sido de natureza independente e secreta; mas é precisamente este género de tradição o que Ireneu severamente condena, por sua origem espúria (Adv Haer III, 3:1).

[Juan Carlos] Ora bem, suponhamos que na comunidade cristã do começo sucede um facto que não ficou por escrito, e ponhamos já mesmo um exemplo para fazer a questão mais prática e entendível: digamos que a Mãe do Senhor, conhecida e querida por todos os Apóstolos, que tinha estado junto a Jesus durante toda a sua vida, chegado o dia determinado por Deus morreu, e que quando foi visitada na sua sepultura por algumas pessoas, digamos para os ritos próprios dos funerais judeus, se depararam com que o seu corpo não estava mais ali. Este facto, que os católicos tomam por um "ensinamento entregue", uma "Tradição" com maiúscula (a Assunção da Virgem), o tomamos aqui pura e exclusivamente como uma suposição, já que, segundo vimos, certamente sucederam coisas que não ficaram por escrito.

[Fernando Saraví] É um exemplo muito interessante o que elegeste, já que as doutrinas marianas são um tema que separa profundamente católicos e evangélicos. Como bem sabes, a última vez que no Novo Testamento se menciona a Bem-aventurada Maria é em Actos 1:14, onde a achamos orando com os demais discípulos antes de Pentecostes. Depois do "nascimento" da Igreja em tal ocasião, não é mais mencionada pelo nome. Nada nos é dito dos seus feitos posteriores, nem sequer da sua morte ou assunção. Podem aduzir-se muitos raciocínios a tal respeito, e no que a mim concerne, se Enoque e Elias foram arrebatados aos céus, não vejo por que não pudesse sê-lo Santa Maria.

No entanto, o que aqui se discute é a validade da tradição que respalda este dogma. Se alguém ler no Denzinger a definição da Assunção feita em 1950 – levou 19 séculos decidir que era um dogma de fé - notará que se recorre aos textos bíblicos e inclusive à mais antiga tradição patrística (por exemplo Ireneu) para justificar certos raciocínios, mas de modo algum para demonstrar com o testemunho dos Padres, que esta doutrina fosse crida por eles ou parte da suposta tradição extra-bíblica conservada na Igreja.

É um facto por todos reconhecido que não há evidência de que alguém soubesse alguma coisa da assunção corporal de Maria durante os primeiros séculos; com efeito, esta noção aparece pela primeira vez em fontes extremamente duvidosas, nas quais não confiariam os católicos noutros aspectos. No seu Manual de Teologia Dogmática diz Ludwig Ott: "A ideia da assunção corporal da Virgem encontra-se expressa primeiramente nos relatos apócrifos sobre o trânsito da Virgem, que datam dos séculos V e VI... O primeiro escritor eclesiástico que fala da assunção corporal de Maria, seguindo um relato apócrifo do Transitus B.M.V. é Gregório de Tours (m. 594)..." (p. 328).

Quer dizer que neste caso, como em muitos outros em que se apela à tradição oral para fundamentar o que hoje se crê, não existe ponta de evidência de que a informação provenha dos Apóstolos. Além do mais, em alguns casos como o do exemplo que escolheste, a evidência disponível assinala a sua origem marginal e extra-apostólica, de escritos desprovidos de valor em relação aos factos do primeiro século. Se este critério se aplicasse consistentemente a toda a teologia, e não selectivamente a parte dela, quem sabe onde estaríamos, doutrinalmente falando.

[Juan Carlos] Neste suposto caso, e em todos os demais casos que certamente ocorreram, ou seja, nos milhares de factos acontecidos durante a vida de Jesus e dos Apóstolos, e no extensíssimo ensinamento de Jesus e dos Apóstolos que não ficou por escrito (que "não caberiam no mundo os livros que se precisariam escrever" Jo 21,25) que coisa devia fazer a Igreja, ou seja, a comunidade de crentes? Esquecer-se? Por que devia esquecer-se, se a sua missão era precisamente transmitir tudo o que eles tinham visto e ouvido? Em que momento da história da Igreja se tomou a decisão de "esquecer" os eventos que os autores sagrados não tinham deixado por escrito?

Que deve fazer um crente do século XX ao ler 2 Tes 2,13-15?

"... Assim pois, irmãos, mantende-vos firmes e conservai as tradições que haveis aprendido de nós, de viva voz ou por carta."

Baseado em que princípio devo dizer agora que aquilo que se ensinou "de viva voz" há que esquecê-lo e ficar só com o que se entregou "por carta"?

Não se deu conta São Paulo do "perigoso" que era dizer que havia que obedecer às tradições orais…?

Os católicos, por seu lado, continuam mantendo que é preciso conservar ambas as doutrinas, a que foi entregue por carta e a que foi entregue oralmente pelos pastores da Igreja; "ambas" as doutrinas que são uma mesma doutrina comunicada por distintos canais, mas que se complementam, se aperfeiçoam, se explicam mutuamente. Assim era no começo e eles não vêem porque agora devam limitar o ensinamento ao que ficou escrito. Se Deus assim o ensinasse, por exemplo através de algum dos Apóstolos, então haveria que aceitá-lo com gosto. Porém, como dissemos, não existe nenhum motivo que nos permita pensar racionalmente que agora devemos deixar de prestar atenção à Tradição oral.

Em que consiste essa Tradição? Em toda a mensagem evangélica de salvação que pregou a Igreja começando com os Apóstolos ao longo dos séculos através de seus pastores, que devem pregar a toda a criação, "ensinando-lhes a guardar tudo o que eu vos mandei; e eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo", mesmo desaparecidos já os Apóstolos do Senhor, como por exemplo no século XX… Também hoje Jesus está com aqueles aos quais os Apóstolos impunham as mãos, bispos, presbíteros e diáconos (1 Tim 5:22; Tito 1,7; Fil 1,1), que têm a obrigação de pregar em nome de Jesus, de tal modo que "quem a vós ouve a mim me ouve, e quem a vós rejeita a mim me rejeita, e rejeita aquele que me enviou" (Lc 10:16). Mas esse já é outro tema, que com gosto trataremos, se Deus quiser, em outro escrito.

[Fernando Saraví] Para um evangélico sério, é chamativo que desde o estabelecimento da Igreja de Roma como mais do que uma "primeira entre iguais", não se tenha delimitado, definido e exposto claramente qual é o conteúdo preciso da suposta tradição doutrinal apostólica; ou seja, quais são exactamente os seus limites. Tal como se deram as coisas, definiram-se como parte de dita tradição dogmas – como a imaculada concepção de Maria ou a infalibilidade papal - que não podem traçar-se claramente nem nas Escrituras nem nos Padres e que, de facto, muito antes da sua definição, foram objecto de ampla e animada discussão entre os próprios teólogos católicos. O "depósito da Tradição" oral permanece até hoje com limites difusos, e as poucas definições que se fizeram mostram quão pouco confiável é tal suposta tradição. Os evangélicos mostram para com ela a mesma atitude que Jesus e os Apóstolos mostraram para com as tradições orais do seu tempo. Cremos que a sucessão Apostólica se exprime na conformidade com a doutrina dos Apóstolos, e esta encontra-se expressa perpetuamente de modo confiável e certo somente no Novo Testamento.

[Juan Carlos] Querido irmão evangélico que me leste até este ponto: agradeço-te o teu interesse e paciência, que falam bem do teu empenho pela verdade que nos fará livres a ti e a mim. Peço-te que reflictas estas coisas, porque são assuntos importantes, de vida eterna. Agradecer-te-ia enormemente que me envies alguma linha de resposta a estas questões que te expus, ou sobre algum outro tema que estejas aprofundar, ou alguma tradução que queiras corroborar, etc. Graças a Deus posso ler (pelo menos tentá-lo!) os textos originais em hebreu e grego, e posso-te ajudar. Tenho um só interesse: fazer-te o bem.

[Fernando Saraví] É nesse espírito que dizes que eu também respondi. Desde já, espero as tuas observações sobre os meus comentários. Obrigado pelo esforço que fizeste, e que Deus abençoe a tua vida e serviço. No amor, no serviço e na fraternidade de Cristo.


[1] O artigo original do P. Juan Carlos Sack pode ser visto em apologetica.org existindo também uma tradução em português deste artigo em veritatis.com.br

sábado, 5 de dezembro de 2009

Em defesa de Sola Scriptura


Antes de referir-nos ao artigo traduzido e publicado em apologeticacatolica.org com o título "Bíblia e Tradição...", convém resumir – para evitar mal-entendidos - o que os evangélicos entendem por Sola Scriptura. Digo isto porque embora "Sola Scriptura" – somente a Bíblia - possa tomar-se como uma declaração que não necessita de comentários, na realidade não é assim. Ocorre mais ou menos como com a teoria da Relatividade... que não significa que "tudo é relativo". Sola Scriptura significa:

1. Que a Bíblia é a única regra infalível da fé (doutrina) e da prática (costumes).

2. Que o ensino da Bíblia é suficiente para que as pessoas aceitem Jesus Cristo como Senhor e Salvador, e fazendo o que ela diz, alcancem a vida eterna.

Corolários:

1. A Igreja de Jesus Cristo não necessita de revelações que não se achem explicitamente ou por lógica e clara implicação na Bíblia.

2. Não há outra regra infalível de fé fora das Escrituras.

Por outro lado, Sola Scriptura NÃO significa:

1. Que a Bíblia contenha absolutamente tudo o que Deus disse e fez.

2. Que a Palavra de Deus não se tenha transmitido oralmente em muitas ocasiões e situações históricas.

3. Que a Igreja careça de autoridade para interpretar, ensinar e defender a Palavra de Deus.

4. Que toda a tradição não escrita deva ser rejeitada a priori e a fortiori.

Os cristãos evangélicos crêem que a Igreja é coluna e fundamento da verdade, que deve ter mestres piedosos e conhecedores das Escrituras, e que muitas tradições são expressões válidas da fé cristã. Aceitam as expressões normativas dos Credos dos primeiros concílios ecuménicos, e levam a sério os ensinos dos Padres, assim como dos muitos e muito bons mestres, doutores e comentaristas que Deus deu à Igreja ao longo dos séculos. Não crêem que a Escritura seja de interpretação privada (livre interpretação), mas sustentam o princípio do Livre Exame.

Se aceitam algumas coisas e rejeitam outras, o fazem com base no que consideram ser os ensinos das Escrituras. O ensino da tradição – sim, mesmo da sua própria tradição - , dos concílios, dos Padres, etc, deve conformar-se às Escrituras, que são a Palavra final, inspirada e infalível de Deus.

Agora dirijamo-nos ao artigo em questão, e vejamos o quão firmemente estabelece a sua tese, e no final incluirei um resumo das razões bíblicas que nos obrigam a reafirmar o princípio de Sola Scriptura.

O autor (Armstrong) reconhece que os Protestantes não ignoram "a importância e validade da história da Igreja, da Tradição, dos Concílios ecuménicos, ou da autoridade dos Padres da Igreja e destacados teólogos. A diferença reside na relativa posição de autoridade mantida pela Escritura e pelas instituições e decretos da Igreja."

Note-se que o autor sabe perfeitamente que a diferença fundamental não é a rejeição de qualquer outra autoridade além das Escrituras, ainda que aquela se considere subordinada a estas. Contudo, depois se afirma que "A prevalência do sola Scriptura, de acordo ao pensamento católico, facilitou uma estendidíssima ignorância e desprezo da história da Igreja entre os protestantes comuns."

Suponho que a obscura referência aos protestantes "comuns" se referirá àqueles mais ignorantes. Deveria ser óbvio que ainda que tal coisa seja verdade, não é menos certo que os católicos "comuns" são tão ou mais ignorantes da história, e por acréscimo das Escrituras. Limitam-se a assentir sem examinar tudo quanto a sua Igreja diga que é certo. Quanto ao conhecimento da história entre os católicos, pois, deve referir-se aos católicos cultos, que então deveriam comparar-se com os protestantes instruídos; e neste caso o suposto desnível desaparece ou inclusive se inverte.

"O Catolicismo afirma que a sua Tradição é nem mais nem menos que a conservação do ensino de Cristo tal e como foi revelado e proclamado pelos Apóstolos. Existe um desenvolvimento, mas apenas no sentido de um aumento do entendimento que não na essência, desta Tradição apostólica. O Catolicismo afirma ser o guardião e custódio do depósito original da fé a qual foi uma vez entregue aos santos (Judas 3)."

Deve tomar-se cuidadosa nota deste parágrafo, segundo o qual, e em conformidade com a doutrina católica, se sustenta que a Tradição que a Igreja de Roma considera inspirada e portanto dotada de suprema autoridade não é toda a tradição que possa ter essa ou outras igrejas, mas aquelas que remontam directamente ao Senhor e aos Apóstolos.

"Deve anotar-se também que a palavra escrita e a massa enorme de literatura foi propagada amplamente apenas desde a invenção da imprensa por volta de 1440. Desse modo, essa palavra escrita não pôde ter sido a principal transmissora do evangelho durante pelo menos catorze séculos. Os cristãos anteriores no tempo à Reforma Protestante aprenderam sobretudo através das homilias, dos sacramentos, da liturgia e seu calendário anual, das festas cristãs, das práticas devocionais, instrução familiar, arquitectura eclesial e outro tipo de arte sacra que reflectia temas bíblicos. Para todos esses crentes, o sola Scriptura teria sido claramente uma absurda abstracção de impossível colocação em prática."

Eis aqui uma falácia repetida até à exaustão pelos apologistas católicos. É tão óbvia que deveria pelo menos dar-lhes vergonha de repeti-la. A existência de milhares de manuscritos bíblicos indica que, por muito tempo, os cristãos puderam fazer para si cópias de parte ou de toda a Bíblia, mas este não é o ponto.

Os protestantes não afirmam que a Palavra escrita tenha sido o principal veículo de transmissão, mas que é a fonte definitiva da Verdade revelada. Por ela é possível julgar as homilias, os sacramentos, a liturgia, etc. A questão é se a nossa pregação e as nossas práticas são conformes às Escrituras, não se cada cristão que existiu tinha uma Bíblia. Portanto, o argumento além de falacioso é irrelevante.

"Apenas um preconceito prévio contra tal noção ou uma indevida fixação na rejeição por parte de Cristo do corrupto, tradições humanas farisaicas, poderia cegar alguém perante a considerável força dos dados escriturais. Dito de outra forma, a Escritura não ensina o sola Scriptura, um conceito que se baseia no uso de um documento (a Bíblia) contrariamente ao que o próprio documento testemunha explícita e implicitamente."

A isto se responde no final.

"É absurdo para qualquer cristão desdenhar o que Deus ensinou a milhões de outros cristãos ao longo dos séculos."

Não posso interpretar este parágrafo senão como um profundo preconceito contra os evangélicos. Quem terá dito a este bom senhor que em conjunto desprezamos os santos e os sábios do passado? A questão não é essa, isto não é o que se discute. O que está em jogo é a norma final de autoridade: Bíblia ou Bíblia mais tradição apostólica.

Note-se que aqui se contrapõe Sola Scriptura com "o que Deus ensinou a milhões de outros cristãos ao longo dos séculos." Aqui deixa transparecer - involuntariamente, suponho - a verdadeira origem e natureza da tradição católica, a saber, a religiosidade popular das massas. Porém, esta tradição secular NÃO é a que nominalmente defende Roma, já que teoricamente esta última tradição não foi dada às massas nem ao longo de séculos, mas proviria directamente do Senhor e dos seus Apóstolos, que a receberam num intervalo de décadas. Contudo, na prática Roma confunde uma com outra, e de facto atribui sanção dominical e apostólica a coisas que provêm da religiosidade popular.

"No Novo Testamento, em primeiro lugar, encontramos um testemunho bem claro do facto de que a Escritura não contém todo o ensino de Cristo. Presumivelmente ninguém negaria isto, mas os Protestantes costumam negar que qualquer dos Seus ensinos não recolhidos na Escritura poderiam ter sido fielmente transmitidos oralmente pela primitiva tradição apostólica."

Não existe razão a priori para negar que alguns ensinos do Senhor que não estão nas Escrituras poderiam ter-se transmitido por tradição oral. Deus é soberano, e pode fazer as coisas como a Ele lhe aprouver. Não corresponde a nenhum ser humano dizer a Deus como fazer melhor as coisas... O problema surge quando queremos determinar a este respeito qual foi a vontade de Deus.

É certo que a investigação histórica sugere que alguns ditos de Jesus poderiam ter-se conservado fora do Novo Testamento (por exemplo, Joachim Jeremias, "Palabras desconocidas de Jesús", trad. cast., Salamanca: Sígueme, 1979). Mas isto é por sua própria natureza duvidoso, e em todo o caso não afecta as doutrinas centrais do cristianismo.

Por outro lado, a própria Bíblia dá testemunho do pouco confiável que é a tradição oral no médio ou longo prazo. "Por isso o dito se propagou entre os irmãos que aquele discípulo não morreria, mas Jesus não disse que não morreria..." (João 21:23). João obviamente corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea.

Ora bem, segundo o dogma romano, o depósito da tradição apostólica oral ficou fixado no primeiro século, e não é possível tirar nem acrescentar nada a ele (ainda que se admita a noção de "desenvolvimento" tão habilmente proposta pelo Cardeal Newman). Ainda que a Igreja de Roma tenha apelado a tal suposta Tradição oral apostólica (como ao duvidoso "consenso unânime dos Padres) para definir alguns dogmas, o protestante se pergunta – e o católico deveria perguntar-se - o seguinte: por que estranha razão nos séculos decorridos desde o tempo dos Apóstolos, a Igreja de Roma não determinou e enunciou os limites precisos da tradição que diz zelosamente guardar? Por certo, as pretensões do romanismo poderiam levar-se mais a sério se o Papa por si ou mediante uma comissão realizasse tal tarefa. Até que se demonstre o contrário, cabe pensar que a tradição apostólica oral não é mais real do que o traje novo do imperador.

O nosso apologista romano apela depois aos seguintes "textos de prova":

"Marcos 4:33 E lhes anunciava a Palavra com muitas parábolas como estas . . .

Em outras palavras, como se entende, muitas parábolas não estão recolhidas na Escritura"

O Evangelho de Marcos não apresenta senão nove do total de 46 parábolas de Jesus que se encontram nos Evangelhos. Portanto, é lógico pensar que Marcos se refere às outras 35, e portanto a afirmação que "muitas parábolas não estão recolhidas na Escritura" é gratuita.

"Marcos 6:34 . . . e começou a ensinar-lhes muitas coisas.

Nenhuma destas muitas coisas está reflectida aí

João 16:12 Ainda tenho muito que vos dizer; mas vós não o podeis suportar agora.

Talvez, este muito foi falado durante as suas aparições depois da Ressurreição, às quais se alude em Actos 1:2-3 (ver mais abaixo). Muito poucos destes ensinos se guardaram por escrito, e aqueles que o foram, contêm apenas mínimos detalhes."

Se o Novo Testamento concluísse com os Evangelhos, o argumento baseado nestes textos e em Actos 1:2-3 teria algum mérito. Contudo, os Apóstolos evidentemente receberam e ensinaram "muitas coisas" que não se encontram nos Evangelhos mas estão registadas nos Actos, nas Epístolas e no Apocalipse. Em outras palavras, cerca da metade do Novo Testamento é dedicado a estes ensinos. O romanista vê-se obrigado a ocultar este facto tão evidente para buscar apoio para a sua tese.

"João 20:30 Jesus realizou em presença dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro."

Aqui esqueceu-se do contexto, ao qual reconhece tanta importância na hora de refutar os evangélicos. O versículo 31 continua: "Mas estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome." Nem o propósito de João nem o de nenhum dos Sinópticos parece ser proporcionar um registo exaustivo. O mesmo vale para João 21:25. Ao que parece o Espírito Santo não o considerou necessário. Além disso, a afirmação de João refere-se somente ao quarto Evangelho, que como é bem sabido é muito parco quanto aos milagres do Senhor, enquanto os sinópticos contêm muitos outros sinais que fez Jesus.

"Se a qualquer protestante evangélico instruído se lhe pede que defina, segundo a Bíblia, qual é a coluna e fundamento da verdade, seguramente responderia: "a própria Bíblia, claro". Mas no entanto a Escritura não se pronuncia assim; declara, em perfeito acordo com o Catolicismo e em oposição ao sola Scriptura:

. . . a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade. (1 Timóteo 3:15)

Outras traduções da Bíblia vertem fundamento como bastião, baluarte, ou pilar."

Os evangélicos instruídos conhecem certamente esta passagem, como também aquela de Efésios que diz que a Igreja é edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a sua pedra angular. De modo que não ignoram que a Igreja de Deus é coluna (stylos) e baluarte (edraioma) da verdade. Antes o afirmam. A igreja deve defender a Verdade, que se encontra na Palavra de Deus. Não há contradição alguma com o princípio de Sola Scriptura.

"É bastante evidente que esta passagem [2 Timóteo 3:16] não fornece nenhum argumento acerca de que a Sagrada Escritura, sem a Tradição, é a única regra de fé; porque ainda que a Sagrada Escritura seja útil para estes fins, não obstante não se diz que seja suficiente."

Aqui o apologista romano se enreda com as suas palavras, pois ele já reconheceu que os protestantes em conjunto NÃO ensinam que as Escrituras sejam a única regra de fé. Do contrário, rejeitaríamos todos os credos, concílios, catecismos, e de facto tudo o que não fosse o próprio texto da Escritura. O que afirmamos, sustentamos e defendemos é que é a regra suprema, final, inapelável. Todas as demais devem conformar-se às Escrituras e subordinar-se a elas.

"O Apóstolo busca a ajuda da Tradição (2ª Tessalonicenses 2:15)."

Significativamente, este texto menciona-se mas não se cita: "Assim que, irmãos, estai firmes e retende a doutrina que haveis aprendido, seja por palavra ou por carta nossa."

Paulo não busca aqui uma ajuda extra da tradição, mas exorta os tessalonicenses a reter a doutrina que receberam oralmente ou por escrito. Não há nenhuma razão para pensar que o que Paulo ensinava oralmente fosse diferente do que expressou por escrito no conjunto das suas epístolas. Por exemplo, quando fala do homem do pecado uns versículos antes, no mesmo contexto, pergunta: "Não vos lembrais que quando eu estava convosco vos dizia isto?" Em outros termos, está a colocar por escrito o que já tinha ensinado oralmente. Além disso, naquelas coisas que não resultam óbvias das epístolas – por exemplo, o que detém o "mistério da iniquidade", v. 5-7 – os intérpretes católicos não se encontram em melhor posição do que os protestantes. Por exemplo, Lorenzo Turrado escreve: "Quanto ao «obstáculo» a problemática é ainda maior. Não é possível precisar a natureza desse obstáculo ou impedimento que está a deter a manifestação do Anticristo" (Profesores de Salamanca - Biblia Comentada; Madrid: BAC, 2ª Ed., 1975, vol. VI b, p. 360). Mas esta afirmação é incompreensível se, como afirma a Igreja Católica, ela conservou os ensinos não escritos dos Apóstolos!!! Bastaria olhar para o depósito da tradição apostólica em vez de fazer ociosas conjecturas. Mas a Tradição oral falha miseravelmente justamente onde seria mais necessária.

"Mais ainda, o Apóstolo faz aqui referência às Escrituras que Timóteo tinha aprendido na sua infância. Ora, uma boa parte do Novo Testamento não foi escrito na sua meninice: algumas das Epístolas Católicas nem sequer tinham sido escritas quando São Paulo escreveu isto, e nenhum dos livros do Novo Testamento estavam postos então no cânon dos livros da Escritura. Ele se refere, então, às Escrituras do Antigo Testamento, e se o argumento desta passagem prova alguma coisa, é que as Escrituras do Novo Testamento não eram necessárias para a regra de fé. É necessário sublinhar que esta passagem não fornece prova alguma da inspiração de vários dos livros da Sagrada Escritura, inclusive dos que são admitidos como tais.. porque não se nos diz.. quais são os livros ou porções da Escritura inspirados."

Não há muita dúvida de que Paulo se refere primariamente ao Antigo Testamento. No entanto, o nosso amigo católico confunde as coisas – suponho que involuntariamente – com o seu argumento. A declaração de Paulo diz respeito à natureza das Escrituras. Não é uma declaração respeitante ao cânon, ou seja, à lista dos livros que se consideram inspirados. À semelhança de Jesus, quando disse aos judeus que esquadrinhassem as Escrituras, dá-se por adquirido que existia um conjunto definido e conhecido de livros que eram inspirados. De novo, Paulo se refere ao valor da Escritura. Na medida em que aos livros que preservam o ensino apostólico e hoje formam o nosso Novo Testamento se lhes reconhece o status de Escritura, se lhes aplica igualmente e sem nenhuma dificuldade o dito por Paulo a Timóteo.

Todo o resto do argumento, como o apelo a Efésios 4:11-15, se assanha inutilmente com uma noção alheia ao princípio de Sola Scriptura, a saber, que a norma única e exclusiva e que o ministério docente da Igreja carece de valor. O apologista perde o seu tempo ao tentar convencer-nos do que já cremos... porque o ensina a Escritura. Isso não significa, como injustificadamente conclui, que o ministério docente e a Escritura estejam ao mesmo nível: aquele deve submeter-se a esta.

"1ª Coríntios 4:6 . . . para que aprendais de nós mesmos a "não ir além do que está escrito", e para que ninguém se ensoberbeça a favor de um contra outro.

... o significado parece bastante claro quando se leva em consideração todo o contexto (pelo menos os versículos 3-6). Este princípio básico da interpretação bíblica (o contexto) é frequentemente abandonado, inclusive por bons eruditos, presumivelmente devido a preconceitos prévios.

Tem-se simplesmente que ler a frase que se segue ao "texto de prova" para ver o que é que São Paulo está a querer dizer. Toda a passagem é uma exortação ética para evitar o orgulho, a arrogância e o favoritismo, e desta maneira, não tem nada que ver com a ideia da Bíblia e da palavra escrita como algum tipo de padrão global de autoridade acima da Igreja.

... Assumindo que ele se está referindo ao Antigo Testamento (tal é a interpretação mais directa), isto não provaria, de novo, nada, porque ele não estaria incluindo todo o Novo Testamento, cujo cânon não foi determinado até 397 A.D."

Sobre esta passagem comenta o P. Lorenzo Turrado:

"Quanto a «não ir além do que está escrito» parece ser uma expressão proverbial para indicar que em nossas apreciações não se deve ir além da norma objectiva, e, neste caso, do que exige a natureza do ministério apostólico. Alguns autores, no entanto, crêem que se trata de uma citação bíblica, aludindo a toda a Escritura em geral, ou a algum dos textos citados anteriormente (cf. 1,19.31; 3,19). Cremos mais provável a primeira explicação." (o.c, p. 42).

O contexto da passagem está claramente relacionado com as facções existentes em Corinto, e Paulo estabelece aqui como princípio a validade superior do escrito sobre as opiniões humanas ("carnais" segundo 3:1-4).

Ao dirigir-se aos coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo recomenda que, "como está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf. Jer 9:23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "não ir além do que está escrito" (4:6). Seja como for que se veja este versículo, parece claro que para São Paulo o escrito tinha um carácter normativo que ia para lá dos pareceres individuais. O facto de que o NT estivesse então em processo de escrita não nega a sua autoridade quando tal processo se completou.

"Apesar de nenhuma maneira ser evidente que toda a verdade religiosa está num número de obras, ainda que sejam sagradas, as quais foram escritas em diferentes épocas, e nem sempre formaram um livro; de facto, essa é uma doutrina muito difícil de provar . . . É uma presunção estabelecida tão profundamente no sentir popular dos protestantes, que é um trabalho de grande dificuldade o obter deles um reconhecimento de que é uma presunção."

Não há razão para pensar que a Bíblia tem "tudo"; os evangélicos afirmam que tem tudo o que necessitamos saber em ordem à salvação. Não existe inconveniente em reconhecer o que é um facto histórico, a saber, que durante as suas primeiras décadas desde o baptismo de Jesus até às primeiras epístolas, o cristianismo se proclamou de maneira predominantemente oral (ainda que com base no Antigo Testamento). Também é evidente que "toda a verdade religiosa" (que incluiria grandes mistérios sobre o ser de Deus, por exemplo) não se encontra em nenhuma "obra", nem sequer na Bíblia, já que aí está escrito "as coisas secretas pertencem a Yahweh". A questão é se realmente existe outra fonte igualmente confiável que suplemente o que à Bíblia lhe falta. Os católicos dizem que sim, mas na hora de mostrar a evidência de tais supostas tradições apostólicas, tudo fica em declarações vagas e insubstanciais. É difícil evitar a impressão de que estamos simplesmente perante uma tentativa não de estabelecer a verdade, mas de sustentar a posição romana.

Breve reafirmação do princípio de Sola Scriptura

É curioso que os nossos irmãos católicos, que frequentemente nos criticam quando recorremos a "textos de prova", neste tema em particular utilizem precisamente esse enfoque. No entanto, o conjunto do ensino do Novo Testamento nos mostra que:

[1] Jesus advertiu muito seriamente contra invalidar as Escrituras – obrigatórias e inspiradas - por causa da tradição oral (Mar. 7:8-9 e par.). Não falamos aqui de quaisquer tradições, mas das tradições religiosas piedosamente transmitidas e conservadas pelos mestres do seu tempo.

[2] Além da Sua própria Palavra de plena autoridade, o Senhor recorreu sempre às Escrituras para decidir qualquer controvérsia.

[3] Jesus Cristo nunca acusou os judeus de ignorar as tradições orais, mas de não compreender que as Escrituras davam testemunho d`Ele (João 5:39).

[4] Aos Saduceus, que rejeitavam a tradição oral dos fariseus, o Senhor não lhes reprovou isso, mas sim o desconhecer "as Escrituras e o poder de Deus" (Mar. 12:24-27 e par.).

[5] Os Apóstolos e alguns dos seus condiscípulos (como Marcos ou Lucas) consideraram apropriado – inspirados seguramente pelo Espírito Santo - pôr por escrito os seus ensinamentos, como Moisés, Isaías e o resto dos autores humanos do AT puseram por escrito os seus.

[6] São Paulo afirma a natureza essencialmente inspirada das Escrituras e a sua absoluta suficiência quando escreve a Timóteo (2 Tim 3:15-17); o facto de o Apóstolo se referir ao AT não modifica o seu juízo sobre a natureza da Escritura quanto ao seu carácter normativo.

[7] Os escritos apostólicos são considerados "Escritura" (2 Pedro 3:15-16; 1 Tim 5:18 comparado com Lucas 10:7).

[8] Considera-se louvável que os que ouviam os Apóstolos vissem por si mesmos se a pregação era consistente com o já revelado por escrito no AT (Actos 17:11).

[9] Ao dirigir-se aos Coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo recomenda que, "como está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf. Jer 9:23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "a não ir além do que está escrito" (4:6). Seja como for que se veja este versículo, parece claro que para São Paulo o escrito tinha um carácter normativo que ia para lá dos pareceres individuais.

[10] A própria Bíblia dá testemunho do pouco confiável que é a tradição oral no médio ou longo prazo. "Por isso o dito se propagou entre os irmãos que aquele discípulo não morreria, mas Jesus não disse que não morreria..." (João 21:23). São João obviamente corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea.

Durante um intervalo de cerca de mil anos, o tempo que demorou a formar-se o Antigo Testamento, Deus falou de muitas maneiras e em repetidas ocasiões, mas foi inculcando no povo judeu o valor das Escrituras. No caso do Novo Testamento, o intervalo entre os ensinos divinos e a sua colocação por escrito foi vinte vezes menor. A quantidade e qualidade de informação histórica, doutrinal e prática do Novo Testamento não pode comparar-se com as tradições orais, muitas vezes duvidosas, que se encontram nos escritos dos Padres. O apelo válido à tradição nos Padres refere-se à compreensão e aplicação da doutrina estabelecida firmemente nas Escrituras. E, naturalmente, sabemos hoje que apelaram a esta tradição interpretativa... porque eles próprios o puseram por escrito.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

OS IRMÃOS DE JESUS


No Novo Testamento mencionam-se em várias ocasiões os irmãos de Jesus:

Mateus 12:46-47;

Mateus 13:55;

Marcos 3:31-32;

Marcos 6:3;

Lucas 8:19-20;

João 2:12;

João 7:3-10;

Atos 1:14;

1 Coríntios 9:5;

Gálatas 1:19;

É lícito perguntar quem eram eles, e qual era a sua relação exata com o Senhor Jesus. Antes de considerar diversas explicações, recordemos que a palavra grega adelphos, irmão, admite vários significados:

1. O significado primário é a relação de consanguinidade de duas pessoas que são filhos dos mesmos pais, ou do mesmo pai ou mãe (o significado normal de "irmão" em português). Podem encontrar-se muitos casos deste uso; por exemplo:

Mateus 1:2 (Judá e seus irmãos, adelphoi)

Mateus 1:11 (Jeconias e seus irmãos)

Mateus 4:18 (dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e seu irmão André)

Mateus 4:21 (outros dois irmãos, Tiago o filho de Zebedeu, e seu irmão João)

Lucas 3:1 (Herodes tetrarca da Galileia, seu irmão Felipe tetrarca da Itureia)

João 1:40 (André, irmão de Simão Pedro)

2. Secundariamente pode aludir a parentes próximos, segundo o costume hebraico de chamar "irmão" (hebreu 'ach) a parentes, como os casos de Ló, sobrinho de Abrão e de Jacó, sobrinho de Labão:

Génesis 13:8 (Abrão disse a Ló: «... somos irmãos»)

Génesis 29:15 (disse Labão a Jacó: «Por seres meu irmão hás de servir-me de graça?»)

Uma razão deste costume é que não existe no hebreu bíblico uma palavra específica para "sobrinho" nem para "primo"; contudo, há um termo para "tio" ou "tia" (respetivamente dod, Levítico 10:4; 20:20; doda, Levítico 18:14), assim como para "descendente" ou "posteridade" (néked, Génesis 21:23; Jó 18:19; Isaías 14:22).

3. Já em sentido mais amplo, outro uso do termo "irmão" tem que ver com relações raciais e nacionais:

Atos 2:29 («Irmãos, seja-me permitido dizer-vos livremente...»)

Atos 2:37 (disseram a Pedro e aos outros apóstolos: «Irmãos, que faremos?»)

4. Finalmente, a palavra também pode usar-se para significar vínculos espirituais e religiosos:

Mateus 18:15 («Portanto, se teu irmão pecar contra ti...»)

Mateus 18:21 («Senhor, quantas vezes perdoarei a meu irmão...?»)

Atos 15:24 («Os apóstolos, os anciãos e os irmãos, aos irmãos dentre os gentios...»)

Romanos 1:13 (Mas não quero, irmãos, que ignoreis...)

1 Coríntios 1:10 (Rogo-vos, pois, irmãos, ...)

Ora bem, no tema que nos ocupa os dois últimos usos ficam descartados em relação aos irmãos e irmãs de Jesus, o terceiro por ser muito amplo para o contexto destes ditos, e o quarto – vínculos espirituais ou religiosos - porque diversas passagens sublinham a incredulidade dos irmãos de Jesus antes da ressurreição (por exemplo, João 7:5); voltaremos a este tema mais à frente.

Restaria então explorar as primeiras duas possibilidades.

1. SE TRATAVA DE "IRMÃOS" NO SENTIDO NORMAL DO TERMO

Dentro desta interpretação cabem duas possibilidades:

a) Eram filhos de José e Maria, nascidos depois de Jesus

Esta explicação é sugerida por Mateus 1:25, onde se diz que José não conheceu Maria (no sentido bíblico de ter relações íntimas com ela) até que nasceu Jesus. No mesmo sentido aponta Lucas 2:23, onde Jesus é chamado o primogénito. Ora bem, estes textos não são concludentes por si mesmos. Acerca do primeiro, pode arguir-se que Mateus se limita a estabelecer o facto da concepção virginal, sem dizer explicitamente nada do que ocorreu depois de nascido Jesus. Em relação ao termo primogénito, é possível argumentar que este é um termo técnico para referir o primeiro filho nascido, sem que isso implique que tivesse que ter irmãos.

Se não soubéssemos mais nada, as objeções mencionadas deixariam o assunto como um problema insolúvel. No entanto, os quatro evangelistas canónicos mencionam como uma questão de facto a existência dos irmãos de Jesus. Igualmente o apóstolo Paulo se refere a eles, nomeando especificamente Tiago. Em nenhum destes textos se insinua que fossem outra coisa que não irmãos consanguíneos, segundo o sentido normal do termo, e portanto filhos de Maria.

Esta opinião é reforçada quando se examina o modo em que são mencionados os irmãos e as irmãs de Jesus em Mateus 13:54-56,

E, chegando à sua terra, ensinava o povo na sinagoga, de modo que este se maravilhava e dizia: - Donde lhe vem esta sabedoria, e estes poderes milagrosos? Não é este o filho do carpinteiro? E não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão, e Judas? E não estão entre nós todas as suas irmãs? Donde lhe vem, pois, tudo isto?

Neste texto alude-se ao putativo pai de Jesus, depois à sua mãe, aos seus irmãos e às suas irmãs. Com isto se descreve um grupo familiar primário: pai, mãe, irmãos e irmãs.

A isto deve acrescentar-se que embora no Novo Testamento não se use o termo anepsiôs que significa «primo» ou «parente», aparece outro termo que significa coletivamente "parentela" (sungeneia, Lucas 1:61; Atos 7:3,14). Este vocábulo deriva de sungenês ou sungeneus, que significam «parente», e usa-se repetidamente no Novo Testamento: Marcos 6:4; Lucas 1:58; 2:44; 14:12; 21:16; João 18:26; Atos 10:24; Romanos 9:3; 16: 7, 11, 21. Segundo Lucas 1:36, o anjo Gabriel chama Isabel a «parenta» (sungenis) da Bem-aventurada Maria (Lucas 1:36), não sua «irmã» (adelfê).

As objeções comuns contra esta interpretação são:

a) Que Maria não pôde ter tido outros filhos porquanto tinha feito um voto de virgindade. Esta ideia busca fundamento na pergunta da Bem-aventurada Maria ao anjo Gabriel, depois deste lhe ter anunciado que ia conceber: «Como será isso, se eu não conheço homem». A interpretação desta simples declaração - que poderia naturalmente tomar-se como uma reação ingénua de surpresa perante o anúncio do anjo - no sentido de um voto de perpétua virgindade remonta a finais do século IV, quando foi proposta por Gregório de Nissa (aprox. 330-395). No entanto, a evidência do próprio texto é extremamente ténue para dizê-lo suavemente. E o mesmo pode dizer-se acerca da evidência histórica de mulheres hebreias comprometidas em casamento que fizessem votos de virgindade perpétua.

b) A segunda objeção é que os irmãos de Jesus nunca são chamados "filhos de Maria". Isto é certo, mas pode explicar-se facilmente pelo facto de os evangelistas e Paulo aludirem aos familiares de Jesus do ponto de vista de seu parentesco com ele, não com Maria. Do mesmo modo em que Maria é "a mãe do Senhor", referem-se a Tiago e aos outros como "seus irmãos" e "suas irmãs", isto é, do Senhor.

c) A terceira objeção é que se se tratava de irmãos menores de Jesus, pela questão da autoridade reconhecida do primogénito na cultura judaica, eles não se teriam atrevido a questionar o ministério do Senhor. A isto pode responder-se 1) que não pode esperar-se demasiada consistência de quem, como eles, pretendia nada menos que impedir Jesus de prosseguir a sua obra; 2) que se pensavam seriamente que Jesus não estava simplesmente equivocado, mas «fora de si» as considerações acerca da primogenitura passariam para um segundo plano; e 3) que não há razão para pensar que parentes mais afastados pudessem ter mais ascendente sobre Jesus do que seus irmãos menores.

d) A quarta objeção é que a terem sido filhos de José e Maria, seria difícil explicar como um destes irmãos tinha o nome de seu pai. No entanto, a objeção carece de força porque se bem que isto era inusitado em tempos do Antigo Testamento, não ocorria a mesma coisa no século I da nossa era.

"Em períodos posteriores a patronímia (nomear um menino varão como o seu pai: cf. Lucas 1:59-61) e a paponímia (nomear um menino varão como o seu avô) não eram pouco comuns. A prática pôs-se de moda durante o período persa, e pode explicar a identificação popular de Dario com Ciro (se é esta a intenção) em Daniel 6:28 (texto massorético 29) ...
Onde um ofício era herdado, como no caso da realeza e do sacerdócio, havia uma tendência a reutilizar os nomes pessoais frequentemente em gerações sucessivas. Além disso, depois do tempo do exílio da Judeia, os nomes muitas vezes não se baseavam em acontecimentos relacionados com o nascimento, a julgar especialmente pela relativa popularidade da patronímia e da paponímia..."

Names, proper, em International Standard Bible Encyclopedia. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1986, 3:486, 487-488.

Um caso no Novo Testamento onde este costume aparece é a propósito de João o Baptista, a quem os que vieram circuncidar o menino queriam chamá-lo como o seu pai, Zacarias. Foi Isabel, por indicação do próprio Zacarias, que impediu tal imposição e indicou por escrito que se chamaria João; isso estranha os presentes, pois não havia ninguém na família que tivesse tal nome (Lucas 1:57-64). A propósito deste texto, escreve o dominicano Manuel de Tuya:

"Embora primitivamente não se faça assim, na época neo-testamentária punha-se o nome no dia da circuncisão. Costumava-se pôr o nome do avô, e embora fosse raro pôr-lhes o nome dos seus pais, havia casos em que se fazia assim no judaísmo tardio. Por isso, dada a avançada idade de Zacarias, queriam chamar-lhe com o seu nome".

Evangelio de San Lucas, em Profesores de Salamanca: Biblia Comentada, 3ª Ed. Madrid: BAC, 1977, Vb: 35.

Além deste exemplo do Novo Testamento, o autor mencionado cita o exemplo do pai e do avô de Herodes o grande, os quais se chamavam ambos Antipas (Flávio Josefo, Antiguidades dos judeus XIV, 1:3) e o de Anã filho de Anã, que sob o procurador Albino foi sumo sacerdote no ano 62 da nossa era (ibid., XX, 9:1). De modo que não é particularmente estranho que um filho de José e Maria tivesse o nome de seu pai.

e) A quinta objeção é que, se os irmãos de Jesus eram seus consanguíneos, é incompreensível que o Senhor desde a cruz tenha encomendado a sua mãe Maria ao cuidado do seu discípulo amado em vez de encomendá-la aos seus próprios irmãos. A resposta mais simples a esta objeção é que os seus irmãos, que não criam nele e que tinham tentado afastá-lo do seu ministério, não estavam presentes junto à cruz, como o estavam, em contrapartida, a Bem-aventurada Maria e o discípulo amado. Durante o seu ministério terrenal, o Senhor anunciou que as famílias se dividiriam por causa d`Ele (Lucas 12:49-53), e insistiu na prioridade absoluta do parentesco espiritual sobre o carnal (Mateus 10:37; 12:46-50 e paralelos; Marcos 10:29). Assim como os seus irmãos não creram n`Ele, é provável que não compreendessem a Bem-aventurada Maria. Em contrapartida, o discípulo amado, tão próximo do Senhor, era perfeitamente idóneo para tomar a seu cargo a idosa e fiel Maria.

Quando Mateus 1:25 e Lucas 2:23 são lidos no contexto dos dez textos que se referem aos irmãos do Senhor, torna-se óbvia a força cumulativa do argumento que toda esta evidência suporta. Em outras palavras, esta hipótese é a que requer menos conjeturas e está baseada na mais firme evidência escritural.

Assim o entendeu, entre os Padres, Tertuliano em princípios do século III:

"«Quem é minha mãe e meus irmãos? ... Ele estava justamente indignado de que pessoas tão próximas d`Ele «permanecessem fora», enquanto uns estranhos estivessem dentro aferrando-se às Suas palavras. Isto é particularmente assim dado que sua mãe e seus irmãos desejavam apartá-lo da obra solene que tinha entre mãos. Mais que negá-los, Ele os desautorizou. Portanto, à pergunta prévia, «Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?» acrescentou a resposta: «Ninguém senão os que ouvem as minhas palavras e as praticam». Deste modo transferiu os nomes das relações consanguíneas a outros que considerava mais estreitamente relacionados com Ele por causa da fé deles... Não é surpreendente que preferisse gente de fé aos seus próprios parentes, que não possuíam tal fé".

(Contra Marcião IV, 19; igualmente Sobre a carne de Cristo, 7).

Também foi defendida no século IV por Helvídio. Contudo, devido a alguns lhes parecer impossível, se não intolerável, a ideia de que a Bem-aventurada Maria tenha sido a feliz mãe de outros muitos filhos além de Jesus, formularam outras hipóteses com o intento de sustentar a noção de que Maria jamais deu à luz outro filho que não o seu primogénito. A seguir examinaremos duas de tais hipóteses.

b) Eram filhos de José de um matrimónio anterior

Segundo esta hipótese, José se teria casado com Maria em segundas núpcias, e os irmãos e irmãs de Jesus não teriam sido consanguíneos seus, mas parentes por ter o mesmo pai de criação e legal.

A fonte desta interpretação encontra-se nos evangelhos apócrifos, em particular o Protoevangelho de Tiago. Nesta obra que provavelmente deve datar-se na segunda metade do século II, narra-se que Maria foi criada no templo, mas quando cumpriu doze anos os sacerdotes decidiram procurar para ela um esposo para tirá-la dali e evitar que o contaminasse. Zacarias consultou o Senhor e um anjo lhe ordenou convocar todos os viúvos para escolher um marido; o Senhor daria um sinal para que soubessem quem era o eleito. Entre eles estava José, sobre o qual desceu uma pomba.

"E o sacerdote disse a José, «Coube a ti a sorte de receber em custódia a virgem do Senhor». Mas José lhe respondeu, «Tenho filhos e sou velho; enquanto ela é uma menina. Oponho-me pois, do contrário serei objeto de riso dos filhos de Israel». E o sacerdote disse a José, «Teme ao Senhor teu Deus ...». E José teve medo e a recebeu em custódia." (9:1-2).

Basicamente a mesma história é repetida por obras apócrifas posteriores, como a História de José o carpinteiro dos séculos IV ou V, e o Evangelho do Pseudo-Mateus, escrito em latim provavelmente no século VIII ou IX. Na História... o nome dos filhos de José dá-se como "Judas, Justo, Tiago e Simeão" e acrescenta-se o das filhas, Lísia e Lídia.

Entre os Padres, o primeiro em insinuar a noção de que os irmãos de Jesus eram na realidade filhos de José foi Clemente de Alexandria em finais do século II:

"Judas, aquele que escreveu a epístola católica, era o irmão dos filhos de José. E era muito religioso. Embora experimentando a relação próxima do Senhor, ainda assim não diz que ele mesmo era seu irmão. Mas que diz? «Judas, servo de Jesus Cristo» d`Ele como Senhor; mas «o irmão de Tiago». Pois isto era verdade. Judas era seu irmão, através de José".

Comentário sobre a Epístola de Judas, nos Fragmentos de Cassiodoro.

No século III Orígenes, que considerava Clemente seu mestre, toma nota desta tradição:

"Alguns dizem, baseando-o numa tradição do Evangelho segundo Pedro (como se intitula) ou no Livro de Tiago [o espúrio Protoevangelho de Tiago], que os irmãos de Jesus eram filhos de José de uma esposa anterior, que ele desposou antes de Maria".

(Comentário sobre Mateus, 17).

O principal defensor desta explicação, que é até hoje a posição oficial das Igrejas ortodoxas orientais, foi Epifânio no século IV. A hipótese reconhece algumas variantes. Segundo uma delas, sugerida por Teofilacto, os irmãos de Jesus seriam filhos de José pela lei de levirato, segundo a qual este teria gerado filhos com a esposa de Cléofas, seu falecido irmão. Segundo outra, eram verdadeiros filhos de Cléofas e portanto sobrinhos de José que ele teria adotado como filhos.

Eusébio de Cesareia conserva uma tradição neste sentido em relação a outro dos irmãos do Senhor, Simão:

"Depois do martírio de Tiago e da tomada de Jerusalém, que se seguiu imediatamente, é tradição que os apóstolos e discípulos do Senhor que ainda viviam reuniram-se de todas as partes num mesmo lugar, junto com os que eram da família do Senhor segundo a carne (pois muitos deles ainda viviam), e todos celebraram um conselho sobre quem devia ser julgado digno de suceder a Tiago, e todos, por unanimidade, decidiram que Simeão, o filho de Clopas [Sumeôn ton tou Klôpa) – mencionado também pelo texto do Evangelho - era digno do trono daquela igreja, por ser primo (anepsion) do Salvador, pelo menos segundo se diz, pois Hegésipo refere que Clopas era irmão de José".

História Eclesiástica III, 11:1

Hegésipo baralhou aqui os nomes, pois os nomes tanto dos Apóstolos chamados «Simão», ou seja, Pedro e o Zelote, como do irmão de Jesus que é nomeado em Mateus 13:55 e Marcos 6:3 se escrevem Simôn. O único personagem com o nome Sumeôn que se menciona no marco temporal do Novo Testamento é o ancião que profetizou no templo (Lucas 2:25-34).

Retornando à hipótese principal desta parte, ou seja, que os irmãos de Jesus eram filhos de um matrimónio anterior de José, deve sublinhar-se que não existe a menor evidência bíblica para sustentar esta hipótese, cuja origem tardia e espúria a faz de per si extremamente duvidosa. Os supostos filhos de José não aparecem em lado nenhum nos relatos da natividade de Jesus, nem nas escassas alusões à sua infância; adicionalmente, ele é chamado o primogénito (Lucas 2:23), ou seja, o primeiro filho.

Uma objeção comum a ambas as hipóteses apresentadas até aqui – ou seja, que os irmãos fossem filhos de José ou filhos de José e Maria - é que os irmãos não são mencionados no episódio do menino Jesus no templo, narrado em Lucas 2:41-52. É certo que não são mencionados explicitamente, mas há que ter em conta que o texto em questão também não diz que somente José, Maria e Jesus subiram a Jerusalém. Fala-se de uma caravana ou companhia, na qual havia muitas pessoas, incluindo familiares. O propósito do relato não exige de modo algum a menção explícita dos irmãos de Jesus.

2. ERAM PARENTES PRÓXIMOS DE JESUS, POSSIVELMENTE PRIMOS

Esta explicação foi proposta inicialmente por Jerónimo, e depois aceite por Agostinho de Hipona e outros mestres. É a posição da Igreja de Roma. Entre os reformadores, Lutero a aceitou, ainda que não dogmaticamente; e mais tarde Chemnitz, Bengel e outros.

Em essência, segundo este ponto de vista os irmãos de Jesus eram seus primos por parte de sua linha materna, e portanto consanguíneos. Teriam sido os filhos de Alfeu, que seria a mesma pessoa que Cléofas, e da irmã de Maria, que tinha o mesmo nome que ela. Esta Maria, tia de Jesus, é a descrita como a «mãe de Tiago e José» (Mateus 27:56) e como «a mãe de Tiago o menor e de José» (Marcos 15:40).

Ainda segundo esta opinião, dado que três dos nomes dos irmãos de Jesus aparecem nas listas de apóstolos (Tiago, Judas e Simão), e que Tiago é chamado filho de Alfeu, seria uma coincidência muito notável que além dos seus primos Jesus tivesse irmãos com exatamente os mesmos nomes. O facto de que a um dos Tiagos se lhe chame "o menor" indicaria que havia apenas dois Tiagos no círculo de próximos do Senhor, a saber, Tiago filho de Zebedeu, o irmão de João, e Tiago filho de Alfeu, que era primo de Jesus.

Alguns dizem que provavelmente Maria foi viver com a sua irmã depois da morte de seu esposo José, o que explicaria que afluísse com os seus sobrinhos quando foram ver Jesus. Outros, pelo contrário, veem no facto de Jesus ter encomendado o cuidado de sua mãe ao seu discípulo amado (João 19:25-27) a indicação de que a relação dela com os seus sobrinhos não era muito estreita.

Para analisar a plausibilidade desta hipótese, é preciso revisar cuidadosamente várias passagens. Quatro dos irmãos de Jesus são nomeados num texto paralelo de Mateus e Marcos:

Mateus 13:54-56

E, chegando à sua terra, ensinava o povo na sinagoga, de modo que este se maravilhava e dizia: - Donde lhe vem esta sabedoria, e estes poderes milagrosos? Não é este o filho do carpinteiro? E não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão, e Judas? E não estão entre nós todas as suas irmãs? Donde lhe vem, pois, tudo isto?

Marcos 6: 1-3

Saiu Jesus dali, e foi para a sua terra, e os seus discípulos o seguiam. Ora, chegando o sábado, começou a ensinar na sinagoga; e muitos, ao ouvi-lo, se maravilhavam, e perguntavam: - Donde lhe vêm estas coisas? E que sabedoria é esta que lhe é dada? e como se fazem tais milagres por suas mãos? Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão aqui entre nós suas irmãs? E escandalizavam-se dele.

Estes dois textos dão uma lista dos irmãos do Senhor por nome. Ambas as listas são iguais, com os mesmos quatro nomes: Tiago, José, Judas e Simão.

O nome Iakôbos pode traduzir-se por Jacó, Tiago e em alguns casos Jaime. No que se segue usou-se consistentemente a forma "Tiago". Há um Tiago que é chamado explicitamente «o irmão do Senhor» em Gálatas 1:19. Fora do Novo Testamento, o historiador judeu Flávio Josefo refere-se a ele como se segue, a respeito da morte do procurador Festo na Judeia e a sua substituição por Albino no ano 62:

"Sendo Anã [o sumo sacerdote] deste caráter, aproveitando-se da oportunidade, pois Festo havia falecido e Albino ainda estava em viagem, reuniu o sinédrio. Chamou a juízo o irmão de Jesus que se chamou Cristo; seu nome era Tiago, e com ele fez comparecer a vários outros. Os acusou de ser infratores da lei e os condenou a ser apedrejados".

(Flávio Josefo, Antiguidades dos judeus, XX, 9:1)

Provavelmente se trata do mesmo Tiago que veio a ser uma "coluna" da Igreja de Jerusalém, junto com Cefas (Pedro) e João (Gálatas 2:9). É possível que todos os seguintes textos se refiram ao mesmo Tiago, irmão do Senhor: Atos 12:17, 15:13, 21:18, 1 Coríntios 15:7, Gálatas 2:12. Aceita-se tradicionalmente que foi este Tiago, «irmão do Senhor» quem escreveu a carta que leva o seu nome; já assim Clemente de Alexandria e Orígenes. A relação de Eusébio de Cesareia é pertinente:

"Ao apelar Paulo ao César e ser enviado por Festo à cidade de Roma, os judeus, frustrada a esperança que os induziu a conspirar contra ele, voltaram-se contra Tiago, o irmão do Senhor, a quem os apóstolos tinham confiado o trono episcopal de Jerusalém ...
O modo como ocorreu a morte de Tiago já foi esclarecido pelas palavras citadas de Clemente ... Mas quem narra com maior exatidão tudo o que a ele se refere é Hegésipo, que pertence à primeira geração sucessora dos apóstolos e que, no livro V de suas Memórias, diz assim:
«Sucessor na direção da Igreja é, junto com os apóstolos, Tiago, o irmão do Senhor. Todos dão-lhe o sobrenome de 'Justo', desde os tempos do Senhor até os nossos, pois eram muitos os que se chamavam Tiago...»".

Historia Eclesiástica II, 23: 1,3-4; a narração ocupa todo o resto do capítulo.

Diga-se de passagem, Eusébio também obteve de Hegésipo a seguinte referência aos descendentes de Judas, o meio-irmão de Jesus:

"O próprio Domiciano deu ordem de executar os membros da família de David, e uma antiga tradição diz que alguns hereges acusaram os descendentes de Judas –que era irmão do Salvador segundo a carne (adelfon kata sarka tou sôtêros) - , com o pretexto de que eram da família de David e parentes (sungeneian) do próprio Cristo. Isto é o que declara Hegésipo quando diz textualmente:
«Da família do Senhor viviam ainda os netos de Judas, chamado seu irmão segundo a carne, aos quais delataram por serem da família de David... O evocatus conduziu-os à presença do césar Domiciano, porque este, assim como Herodes, temia a vinda de Cristo. E perguntou-lhes se descendiam de David; eles o admitiram...»".

Ibid, III, 19-20

AS MULHERES JUNTO À CRUZ E NA RESSURREIÇÃO

Voltando à hipótese que estamos a examinar, supõe-se que este Tiago é chamado também Tiago (filho) de Alfeu e Tiago o menor, para distingui-lo do homónimo filho de Zebedeu. Tal identificação se baseia principalmente nas listas de mulheres que presenciaram a crucificação e as que compraram ou prepararam aromas para ungir o corpo do Senhor. Os textos pertinentes são:

Mateus 27:55-56

Estavam ali, olhando de longe, muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia, servindo-o. Entre as quais estavam Maria Madalena, Maria a mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu.

Marcos 15:40-41

Também havia algumas mulheres olhando de longe, entre as quais estavam Maria Madalena, Maria a mãe de Tiago o menor e de José, e Salomé; as quais o seguiam e o serviam quando ele estava na Galileia; e muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém.

Lucas 23:49

Mas todos os seus conhecidos, e as mulheres que o haviam seguido desde a Galileia, estavam de longe vendo estas coisas.

João 19:25

Estavam junto à cruz de Jesus sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria mulher de Cléofas e Maria Madalena.

Mateus 28:1

Passado o sábado, ..., Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro.

Marcos

Quando passou o sábado, Maria Madalena, Maria a de Tiago, e Salomé, compraram aromas para irem ungi-lo.

Lucas 23:55

As mulheres que o tinham seguido desde a Galileia o seguiram e viram o sepulcro e como foi posto o seu corpo. Ao regressar, prepararam aromas e unguentos; e descansaram no sábado, conforme o mandamento.

Lucas 24:10

Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago, e as outras com elas, as que disseram estas coisas aos apóstolos.

João 20:1

No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhã, sendo ainda escuro, ao sepulcro, e viu removida a pedra do sepulcro.

Todos os textos que mencionam nomes incluem Maria Madalena. Outras mulheres que são explicitamente chamadas pelo seu nome são:

a) Maria a mãe de Tiago e de José (Mateus) que é com toda a probabilidade Maria a mãe de Tiago o menor e de José, e «Maria a de Tiago» (Marcos) e talvez a mãe de Tiago que menciona Lucas.

b) Maria a de Cléofas. O texto grego não diz que era esposa de Cléofas; poderia igualmente tratar-se de sua filha.

c) "A outra Maria" (Mateus 28:1), possivelmente a mesma que em (a)

d) Salomé

e) Joana

Algumas mulheres são mencionadas indicando os seus parentescos:

a) A mãe dos filhos de Zebedeu (Salomé? cf. Mateus 27:56 com Marcos 15:40)

b) A irmã da mãe de Jesus

Uma complicação adicional surge de que não está claro se João 19:25 se refere a três mulheres ou a quatro. Em concreto, é a irmã da mãe do Senhor a mesma mulher que é chamada Maria de Cléofas?

Apesar de o grego não ser concludente e admitir ambas as leituras, outras considerações levam a pensar que João se refere a quatro mulheres e não a três. Em primeiro lugar, se a irmã da mãe de Jesus é Maria de Cléofas, isso significaria que ambas as irmãs tinham o mesmo nome, um facto extremamente curioso.

Num manuscrito (B de Tischendorf) do Evangelho do Pseudo-Mateus explica-se que esta Maria era filha de Ana, mãe da Bem-aventurada Maria], e que tinha nascido da união de Ana em segundas núpcias com Cléofas. Em tal caso, Maria de Cléofas deveria ler-se "Maria, (filha) de Cléofas". A razão de ambas as irmãs se chamarem da mesma maneira, segundo o apócrifo, é que ela foi dada a Ana como compensação por ter consagrado a Deus a Bem-aventurada Maria. Segundo a mesma história, esta segunda Maria, filha de Cléofas, se casou com Alfeu e foi mãe de "Tiago o filho de Alfeu e de Felipe seu irmão [sic]. E tendo morrido seu segundo esposo, Ana foi casada com um terceiro esposo chamado Salomé [sic], de quem teve uma terceira filha. Ela a chamou igualmente Maria, e a deu a Zebedeu como esposa; e dela nasceram Tiago o filho de Zebedeu e João o Evangelista".

Esta fantástica história é obviamente uma tentativa bastante rebuscada de justificar a existência de três Marias que teriam sido irmãs por parte de mãe, e de fazer aparecer como primos de Jesus os apóstolos Tiago e João, filhos de Zebedeu, e Tiago filho de Alfeu e Felipe. Desde logo, não há a menor evidência que justifique estes parentescos tal como os apresenta o Pseudo-Mateus.

O argumento baseado na lista de mulheres junto à cruz e nas que foram ungir o corpo de Jesus no dia da ressurreição toma atualmente uma forma mais subtil. Para compreendê-lo, é necessário revisar primeiro as listas dos Apóstolos, dado que se tenta demonstrar que um ou mais dos irmãos de Jesus eram filhos de outra mãe que se contavam entre os seus discípulos.

LISTAS DE APÓSTOLOS

Os Doze são listados em quatro ocasiões, como se segue:

Mateus 10: 2-4

Simão Pedro
seu irmão André
Tiago de Zebedeu
João seu irmão

Felipe
Bartolomeu
Tomé
Mateus o publicano

Tiago de Alfeu
Tadeu
Simão Zelote
Judas Iscariotes

Marcos 3: 16-19

Simão Pedro
Tiago
João irmão de Tiago
André

Felipe
Bartolomeu
Mateus
Tomé

Tiago de Alfeu
Tadeu
Simão Cananeu
Judas Iscariotes

Lucas 6:14-16

Simão Pedro
André seu irmão
Tiago
João

Felipe
Bartolomeu
Mateus
Tomé

Tiago de Alfeu
Simão Zelote
Judas de Tiago
Judas Iscariotes

Atos 1:13

Pedro
Tiago
João
André

Felipe
Tomé
Bartolomeu
Mateus

Tiago de Alfeu
Simão Zelote
Judas de Tiago
---vacante----

Destas listas há a destacar o seguinte:

1. As quatro são encabeçadas por Simão Pedro.

2. Nas três prévias ao suicídio de Judas Iscariotes, o seu nome aparece no fim; na de Atos é omitido.

3. As quatro listas podem dividir-se em três grupos com quatro nomes cada uma, que são sempre encabeçados por Pedro, Felipe e Tiago de Alfeu.

4. As demais posições mostram variantes.

a) No primeiro grupo, André, irmão de Pedro, figura em segundo nas listas de Mateus e Lucas, mas atrás de Tiago de Zebedeu e seu irmão João nas de Marcos e Atos. Esta variante explica-se pela proeminência de Pedro, Tiago e João em relação ao resto dos Doze.

b) No segundo grupo, Bartolomeu aparece a seguir a Felipe nos três Evangelhos, mas depois de Tomé em Atos. Mateus aparece como último do grupo em Mateus e Atos, lugar que é ocupado por Tomé em Marcos e Lucas.

c) No terceiro grupo, Simão o Zelote aparece em segundo (a seguir a Tiago de Alfeu) em Lucas e Atos, mas em terceiro lugar, depois de Tadeu, em Mateus e Marcos.

5. Tadeu, que figura em segundo no terceiro grupo em Mateus e Marcos, corresponde a Judas de Tiago em Lucas e Atos.

6. Mencionam-se explicitamente duas parelhas de irmãos:

a) Pedro e André nos Evangelhos de Mateus e Lucas

b) Tiago de Zebedeu e João em Mateus e Marcos.

7. Nos casos do primeiro Tiago em Mateus, e do segundo Tiago nas quatro listas, é acrescentado um genitivo: respetivamente Tiago (o) de Zebedeu e Tiago (o) de Alfeu. A maioria das versões traduzem tal genitivo como um patronímico: Tiago filho de Zebedeu e Tiago filho de Alfeu.

8. As listas de Mateus e Marcos mencionam Tadeu, que provavelmente representa um sobrenome, forma grega do hebreu taday = peito. Isto é sugerido, além disso, pela variante Lebeu (do hebreu leb = coração) presente em alguns manuscritos, assim como a conflação "Lebeu, também chamado Tadeu" em alguns manuscritos do Evangelho de Mateus. Ambos os sobrenomes podem indicar as mesmas qualidades: ternura, integridade ou valor. Este Apóstolo é nomeado por Lucas (no Evangelho e em Atos) como "Judas de Tiago". Embora diversas versões traduzam "Judas irmão de Tiago", o texto grego não menciona a palavra "irmão" (adelphos), como o faz com Pedro em relação a André e com João em relação a Tiago de Zebedeu. Outras versões, em contrapartida, traduzem "Judas filho de Tiago" ainda que novamente a palavra grega correspondente (hyios) não figure no texto. Todavia, considerar Judas "filho de Tiago" é o modo mais natural de entender a expressão, ou seja, como um genitivo de filiação, estrutura que se usa exatamente do mesmo modo para Tiago de Zebedeu e Tiago de Alfeu.

A propósito da identidade do Judas autor da carta homónima, que é identificado explicitamente como "irmão de Tiago", diz um comentarista católico:

"No Novo Testamento, quando se trata de parentesco expresso por um genitivo depois de um nome, pretende-se designar uma relação não de fraternidade, mas de paternidade. Judas no Evangelho, é filho de Tiago; portanto, um indivíduo distinto do nosso Judas, irmão de Tiago. Por conseguinte, Judas autor da nossa epístola e irmão de Tiago é provável que não seja apóstolo, como o próprio Tiago".

José Salguero, O.P., Epístola de San Judas, em Profesores de Salamanca: Biblia Comentada. Madrid: BAC, 1965, 7:277; negrito acrescentado.

Dado este uso normal e o facto de, à diferença das parelhas Pedro-André e Tiago-João que são explicitamente identificados como irmãos, não ocorrer a mesma coisa no caso de Tiago de Alfeu e Judas de Tiago, é muito provável que não se trate de outra parelha de irmãos, mas de filhos de diferentes pais.

NOMEIAM OS EVANGELISTAS A MÃE DE TIAGO DE ALFEU?

O argumento a que aludimos antes de proporcionar e discutir as listas de apóstolos se baseia no seguinte:

1. Além de Maria Madalena, os Evangelhos sinópticos mencionam explicitamente «outra Maria»: «a mãe de Tiago e de José» (Mateus); "«a mãe de Tiago o menor e de José» (Marcos), «Maria a mãe de Tiago» (Marcos e Lucas).

2. O Evangelho de João menciona a mãe do Senhor e a irmã de sua mãe, «Maria de Cléofas» mas não faz menção de seus filhos.

3. Dado que, tirando Maria Madalena, é a única Maria que é mencionada pelo nome, a Maria mãe de Tiago o menor e de José deve ser a Maria de Cléofas.

4. Tiago o menor pode ter-se chamado assim em contraposição a Tiago filho de Zebedeu, e se está presente na lista de discípulos deve ser o outro Tiago, chamado de Alfeu.

5. Ora bem, os nomes Alfeu e Cléofas podem ser diferentes formas gregas do mesmo nome arameu (Halfai).

6. Portanto, Tiago o menor seria Tiago filho de Alfeu/Cléofas e de Maria, a irmã da Bem-aventurada Maria; portanto um primo-irmão de Jesus.

Quem tenha seguido atentamente o texto poderá dar-se conta do número de suposições que entranha este argumento. No entanto, em benefício da clareza as enumeraremos:

a) A expressão «Tiago o menor» não implica que houvesse só dois Tiagos. No grego não há comparativos. A expressão «o menor» significa na realidade «o pequeno», «o jovem» ou «o baixinho» e provavelmente alude à sua juventude ou a uma altura invulgarmente baixa. É a uma característica do Tiago a que aqui se alude, não uma comparação com outro Tiago. Por isso, não exclui a existência de outros homens chamados Tiago além de Tiago de Zebedeu e Tiago de Alfeu.

b) Os três Evangelhos sinópticos deixam claro que havia todo um grupo de mulheres, das quais nomeiam apenas umas poucas. Quando Mateus se refere a «a outra Maria» além da Madalena, se refere com toda a probabilidade à outra Maria que ele próprio já mencionou, ou seja, a mãe de Tiago e de José. No entanto, não é claro que fosse a única outra Maria do grupo, e que deva portanto identificar-se com Maria de Cléofas. Na verdade, João, que nomeia esta última, menciona a mãe de Jesus além de Maria de Cléofas e Maria Madalena; de modo que sabemos com certeza que no grupo de mulheres galileias havia não menos de três Marias e talvez mais.

c) Como nenhum dos Evangelistas diz explicitamente que Maria a mãe de Tiago o menor seja Maria de Cléofas, não é possível identificá-las sem lugar a dúvidas.

d) Adicionalmente, a identificação de Cléofas com Alfeu pai de Tiago o apóstolo se baseia numa conjetura linguística.

A isto deve acrescentar-se a estranha anomalia de que precisamente os mesmos evangelistas - Mateus e Marcos - que mencionam pelo nome quatro irmãos de Jesus, ao referir-se à mulher em questão somente nomeiam Tiago e José, sem aludir a Simão e Judas. Dado que nada mais sabemos deste José, é possível que se trate de outra pessoa diferente do irmão de Jesus, o mesmo para o seu irmão Tiago o menor.

Em resumo, não há forma de identificar positivamente Tiago o menor, irmão de José, com Tiago (filho) de Alfeu.

No entanto, existe evidência adicional que demonstra tão concludentemente como possa sê-lo um argumento baseado em evidência histórica, que os irmãos do Senhor não pertenciam ao grupo dos discípulos, a saber, que no Novo Testamento os irmãos do Senhor são mencionados como um grupo diferente dos Doze.

TEXTOS QUE MENCIONAM OS IRMÃOS DO SENHOR E OS DOZE APÓSTOLOS COMO GRUPOS DIFERENTES

João 2:12

Depois disso desceram a Cafarnaum ele [Jesus], sua mãe, seus irmãos e seus discípulos; e ficaram ali não muitos dias.

Atos 1:13-14

Quando chegaram, subiram ao cenáculo, onde se alojavam Pedro e Tiago, João, André, Felipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago de Alfeu, Simão o Zelote e Judas de Tiago. Todos estes perseveravam unânimes em oração e súplicas, com as mulheres, e com Maria a mãe de Jesus, e com os irmãos dele.

1 Coríntios 9:5

Não temos nós direito de levar connosco uma esposa crente, como fazem também os outros apóstolos, os irmãos do Senhor, e Cefas?

ANTES DA RESSURREIÇÃO DE JESUS, OS SEUS IRMÃOS NÃO CRIAM NELE

Mateus 12:46-50

Enquanto ele ainda falava à multidão, estavam do lado de fora sua mãe e seus irmãos, procurando falar-lhe. Disse-lhe alguém: - Eis que estão ali fora tua mãe e teus irmãos, e procuram falar contigo. Ele, porém, respondeu ao que lhe falava: - Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? E, estendendo a mão para os seus discípulos disse: - Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Pois todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.

Marcos 3:14-21, 31-35

Então designou doze para que estivessem com ele, e os mandasse a pregar; e para que tivessem autoridade de curar enfermidades e expulsar os demónios. Designou, pois, os doze, a saber: Simão, ..., Tiago de Zebedeu, e João, irmão de Tiago,...; André, Felipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago de Alfeu, Tadeu, Simão o cananeu, e Judas Iscariotes, o que o entregou. Voltaram para casa, e se juntou de novo tanta gente que nem sequer podiam comer pão. Quando os seus ouviram isso, vieram para o prender, porque diziam: «Está fora de si».

(segue uma discussão com os escribas, vv. 22-30)

Entretanto, chegaram seus irmãos e sua mãe e, ficando do lado de fora, mandaram chamá-lo. Então a gente que estava sentada à volta dele disse-lhe: - Eis que tua mãe e teus irmãos estão lá fora e te procuram. Ele lhes respondeu dizendo: - Quem são minha mãe e meus irmãos? E olhando para os que estavam sentados à volta dele, disse: - Eis aqui minha mãe e meus irmãos, porque todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.

Lucas 8:1-2, 4, 19-21

Aconteceu depois que Jesus ia por todas as cidades e aldeias, pregando e anunciando o evangelho do reino de Deus. Acompanhavam-no os doze e algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades... Juntando-se uma grande multidão e os que de cada cidade vinham ter com ele, disse-lhes por parábola....
Então sua mãe e seus irmãos vieram ter com ele; mas não podiam aproximar-se dele por causa da multidão. E o avisaram, dizendo: - Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem ver-te. Ele então respondendo, lhes disse: - Minha mãe e meus irmãos são os que ouvem a palavra de Deus e a observam.

Embora difiram em diversos detalhes, as três narrações dos sinópticos coincidem, como o demonstram as expressões marcadas com negrito, em que os discípulos estavam junto do Senhor enquanto os irmãos de Jesus, e sua mãe, estavam fora e afastados; portanto é inevitável a conclusão de que se trata de dois grupos diferentes. Marcos explica, além disso, a razão da visita, e é que vinham para levá-lo pela força porque pensavam que estava fora de si.

João 6:66-68; 7:1-5

Desde então muitos dos seus discípulos voltaram atrás e já não andavam com ele. Disse então Jesus aos doze: - Quereis vós também retirar-vos? Respondeu-lhe Simão Pedro: - Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna. E nós cremos e conhecemos que tu és o Cristo, o Filho do Deus vivente. Depois disto andava Jesus pela Galileia, pois não queria andar pela Judeia, porque os judeus procuravam matá-lo. Estava próxima a festa dos judeus, a dos Tabernáculos, e lhe disseram os seus irmãos: - Sai daqui, e vai para a Judeia, para que também os teus discípulos vejam as obras que fazes, porque ninguém que procura dar-se a conhecer faz algo em segredo. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo. Porque nem mesmo os seus irmãos criam nele.

Aqui os próprios irmãos de Jesus se distinguem a si mesmo dos discípulos. Além disso, os doze, representados por Pedro, acabavam de confessar que criam n`Ele, enquanto que, segundo João, os seus irmãos não criam n`Ele. Portanto trata-se, ainda mais claramente do que em João 2:12, de dois grupos diferentes, crente um, incrédulo o outro.

CONCLUSÕES

1. O Novo Testamento (sem mencionar fontes históricas) faz referência aos familiares de Jesus, em ocasiões no contexto de seu grupo familiar primário, usando consistentemente a palavra grega para «irmãos» ou «irmãs» sem nenhuma restrição ou aclaração.

2. Não existe evidência substancial de que estes «irmãos» fossem outra coisa que não filhos de José e Maria.

3. Os irmãos de Jesus não podem ser identificados com nenhum discípulo em particular.

4. Os irmãos de Jesus eram incrédulos antes da ressurreição.

5. Os irmãos são claramente diferenciados dos discípulos de Jesus.

6. Portanto, a interpretação que apresenta maior evidência a favor e objeções menos importantes é que se tratava de meios-irmãos de Jesus, ou seja, filhos de Maria e José.

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